O que é ter câncer hoje?
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

Por que os casos de câncer aumentam entre adultos jovens?

Histórico familiar não explica alta de casos, e consumo de alimentos ultraprocessados é apontado como fator central

Tereza Novaes 26 de Outubro de 2025

Por que os casos de câncer aumentam entre adultos jovens?

Tereza Novaes 26 de Outubro de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Histórico familiar não explica alta de casos, e consumo de alimentos ultraprocessados é apontado como fator central

Nas duas últimas décadas, o perfil de quem desenvolve câncer vem mudando. Antes uma doença típica da velhice, o número de casos em pessoas abaixo dos 50 anos aumentou 79%, entre 1990 e 2019, enquanto o número de mortes cresceu 27% no mesmo período, segundo levantamento publicado na revista científica “BMJ Oncology”, em 2023.

Os estágios dão a medida de quanto a doença se espalhou. “O estágio 1 é bem no início. Quando ele está um pouco maior, mas no órgão em que se originou, começa a ser chamado de estágio 2. Estágio 3, em geral, é quando o tumor está também nos gânglios. E, o estágio 4, significa que o tumor já foi para outros órgãos, as metástases. E isso não quer dizer que o paciente não tenha mais chance de cura.”

A diferença é que elas são menores em comparação com o estágio 1. É justamente o que torna os exames de rastreamento essenciais. “A mulher precisa fazer mamografia, o homem deve fazer o toque retal e o exame de PSA, e o tabagista, realizar tomografia de tórax uma vez por ano”, lista Smaletz.

Câncer de intestino

Mama, pulmão, estômago e colorretal são os tumores com maior impacto entre adultos jovens, de acordo com o estudo, que analisou dados de 29 tipos de câncer em 204 países. Para 2030, a projeção global de novos casos deve subir mais 31% e as mortes, 21%.

O Brasil segue essa tendência principalmente com câncer de intestino, e outros primários do trato digestivo, e também o câncer de mama”, afirma a médica Maria Ignez Braghiroli, coordenadora do Comitê de Tumores Gastrointestinais Altos da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).

Ao mesmo tempo, há razões para esperança. “Os tratamentos têm evoluído muito”, destaca o oncologista Oren Smaletz, do Einstein Hospital Israelita. “Temos drogas novas, métodos cirúrgicos mais precisos e radioterapias mais eficazes. A imunoterapia e as terapias-alvo estão mudando os resultados que conseguimos obter com vários tipos de câncer.”

Esses avanços aumentam as chances de cura, sobretudo quando o diagnóstico é feito no início. “Na grande maioria dos casos, quanto mais precoce o estágio, maiores são as chances de cura”, explica o oncologista. “Um tumor detectado no estágio 1 pode ser tratado, às vezes, apenas com cirurgia, aumentando as chances de cura”, explica o oncologista.

Se fumar foi o vilão do câncer no século 20, os alimentos ultraprocessados podem ser o seu equivalente no século 21

No caso do câncer de cólon, ou de intestino, ele destaca a importância da colonoscopia, hoje recomendada a partir dos 45 anos. O exame permite identificar e retirar pólipos, um tecido que se assemelha a uma verruga, em geral benignos, antes que eles possam evoluir para tumores. “É custo-efetivo e evita cirurgias mais invasivas, já que durante o exame também são retirados os pólipos”, esclarece Smaletz.

Nos Estados Unidos, o colorretal é hoje a principal causa de morte por câncer em homens com menos de 50 anos e a segunda entre mulheres da mesma faixa etária, segundo a Sociedade Americana do Câncer. Chadwick Boseman, famoso por interpretar o rei T’Challa no filme “Pantera Negra”, morreu aos 43 anos, vítima da doença.

O que os médicos observam é que esses casos nem sempre estão ligados ao histórico familiar. “Infelizmente, já existem trabalhos mostrando uma incidência maior entre pessoas mais jovens. Na maioria das vezes, não é hereditário. Esses jovens provavelmente estão expostos a novos carcinógenos que ainda estão sendo estudados”, afirma Smalet.

Alimentação é o foco

Braghiroli explica que a frequência de casos ligados à predisposição genética é semelhante entre pessoas acima e abaixo de 50 anos. “O que tem mudado de forma mais marcante é o estilo de vida, especialmente obesidade, sedentarismo e qualidade da alimentação.”

Da mesma forma, Smaletz destaca o impacto negativo da alimentação ultraprocessada, associada à alteração da microbiota intestinal.

