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Ilustração de Bruno Senise

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Reportagem

O Airbnb está prestes a mudar?

Foco de protestos e restrições pelo mundo, relacionados ao turismo excessivo, a plataforma de aluguéis tenta se reinventar ao lançar programa focado em experiências

Leonardo Neiva 29 de Junho de 2025

O Airbnb está prestes a mudar?

Leonardo Neiva 29 de Junho de 2025
Ilustração de Bruno Senise

Foco de protestos e restrições pelo mundo, relacionados ao turismo excessivo, a plataforma de aluguéis tenta se reinventar ao lançar programa focado em experiências

“Viajar costumava ser essa grande aventura. Você nunca sabia quem iria encontrar ou o que ia descobrir.” Assim se inicia uma das propagandas mais recentes do Airbnb, acompanhada de uma animação simpática que enfatiza como, ao longo do tempo, o turismo foi se tornando uma espécie de checklist de coisas para ver e lugares a visitar. “Mas o mundo continua cheio de maravilhas. Você só precisa de uma maneira melhor de encontrá-las.”

É aí que entra o produto que a maior plataforma de aluguéis por temporada do mundo vem anunciando: as Experiências Airbnb. Um serviço que promete te levar para fazer ramen com um chef premiado, visitar templos escondidos na companhia de um antropólogo, mergulhar no jazz underground com um baixista de renome ou apreciar a catedral de Notre Dame com uma das profissionais que ajudaram a restaurá-la.

Mas tudo isso significa que a plataforma está mudando seu foco da oferta de aluguéis para algo distinto? De acordo com a própria empresa, as novidades organizadas por moradores locais “representam uma evolução natural do Airbnb” para “se manter alinhado a experiências cada vez mais autênticas e personalizadas”, diz a Gama a diretora-geral do Airbnb para a América do Sul, Fiamma Zarife, em respostas enviadas por e-mail.

Ela afirma também que agora os hóspedes podem reservar de forma simples pelo app estadias, serviços e experiências em 650 cidades no mundo: desde coisas como aulas de culinária e passeios históricos até a possibilidade de jogar uma partida de vôlei de praia com a atleta olímpica Carol Solberg, no Leblon, ou celebrar os dez anos do grupo de K-pop Seventeen junto com a banda, na Coreia do Sul.

Esses anúncios não chegam num momento exatamente tranquilo para o Airbnb. A empresa tem sido há alguns anos alvo de protestos e restrições em grandes capitais do turismo global, como Barcelona — onde manifestantes chegaram a jogar água em turistas — e Nova York. No mesmo mês de maio em que o Airbnb divulgou suas novas experiências, o governo espanhol ordenou o bloqueio de mais de 65 mil anúncios de aluguel por temporada, que estariam infringindo as regras do país.

A plataforma está desde 2023 sujeita a uma nova regulamentação em Nova York, que proíbe aluguéis por períodos inferiores a um mês, entre outras restrições. Mais cidades visadas por turistas principalmente na Europa, como Lisboa, Florença, Paris e Amsterdã, também impuseram leis mais rígidas ao modelo de negócio da plataforma.

As reclamações variam bastante, de questões de segurança, excesso de turistas e aumento do lixo àquelas que talvez sejam as principais queixas dos moradores desses centros urbanos: a diminuição na oferta de imóveis, a especulação imobiliária e um salto considerável nos preços de aluguéis — o que tem tornado viver em determinadas regiões algo impraticável financeiramente.

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Especulação e desconexão

Esse fenômeno não vem acontecendo apenas em cidades estrangeiras. “Vemos isso no Rio de Janeiro e em São Paulo de maneira clara”, afirma o professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ Luiz Cesar Ribeiro, que coordena o instituto de pesquisa Observatório das Metrópoles. “O Rio tem hoje uma elevação do preço dos imóveis, seja para compra ou aluguel, fortemente concentrada nas áreas mais buscadas pelo turismo, embora o Airbnb esteja disseminado por toda a cidade. E esse impacto se repete em outras cidades.”

Ainda que existam concorrentes como o Booking, que também atua no mercado de aluguel por temporada, o Airbnb acabou se tornando a principal face desse modelo devido ao seu tamanho e pioneirismo no setor. Proposta que, para muitos turistas, acaba sendo uma alternativa mais em conta do que os hotéis tradicionais.

De acordo com Ribeiro, a elevação nos preços dos aluguéis acontece de duas formas principais. A primeira é que a maior demanda e oferta de contratos de curta duração pode fazer rarear a existência de aluguéis de longo prazo nessas regiões, elevando os preços. Outra tem a ver com a especulação imobiliária cada vez mais disseminada envolvendo a plataforma.

