Por que jogadores LGBT não têm vez no futebol? — Gama Revista
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Reportagem

Por que jogadores LGBT não têm vez no futebol?

Com poucos atletas assumidos e Copa em país avesso aos direitos LGBTQIA+, futebol resiste à inclusão e segue oprimindo orientação sexual de atletas e torcedores

Leonardo Neiva 20 de Novembro de 2022

Por que jogadores LGBT não têm vez no futebol?

Com poucos atletas assumidos e Copa em país avesso aos direitos LGBTQIA+, futebol resiste à inclusão e segue oprimindo orientação sexual de atletas e torcedores

Leonardo Neiva 20 de Novembro de 2022

Quando se reconheceu como homossexual, uma das primeiras coisas de que o goleiro da elite do futebol brasileiro Emerson Ferretti, 51, se deu conta foi de que precisaria esconder sua sexualidade para sobreviver nesse ambiente. “Joguei até os 35 e depois continuei exercendo atividades ligadas ao futebol, então sempre precisei estar atento ao meu comportamento para que minha orientação sexual não ficasse implícita”, conta o ex-jogador, que teve passagens marcantes pelo Grêmio e Bahia. “Porque realmente as portas se fecham para um atleta gay em atividade.”

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Foi só há poucos meses, em agosto de 2022, fora dos gramados há mais de 15 anos, que o ex-atleta gaúcho falou abertamente sobre sua sexualidade para o podcast “Nos Armários dos Vestiários”, da Globoplay. A decisão, no entanto, não foi coisa de impulso ou de última hora. Como o próprio Ferretti conta, foi resultado de um processo de duas décadas, com acompanhamento psicológico, em que o atleta trabalhou a autoaceitação.

As conversas para participar do programa também levaram mais de dois anos. “Chegou um momento em que precisei decidir se falava ou não.” A revelação, diz o ex-jogador, foi motivada pela necessidade de deixar um legado fora de campo e iniciar um debate mais aberto sobre o tema, que ainda é tabu no futebol masculino. “Até porque não sou o único gay no futebol”, completa.

Muito mais do que em outras modalidades esportivas, no futebol masculino o silêncio em relação à presença de jogadores LGBTQIA+ é uma regra não escrita, mas seguida à risca. Dos 831 atletas convocados para a Copa do Mundo do Qatar, não há nenhum assumidamente gay. Se ampliarmos ainda mais o escopo e olharmos para o mundo todo, dá para contar nos dedos — e talvez nos de uma mão só — a quantidade de jogadores profissionais em atividade que tenham se revelado homossexuais.

E os motivos para isso não são segredo. Quando os jornais noticiaram que o jogador Kylian Mbappé, estrela badalada do Paris Saint-Germain e da seleção francesa, estaria namorando a modelo trans Inès Rau, houve uma enxurrada de comentários preconceituosos e debochados sobre o atleta nas redes sociais. Mais perto de casa, o ex-jogador do São Paulo Richarlyson sofreu ao longo de toda a carreira com o preconceito das torcidas. Só também recentemente, já aposentado, ele declarou ser bissexual no mesmo podcast.

“Assim como no caso do Richarlyson, alguns atletas falaram depois de se aposentar”, aponta o jornalista João Abel, autor do livro “Bicha! – Homofobia estrutural no futebol” (Primeiro Lugar, 2019). “Os jogadores têm medo de uma restrição que prejudique a carreira deles. Por isso, evitam expor suas vidas privadas para que não atrapalhem a vida pública e profissional.”

Esse temor não chega a ser descabido. Abel sugere olhar como exemplo o jogador inglês Justin Fashanu (1961-1998), o primeiro a se assumir gay na história do futebol. Após a revelação, em 1990, Justin passou a sofrer preconceito de outros atletas dentro do vestiário, vendo sua carreira no esporte afundar a partir dali. Após uma tentativa fracassada de retornar à forma na liga americana e pouco após uma acusação de agressão sexual, ele acabou se matando. “Me dei conta de que eu havia sido condenado. Não quero mais ser uma vergonha para meus amigos e minha família”, escreveu numa carta encontrada após sua morte.

