Somos um país soberano?
Icone para abrir
Ilustração de Isabela Durão

2

Conversas

Glauco Arbix: "As big techs são mais do que países"

Para sociólogo e professor da USP, Brasil precisa de inovação tecnológica para armazenar os próprios dados, hoje em gigante estrangeiras, e alcançar sua soberania digital

Isabelle Moreira Lima 07 de Setembro de 2025

Glauco Arbix: “As big techs são mais do que países”

Isabelle Moreira Lima 07 de Setembro de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Para sociólogo e professor da USP, Brasil precisa de inovação tecnológica para armazenar os próprios dados, hoje em gigante estrangeiras, e alcançar sua soberania digital

Entre muitas áreas que fazem de um país soberano, a tecnologia está entre as mais sensíveis. A produção e o armazenamento de dados e a circulação de informações de um país, desde notícias aos pessoais e sigilosos de seus cidadãos, fazem parte da autonomia de um país. No entanto, hoje, são poucos os estados que detém todas as pontas dessa cadeia.

“Uma grande parte dos países não têm condições de exercer soberania digital porque ou são muito dependentes das tecnologias ou, em grande parte, são dependentes das grandes empresas que estão muito concentradas nos Estados Unidos, na China e em alguns poucos países europeus”, diz o sociólogo Glauco Arbix, em entrevista a Gama.

 Divulgação

Professor titular do Departamento de Sociologia e coordenador do Observatório da Inovação do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), Arbix, que já presidiu a empresa pública de inovação e pesquisa Finep e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), chama a atenção para o poderio das big techs nesse cenário, com investimentos mais vultosos do que os disponíveis por governos nacionais.

Como antídoto, resta à boa parte do globo uma corrida tecnológica, que deve ser empreendida pelos que desejam autonomia completa. Sem isso, os países ficam reféns a decisões políticas de outros chefes de estado. Arbix usa como exemplo a forma de governar de Donald Trump, que impõe sanções a governos sem seguir protocolos. Se ele determina que empresas de tecnologia em seu território precisam abrir dados de outros países, por exemplo, estas nações ficam expostas e podem fazer pouco ou nada.

“O Brasil tem um longo caminho pela frente para ter aquilo que seria chamado de soberania digital”, afirma na entrevista abaixo, em que fala ainda sobre como a corrida pela inteligência artificial generativa acirra o debate e como o meio ambiente pode estar implicado nas inovações tecnológicas.

O debate sobre soberania ficou deslocado na medida em que governos cediam a empresas a responsabilidade de zelar por dados

  • G |O quão distante o Brasil está de alcançar a soberania digital?

    Glauco Arbix |

    O Brasil está numa situação intermediária nesse debate. O país tem produção de conteúdo e um razoável controle sobre os dados; tem legislação, sistemas de proteção e privacidade. Mas, ao mesmo tempo, uma grande parte dos nossos dados está armazenada fora do país. Muitas vezes os dados estão aqui, mas, por obrigações das empresas proprietárias desses bancos de dados, elas têm que liberá-los a pedido de seus governos ou da justiça de seus países. É raro, mas pode acontecer.

  • G |O Brasil trata a soberania como tema estratégico de Estado?

    GA |

    Não, estamos longe disso. Já vivemos ataques de várias formas, não somente de hackers, mas de atividades próximas do que se chama de espionagem ou de apropriação de informação. Um dos casos mais famosos foi a invasão dos e-mails da ex-presidente Dilma Rousseff.
    O sistema de invasão via hackers é um pouco o esperado — todo sistema tem aqueles que tentam furar os bloqueios para se apropriar de informações. Tivemos há alguns anos uma invasão muito grande dos dados do Facebook via uma empresa chamada Cambridge Analytica, que derramou mais de 80 milhões de perfis individuais de pessoas mundo afora. Isso aumenta muito a vulnerabilidade do sistema e expõe as pessoas e seus dados mais sensíveis, como conta bancária, RG, CPF.
    Tem casos com um perfil mais político também. No início deste ano, um dos grandes bancos de dados que armazenavam informações do Tribunal Penal de Haia cedeu dados pessoais de um juiz da Suprema Corte Internacional.

  • G |Como esses problemas começaram?

    GA |

    A internet tornou essa discussão sobre soberania um pouco estranha porque veio com a intenção de globalizar, de generalizar as conexões pelo mundo, os contatos entre as pessoas, entre instituições, entre governos, das mais diferentes maneiras, inclusive pelo comércio eletrônico, pela diversão, pelo entretenimento. Mas à medida em que os governos cediam às empresas a responsabilidade de zelar por dados o debate sobre soberania foi ficando deslocado. Passamos a ter situações de ultrapolarizações, discursos de ódio, fake news, coisas que colocam em risco a própria democracia, com interferência em eleições. Isso gerou situações de difícil resolução, muitas vezes impossíveis, porque o contencioso é muito forte.