Você cria uma população que não tem nenhuma raiz naquele bairro, uma população sem nenhuma relação com a cidade

Além de edifícios erguidos pensando nessa vocação turística, o pesquisador aponta que investidores têm, em cidades como São Paulo, adquirido a preços baixos imóveis destinados à moradia social já com a intenção de alugá-los nessas plataformas.

“O governo deu uma série de incentivos fiscais urbanísticos para que os construtores fizessem moradias em áreas mais centrais, para atrair para essas regiões pessoas antes obrigadas a morar nas periferias”, explica Ribeiro. “Porém, o novo boom imobiliário nessas áreas foi impulsionado por investidores que compraram esses imóveis justamente para alugar, por meio de todo um mecanismo obscuro envolvendo construtoras, financiadores e as próprias prefeituras.”

Ribeiro acrescenta que essa atuação tem acelerado a gentrificação de certas regiões das grandes cidades, aliada a um fenômeno de esvaziamento urbano e perda de sentido das comunidades — uma intensificação do turismo em massa que faz com que as populações locais percam a relação com suas próprias cidades.

“Em Lisboa, houve recentemente uma manifestação de hostilidade a esse turismo de massa, que descaracteriza completamente a cidade”, conta o docente. “Você cria uma população que não tem nenhuma raiz naquele bairro, uma população sem nenhuma relação com a cidade.”

Dobrando a aposta

No livro “As Perfeições” (Todavia, 2025), o escritor italiano Vincenzo Latronico descreve o cotidiano de um casal de nômades digitais, cuja própria existência se confunde com a ascensão de aplicativos e modelos digitais como o do Airbnb. Num momento em que os personagens buscam mais autenticidade em suas vidas, a plataforma se torna crucial para marcar uma viagem supostamente transformadora à Sicília.

Mas o que eles encontram nessa busca acaba pairando num meio termo entre os clichês turísticos usuais e o que se imagina da tal experiência autêntica: “O Airbnb oferecia apenas acomodações turísticas cafonas e muito caras ou apartamentos escuros e empoeirados, cheios de móveis que eram evidentemente de um parente morto. Pouquíssimos tinham vista para o mar”, descreve um trecho da obra.

A segunda opção poderia parecer sombria para alguns, mas ao casal soa como um “sinal animador”. Na busca por “algo especial cujas particularidades ainda não tivessem sido aniquiladas pela internet”, no entanto, acabam vivendo meses infelizes. Em vez da idealizada vida real dos vilarejos da região — que, na cabeça deles, incluiria pescadores e idosos jogando baralho na praça —, encontram tédio e “grupos de adolescentes com corpos rechonchudos e motos barulhentas”.

Segundo o professor do curso de lazer e turismo da USP Thiago Allis, que tem foco nos estudos urbanos e de mobilidades, o Airbnb vende desde seus primórdios essa visão idealizada de “viver como um local”. “É curioso porque, quanto mais turismo a gente tem, mais cresce essa tendência de não querer ser identificado como turista. Então, o Airbnb vem com a promessa de oferecer hospedagem para as pessoas que querem se misturar com essa comunidade e não performar uma rotina de turismo.” Ideia reforçada por propagandas como a citada no início deste texto, que propõe viagens fora do circuito tradicional.

Allis considera a promessa ingênua, já que boa parte das pessoas vai acabar viajando aos mesmos lugares e visitando pontos muito semelhantes. Ela vem na esteira de uma visão estereotipada da figura do turista, que cresceu com o surgimento do turismo em massa. “Tem uma parcela das pessoas que quer continuar viajando cada vez mais, só que com esse desejo de se diferenciar.”

Quanto mais turismo a gente tem, mais cresce essa tendência de não querer ser identificado como turista

Portanto, nesse sentido, a nova fase de oferta de experiências e serviços pelo Airbnb significaria apenas a expansão e aproveitamento de um modelo que já existe desde o princípio da plataforma.

“O argumento parece o mesmo: venha participar de experiências interessantes porque tem um monte de gente fazendo coisas que você nem imaginava. Por seu alcance, a plataforma é uma grande vitrine para que as pessoas vendam o que quiserem, desde curso de fotografia, aula de culinária, ioga no Minhocão… Então, o Airbnb se beneficia de ter uma plataforma conhecida, assim como o Uber faz, e media oferta e demanda.”