Segundo a psicóloga do esporte Annie Kopanakis, no ambiente do futebol, os tabus relacionados à sexualidade influenciam a saúde mental dos jogadores. “Muitos lidam com dificuldades e cerceamento das suas orientações sexuais”, afirma a profissional, que atua junto aos atletas da equipe Ferroviária, de Araraquara, no interior de São Paulo. Kopanakis também destaca a importância de um acompanhamento psicológico desde a formação dos atletas, para construir um esporte que seja possível a todos. Ou seja, combatendo a homofobia, o racismo e o sexismo.

Abel frisa que, embora outros casos estejam aparecendo no mundo, eles raramente ocorrem nos eixos de maior visibilidade do esporte, como no exemplo de Fashanu. Um dos mais recentes é o do futebolista australiano Josh Cavallo, que se assumiu em 2021.

Mas nem tanta coisa mudou nas últimas décadas. Embora tenha dito que o fez para que outros atletas se sentissem confortáveis para seguir o exemplo e falar abertamente sobre sua sexualidade, não demorou para que o jogador se incomodasse com as ameaças e insultos recorrentes tanto nos estádios quanto nas redes sociais. “Como sociedade, isso demonstra que ainda enfrentamos esses problemas em 2022. O ódio nunca vencerá”, escreveu num longo post de desabafo em janeiro.

Esporte de macho

Além dos poucos atletas que tocam no assunto, a questão da orientação sexual no futebol voltou a ganhar as manchetes com a realização da Copa do Mundo do Qatar. O país, além de extremamente conservador, tem como base a Lei Islâmica, que considera a homossexualidade ilegal. As autoridades locais se comprometeram a aceitar pessoas de todas as orientações sexuais no país durante o período, mas sob a emblemática condição de que eles devem seguir as regras.

Por lá, a “atividade homossexual” pode ser punida com prisão ou até apedrejamento. Em novembro, o ex-jogador da seleção e embaixador do Qatar na Copa do Mundo definiu a homossexualidade como “dano mental”. Por outro lado, capitães de seleções como Inglaterra e Alemanha usarão braçadeiras de arco-íris durante os jogos, num protesto a favor dos direitos da população LGBTQIA+ e contra o tratamento polêmico do tema no evento.

Levando em conta as discussões levantadas no mundo em relação ao tema, Abel reforça que o futebol foi constituído ao longo da história como exclusivamente masculino, e isso não apenas no Brasil. Ainda assim, por aqui há algumas circunstâncias agravantes. De 1941 até 1979, por exemplo, vigorou um decreto assinado pelo então presidente Getúlio Vargas (1882-1954) que proibia as mulheres de praticarem a modalidade.

“A homofobia no futebol é um segundo passo. O primeiro é o machismo e a misoginia”, destaca o jornalista. Não à toa, a primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino só foi acontecer em 1991, mais de 60 anos após o pontapé inicial no campeonato masculino. O primeiro Brasileirão de Futebol Feminino também vai completar apenas uma década de existência em 2023. Por todos esses aspectos, Abel afirma que a desconstrução da homofobia no futebol passa por um movimento, que já está acontecendo, de reivindicação desse espaço dentro da modalidade, desafiando a hegemonia masculina e heteronormativa. “Só homens jogavam, consumiam e falavam sobre futebol. Agora estamos começando a mudar isso.”

A verdadeira inclusão

Embora tenham ganhado destaque no esporte há pouco tempo, as jogadoras já passaram na frente dos atletas homens na questão da diversidade e inclusão. Atletas de seleção como a própria Marta e a atacante Cristiane vivem relações homoafetivas de forma aberta, sem que isso tenha gerado polêmicas ou grandes reações preconceituosas por parte dos torcedores.