Há uma relação já bem caracterizada entre o consumo de ultraprocessados e o câncer de intestino. Além disso, o tabagismo continua a ser um grande problema e talvez seja o principal carcinógeno.” O médico também citou a relação entre obesidade e a maior incidência de câncer de mama, de estômago e a formas mais agressivas de câncer de próstata.

A pesquisadora Devi Sridhar, professora de saúde pública global da Universidade de Edimburgo, escreveu no jornal inglês “The Guardian” que os ultraprocessados podem desempenhar, neste século, o mesmo papel que o cigarro teve no anterior. “Se fumar foi o vilão do câncer no século 20, os alimentos ultraprocessados podem ser o seu equivalente no século 21”, alertou.

Um tumor detectado no estágio 1 pode ser tratado, às vezes, apenas com cirurgia, aumentando as chances de cura

“Mudamos muito a qualidade da alimentação, com maior ingestão de alimentos ultraprocessados e de bebidas alcoólicas, levando ao aumento do sobrepeso e da obesidade, fatores reconhecidos como determinantes para o desenvolvimento do câncer”, afirma o oncologista Roberto Gil, diretor-geral do Instituto Nacional de Câncer (INCA).

Segundo levantamento feito pelo G1 a partir de dados do sistema DataSUS, o número de diagnósticos de câncer em pessoas com menos de 50 anos cresceu quase quatro vezes (284%), entre 2013 e 2024, dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Os casos saltaram de 45,5 mil para 174,9 mil. Os tumores de mama, colorretal e fígado estão entre os que mais crescem entre jovens adultos, de acordo com a análise de dados feita pelo G1. O câncer de mama lidera os diagnósticos, com alta de 45% no período e mais de 22 mil novos casos anuais de mulheres de até 50 anos registrados no sistema público.

Não existem dados sobre diagnósticos realizados dentro do sistema privado de saúde.

Embora o INCA tenha contestado o levantamento, argumentando que, desde 2019, o aumento de registros estaria relacionado à melhoria na captação de dados, e não necessariamente ao aumento real de diagnósticos – tal alta seria reflexo da implementação de novas regras do sistema, o fato é que a sensação geral entre os médicos ouvidos para esta reportagem é, sim, de crescimento de casos câncer entre os menores de 50 anos no país.

“Há uma percepção subjetiva de que os casos estão surgindo mais cedo”, afirma o diretor-geral INCA.

Essa percepção inclusive pautou uma mudança importante no estudo sobre estimativa de novos casos no Brasil. O levantamento hoje trienal, realizado desde 1995, projeta o número de diferentes tipos de câncer e ajuda a orientar as políticas públicas. Segundo o estudo mais recente, relativo ao triênio 2023-2025, eram esperados 704 mil casos novos de câncer.

“A partir das próximas estimativas, nós vamos estratificar os dados por faixa etária justamente por causa dessa tendência”, destaca Gil.

Sabemos que entre 30% e 50% dos cânceres têm fatores de risco conhecidos e podem ser prevenidos

Câncer de mama

Hoje, por exemplo, cerca de 30% dos casos de câncer de mama ocorrem abaixo dos 50 anos. Recentemente, o SUS passou a garantir o acesso à mamografia para mulheres entre 40 e 49 anos. Se antes o exame era feito nessa faixa etária apenas com sintomas ou histórico familiar, agora ele está disponível mediante a uma decisão compartilhada da paciente com o médico.

“Ela tem o direito de fazer, mesmo não tendo nenhum sintoma. É o que se chama de rastreamento oportunístico ou rastreamento por demanda”, afirma Gil.

Dados do Panorama do Câncer de Mama revelam que, até dezembro de 2024, a cobertura mamográfica no Brasil era apenas de 24%, bem abaixo do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 70%. O estudo também apontou disparidades raciais alarmantes: 44% das mulheres pretas e pardas recebem diagnóstico tardio, contra 36% das brancas. Por isso, é necessário melhorar o acesso e a conscientização sobre a importância do rastreamento.

O desafio, portanto, é duplo: conter o avanço dos fatores de risco e ampliar o alcance dos programas de rastreamento. “Sabemos que entre 30% e 50% dos cânceres têm fatores de risco conhecidos e podem ser prevenidos”, reforça Roberto Gil. “É um trabalho de conscientização coletiva da população e dos profissionais de saúde.”

Esses casos precoces de câncer servem ainda de alerta: as escolhas feitas hoje, especialmente no prato e no cuidado com o corpo, podem ter reflexo direto nas próximas décadas. “As ações que o jovem toma agora vão repercutir 20 anos depois”, diz Gil.

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