  • G |E quando essa realidade escalonou?

    GA |

    Com a ascensão, em 2016, do primeiro governo Donald Trump, a situação se acelerou, porque a palavra soberania digital entrou no vocabulário, não de países que viviam uma situação mais próxima do que seria uma colônia, mas dos mais avançados. É uma situação inédita porque falam de soberania e se abrem a empresas estrangeiras. Com Trump agora, a situação acabou ganhando uma dimensão absolutamente inédita. Não somente pela imprevisibilidade da maneira como ele atua, mas pelo caráter marcadamente anti-globalização que as atitudes dele expressam. Nós não sabemos exatamente como é que esse mundo vai ficar. O que sabemos é que, para colocá-lo nos eixos vai demorar muito tempo. Os Estados Unidos foram essenciais para a montagem desse sistema, o Banco Mundial, o FMI, o sistema ONU e seus vários braços como Unicef, Unesco, Pnud, os acordos de todo o tipo. E agora você tem uma retirada muito forte dos Estados Unidos, o que significa que você vai ter uma derrubada de todos os planos e projetos que haviam sido consensuados no último período, começados relacionados às mudanças do clima, à defesa ambiental. Isso pega em cheio países como o nosso porque somos o elo mais fraco da cadeia e temos situações muito mais críticas do que outros. As alterações do clima afetam os países menos desenvolvidos e, dentro desses países, afeta violentamente, de uma maneira muito desigual e mais fortemente, as populações mais vulneráveis.

O Brasil, pelo tamanho, pelo peso, pela capacidade não pode se contentar em ser apenas um usuário de tecnologia

  • G |Soberania digital pode ter diferentes significados a depender do país?

    GA |

    Ela tem sentido diferente para os países desenvolvidos e para os em desenvolvimento. Os desenvolvidos têm tecnologia, grandes empresas, bancos de dados, meios de proteger a sua população num grau muito maior do que os em desenvolvimento. Nós vivemos problemas básicos, desde o analfabetismo, a fome, a pobreza, a miséria. E isso não é só o Brasil, um país de renda média, mas a imensa maioria dos países na América do Sul, na África, no Oriente Médio, no Sudeste Asiático. São países que se esforçam muito para se desenvolver. E o debate sobre soberania digital tem muito a ver com essa situação. É preciso tomar cuidado com a palavra soberania, porque ela acabou sendo usada de uma maneira muito vulgar. É preciso fazer essas diferenças. Quando os Estados Unidos defendem a sua soberania digital, eles estão pensando em como se apropriar do conhecimento para melhorar a vida da sua população. Se vai melhorar a vida da população dos outros países, já não é um problema deles.

  • G |Quais são os efeitos da instabilidade criada pela política externa dos EUA (tarifas, da saída de acordos, big techs) na soberania do Brasil?

    GA |

    A economia norte-americana é a mais poderosa do planeta, não é comparável a nenhuma outra, nem à chinesa. O dólar é moeda preponderante e não vislumbramos sua retirada do comando das finanças internacionais. Trump aplica taxas tarifárias de acordo com o seu humor criando uma situação de instabilidade que tem impacto na soberania de todos os países, mas em especial a do nosso país, pela nossa dependência em todas as dimensões, especialmente na financeira e tecnológica. Então, precisamos buscar desenvolver tecnologias e montar bancos de dados próprios, ter inteligência artificial generativa, ter sistemas organizados em língua portuguesa para termos maior acuidade no que fazemos, e para fazer pesquisa, avançar e participar desse boom tecnológico. A maneira como o Trump está sacudindo o comércio internacional, está ignorando os acordos, saiu do acordo de Paris sobre clima, fechou a USAID, está questionando todos os órgãos da ONU, empurra os países a fortalecer laços com outros países que sofrem problemas semelhantes e a olhar para a sua própria autonomia. O Brasil tem um longo caminho pela frente para a gente ter aquilo que seria chamado de soberania digital. Além disso, Trump está misturando esse debate muito fortemente com a questão política. Ele está tomando um lado ao defender e questionar a autonomia dos poderes do Brasil, como se alguém pudesse ir lá e brecar o Supremo. É uma interferência, além de desagradável, inédita na história; nunca vivemos uma situação como essa. A situação é bastante crítica e pode piorar, inclusive, já que está em curso o julgamento do ex-presidente Bolsonaro. Os Estados Unidos podem decidir novas sanções contra o Brasil, o que será extremamente prejudicial para a economia e para a vida das pessoas.