É um pouco mais simples, destaca Abel, devido à menor visibilidade na comparação com a modalidade masculina, simplesmente o esporte mais popular do planeta. “As atletas sentem mais segurança para falar sobre o assunto, assim como um jogador de vôlei ou basquete, por mais que também sejam esportes muito assistidos”, declara. Mas o jornalista também considera movimentos como esse essenciais para a mudança. “É importante porque acaba reverberando em outras modalidades.”

O fundador da torcida LGBTricolor, do Bahia, e do Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+, Onã Rudá, reforça que a luta não é para criar equipes ou campeonatos especificamente direcionados ao público LGBTQIA+. A verdadeira inclusão, segundo ele, acontece quando pessoas de outras orientações sexuais são aceitas tanto dentro quanto fora de campo, consumindo e acompanhando os clubes tradicionais.

O que também ajudaria a romper estereótipos ultrapassados como o de que somente homens héteros jogam e se interessam por futebol, que já vem sendo deixado para trás com os avanços da modalidade feminina. “Nossa função não é como a de uma torcida que vai a um estádio e monta uma tenda, uma fanfarra, uma bateria. Como movimento, nossa função é envolver as pessoas LGBTQIA+ em torno do clube”, diz Rudá em relação ao coletivo que fundou.

Marcando em cima

Gritos e ofensas homofóbicas ainda acontecem com alguma frequência em campeonatos como o Brasileiro. De acordo com um relatório realizado pela Canarinhos LGBTQ+, em 2020 e 2021 foram registrados ao menos 62 casos de homofobia no futebol nacional. No final do ano passado, o coletivo, que funciona também como um observatório de práticas discriminatórias, denunciou oito clubes por cânticos homofóbicos ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD). Recentemente, o grupo chegou inclusive a elaborar um guia para que torcedores LGBTQIA+ possam visitar o país da Copa em segurança.

Rudá afirma que, por mais que entidades do futebol apoiem o movimento, a mudança precisa partir também de dentro dos próprios clubes, embora a maioria ainda não demonstre interesse em gerar práticas mais inclusivas. “Os jogadores não têm garantia nenhuma de paz, continuidade da carreira e de vida. Enquanto a gente não tiver um trabalho nesse sentido dos clubes, vai demorar um pouquinho”, declara.

Para ele, mudar não é difícil, mas resvala numa falta de vontade generalizada no setor. Multas e condenações por práticas homofóbicas têm acontecido esporadicamente no STJD, mas, segundo Rudá, ainda não é suficiente. “A gente precisa ter uma ação eficiente, coesa, organizada e direcionada por parte dos agentes do futebol, os clubes. A impunidade acaba sendo amiga da criminalidade, da discriminação e da violência.”

Apesar das reações de chacota e as inibições de uma sociedade heteronormativa, quando os jogadores falam sobre o tema, acolhem pessoas que passam pela mesma experiência, mas não encontram brechas para viver sua sexualidade de forma saudável, diz a psicóloga Annie Kopanakis. Segundo ela, só com uma formação anti-homofóbica dentro dos próprios clubes, uma Justiça ativa e uma mídia atenta ao tema, o assunto deve de fato avançar. “Quantas pessoas falam disso nos meios de comunicação de forma realmente séria e comprometida? Como a lei anti-homofobia é aplicada nos estádios? E quantos clubes se dispõem a praticar uma formação que combata essa homofobia?”, questiona.

Para Emerson Ferretti, a mudança também precisa partir de atitudes e falas corajosas. Sua história, ele diz, serve como um exemplo que quebra estereótipos e preconceitos relacionados à presença LGBT no futebol: de que gay não sabe jogar, não se interessa por futebol e pode causar problemas ou situações constrangedoras nos vestiários.

“Joguei em clubes grandes, fui campeão, virei ídolo, ganhei prêmios individuais e parei quando quis parar”, declara Ferretti. “Quero que outros venham atrás e façam o mesmo que eu fiz. Só isso vai acabar levando a sociedade a naturalizar a situação, até que um atleta dizer que é gay não vai mais ser novidade nem virar notícia.”