O caminho da lei

Nas cidades brasileiras, a regulamentação do Airbnb e outras empresas do setor ainda engatinha na comparação com lugares como Barcelona, onde a prefeitura anunciou que deve eliminar até 2028 todos os seus 10 mil apartamentos turísticos de curto prazo. Porém, algumas regras têm avançado também por aqui.

Em São Paulo, um decreto recente da prefeitura proíbe que apartamentos de baixa renda sejam alugados pela plataforma. Um novo projeto de lei no Rio também propõe regulamentar as atividades da empresa. Já a proposta de reforma do Código Civil, que hoje tramita no Senado, deve permitir que condomínios residenciais proíbam a oferta de aluguéis de curta temporada em suas dependências.

O advogado Thomaz Whately, coordenador da comissão de condomínios do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim), aponta para os riscos à segurança e ao bem-estar dos moradores em condomínios cujos proprietários alugam indiscriminadamente suas casas. “Vemos casos como o de sujeitos que fazem festa até as quatro da manhã. Ou até inúmeras ocorrências de arrastões”, exemplifica.

Mundo afora, ele cita o exemplo de Paris, que restringe a um máximo de 120 dias por ano os aluguéis do tipo, e de cidades como Berlim e Toronto, que exigem licenças especiais para alugar nesse modelo.

Whately reforça a necessidade de uma regulamentação para essas plataformas, até para que não haja uma concorrência desleal com outros modelos de hospedagem tradicionais e que já constam nas leis. E, embora destaque a importância de não coibir totalmente essa modalidade de aluguel, hoje relevante para a economia e o turismo, defende a criação de tributações específicas que regulamentem essa contribuição. “Os hotéis hoje pagam ISS [Imposto Sobre Serviços] e uma série de outros tributos, enquanto o Airbnb, como intermediador da locação, não recolhe”, frisa o advogado.

De acordo com Whately, a demora para a regulamentação por aqui ocorre porque só recentemente casos envolvendo essas plataformas estão chegando aos tribunais. “E aí você não tem uma tipificação dessa atividade. Agora é que as pessoas estão começando a entender qual é a natureza desse contrato”, acrescenta.

A proibição de aluguéis em plataformas por investidores imobiliários e uma restrição do tempo mínimo de estadia já seriam mudanças menos dramáticas, que poderiam reduzir os impactos negativos, aponta o professor da UFRJ Luiz Cesar Ribeiro. Criar zonas de exclusão das plataformas em áreas muito residenciais ou de proteção histórica e cultural também, ele diz. O docente também defende que outra mudança crucial é regular a necessidade de registrar os locatários junto aos condomínios e também nas prefeituras.

Todos os caminhos levam a Roma

A diretora geral do Airbnb para a América do Sul, Fiamma Zarife, afirma que a plataforma “pode e deve fazer parte da solução, trabalhando em conjunto com as autoridades locais para criar regras específicas e baseadas em evidências”, combatendo os problemas, mas preservando os benefícios do aluguel por temporada.

A empresa, no entanto, faz críticas a “regulamentações muito restritivas”, citando os casos de Nova York e Barcelona, que, segundo Zarife, além de não aliviarem os problemas de habitação e turismo em massa, podem ter o efeito contrário. “Em Nova York, o aluguel de longa temporada subiu 3,4% em 11 meses após a regulamentação. Em Barcelona, após 10 anos de restrições, houve déficit habitacional recorde e alta nos preços de aluguéis de longa temporada”, aponta.

O professor de turismo da USP Thiago Allis considera que as reações à plataforma devem continuar acontecendo no mundo todo, mas sempre a nível local. E, apesar de gerarem algum tipo de impacto na oferta de aluguéis, na visão do pesquisador, dificilmente vão causar uma mudança mais profunda nesse modelo de negócio.

“O Airbnb vai se ajustando para continuar fazendo dinheiro”, afirma Allis, para quem a existência descentralizada dessas plataformas tecnológicas dificulta seu acionamento na Justiça. Então, se lá em 2023, frente ao aumento das restrições no mundo e à possibilidade de uma crise imobiliária, o CEO do Airbnb, Brian Chesky, afirmou que o modelo do Airbnb estava quebrado, Allis aponta que “a estrutura do negócio até hoje não mudou”.

A empresa teve um crescimento de 27% por aqui só no primeiro trimestre e reforça essa visão de que o modelo vai continuar o mesmo — e provavelmente se ampliar: “Os fortes resultados do Airbnb no primeiro trimestre de 2025 demonstram a resiliência e a adaptabilidade do modelo da plataforma — independentemente do que esteja acontecendo no mundo, as pessoas continuam escolhendo o Airbnb. A companhia está focada no crescimento a longo prazo e na expansão para além das acomodações.”

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