  • G |Há quem defenda que um caminho para conseguir mais independência em relação aos EUA é ter acordos com vários países diferentes, quase como se pulverizássemos a dependência. Melhor isso ou focar em inovação?

    GA |

    Uma decisão não se contrapõe à outra. Temos que batalhar muito fortemente para desenvolver as questões aqui. O Brasil, pelo tamanho, peso e capacidade, não pode se contentar em ser apenas um usuário de tecnologia. Porque o usuário não opina sobre as tendências ou sobre o futuro da tecnologia, sobre a regulamentação da inteligência artificial, por exemplo. Esse tipo de debate só existe entre os países que a desenvolvem. Se o Brasil não tem sistemas próprios e uma elaboração própria na área de inteligência artificial, dificilmente alguém vai levar suas sugestões a sério. Temos que fazer um grande esforço, sozinho ou com amigos. Pulverizar, o Brasil sempre pulverizou. As nossas exportações são pequenas para os EUA se comparadas a outros países e somos um país amigo de um número muito grande de nações, praticamente sem inimigos. Procurar novos aliados tem muito a ver com o curso atual impulsionado pelo Trump. Vários países estão sendo empurrados para os braços da China.

O que nós estamos vendo é um mundo em que as empresas definem para onde nós vamos

  • G |Além dos EUA e da China, que outros países têm soberania digital?

    GA |

    A China tem uma atividade muito forte e tenta aprofundar a sua independência. Vários países europeus estão correndo atrás do prejuízo, Inglaterra e França estão à frente. Eles contam com ativos e infraestrutura, com o controle de tecnologias que nós não temos mas muitos são dependentes também das plataformas americanas, como Google, Microsoft, Facebook. A grande empresa de armazenamento de dados do mundo é a Amazon. E muitos governos, mesmo esses avançados, são muito dependentes dessas empresas. Agora, sempre bom lembrar que, apesar de dependentes, eles têm uma situação melhor do que a nossa, estão mais protegidos, têm mais ativos tecnológicos, mais capital, mais possibilidade de investimento e estão correndo atrás. Hoje os planos de construção de data centers nacionais europeus são muito fortes hoje. Um data center não é só um galpão de armazenamento de dados, você precisa ter muita tecnologia e eles são agressivos ao meio ambiente porque consomem consomem muita água e energia. Os modelos que nós temos hoje de inteligência artificial são grandes consumidores de energia, de água, de metais cuja extração é muito agressiva ao meio ambiente. Muita gente acha que a inteligência artificial é imaterial, mas está longe disso.

  • G |O quanto a inteligência artificial acirrou esse debate?

    GA |

    O Brasil está até oferecendo as suas vantagens de água e energia mais barata para poder atrair investimento em data centers, uma tecnologia que não domina. Não há grandes estudos sobre o impacto que isso pode ter sobre água e eletricidade aqui, muita gente questiona a viabilidade desse fornecimento, mas o Brasil precisa disso. A situação é tão crítica que o governo federal e os estaduais armazenam os seus dados e os das pessoas, ultrassensíveis, em bancos de dados de grandes empresas. Por isso que é fundamental trabalhar no sentido de ter autonomia, chamar as universidades e as empresas para que a gente desenvolva sistemas de inteligência artificial, sistemas digitais mais avançados.

     

  • G |Uma coisa que chama atenção é que, quando falamos em soberania, pensamos em países. Mas, vivendo na era dos bilionários da tecnologia, as big techs são quase como países…

    GA |

    Dependendo da maneira como você olha, eles são mais do que os países. As big techs investem em tecnologia valores muito superiores do que um país como o Brasil consegue. Elas têm um poder de fogo muito grande de determinar o nosso gosto, as tendências da moda, grande parte da nossa vida, como a gente se relaciona, como a gente faz amigos, como a gente faz inimigos. Essa não é uma situação agradável para quem deseja a construção de sociedades livres. O caso mais típico é essa explosão de aplicativos de fazer amizade, que pega uma parte grande da adolescência. Por um lado, eles estão sozinhos, sem ter com quem dialogar, com quem conversar, são tímidos, não tem amigos. Por outro, eles acabam enxergando os sistemas computacionais como seus amigos. Os sistemas não são amigos de ninguém, eles são computadores, algoritmos, dados estatísticos trabalhados que parecem ser humanos.

  • G |E para conter isso, regulação?

    GA |

    Sem regulação, não há limites. O que nós estamos vendo é um mundo em que as empresas definem para onde nós vamos.

Um assunto a cada sete dias