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Conversas

Matheus Henrique Dias: "Quando entendermos melhor o câncer, curá-lo será muito mais fácil"

O biomédico brasileiro, pesquisador sênior do Netherlands Cancer Institute, propõe uma terapia revolucionária que estimula as células tumorais até o colapso, abrindo novos caminhos para resultados mais eficazes e menos agressivos

Ana Elisa Faria 26 de Outubro de 2025

Matheus Henrique Dias: “Quando entendermos melhor o câncer, curá-lo será muito mais fácil”

Ana Elisa Faria 26 de Outubro de 2025
Fotos: Arquivo pessoal

O biomédico brasileiro, pesquisador sênior do Netherlands Cancer Institute, propõe uma terapia revolucionária que estimula as células tumorais até o colapso, abrindo novos caminhos para resultados mais eficazes e menos agressivos

Às vezes, uma revolução começa por acaso. Foi o que aconteceu quando o biomédico paulista Matheus Henrique Dias estudava os mecanismos básicos da divisão celular. Ele — junto de colegas pesquisadores do Instituto Butantan — percebeu que células cancerígenas não se multiplicavam diante de um grande estímulo, mas se sobrecarregavam, entravam em colapso e morriam. O que parecia uma falha do experimento se revelou uma inovadora forma de pensar o tratamento do câncer.

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Hoje, aos 44 anos e à frente de uma equipe no Instituto Holandês do Câncer, o Netherlands Cancer Institute (NKI), onde está desde 2019, Dias trabalha para que sua pesquisa, nascida de um “erro” experimental, atraia cada vez mais atenção mundial.

O estudo, ainda sem prazo para o início dos ensaios clínicos, desafia décadas de terapias convencionais, como quimio e radioterapia, e vem sendo reproduzido por laboratórios em diversos países. A ideia, explica o cientista, é inverter a lógica. “Em vez de desligar os sinais que fazem as células se dividirem, a ideia é forçá-los até o limite”, diz. Nessa visão, a célula doente não é parada — ao contrário, ela é acelerada.

A expectativa é que essa abordagem reduza os efeitos colaterais comuns dos tratamentos clássicos, que matam também células saudáveis. Ela pode trazer benefícios especialmente para a oncologia pediátrica, já que muitas crianças convivem por toda a vida com as sequelas da terapêutica.

Em entrevista a Gama, Dias fala sobre a longa caminhada entre descoberta e a aplicação clínica, as dificuldades de fazer ciência no Brasil e a importância de comunicar melhor o que acontece dentro dos laboratórios. “Não existe nenhuma conspiração das farmacêuticas para esconder a cura do câncer”, afirma. O que há, comenta ele, é uma grande ineficiência dessa indústria em testar novas ideias.

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Do trabalho na borracharia do pai em Cotia à faculdade, passando pelo doutorado em bioquímica na Universidade de São Paulo (USP) e pelos pós-doutorados no Instituto Butantan, na Universidade de Liverpool e no NKI, Matheus Henrique Dias reflete também sobre os rumos da oncologia e o papel dos hábitos saudáveis na prevenção da enfermidade.

Para ele, a ciência vive um momento de virada. “Durante muito tempo, o câncer foi visto única e exclusivamente como uma doença genética. Agora começamos a entendê-lo como um desequilíbrio do organismo todo. Quando entendermos melhor o câncer, curá-lo será muito mais fácil.”

  • G |Você pode explicar, em linhas gerais, a sua pesquisa? Em vez de frear o câncer, o experimento que você vem trabalhando acelera a divisão das células até que elas colapsem? Como funciona isso?

    Matheus Henrique Dias |

    No final do meu doutorado, início do pós-doc, eu ainda estava no Brasil estudando como as células se dividem dentro do ciclo celular normal — não era algo focado no câncer. Colocamos nessas células um fator de crescimento que deveria fazer com que elas se dividissem mais. Mas o resultado foi o oposto: as células começaram a se dividir menos. No entanto, a célula que usamos naquela ocasião era uma célula de câncer. No começo, não entendemos o que estava acontecendo, parecia um erro do experimento. Com o tempo, percebemos que, por serem células de câncer, elas já tinham esses sinais de crescimento muito ativados. Quando aumentamos ainda mais esse sinal, elas ficavam sobrecarregadas, superaqueciam, entravam em pane, e se dividiam menos.

  • G |Esse, então, foi o insight para transformar um experimento que tinha outros objetivos em uma linha de pesquisa que transforma o tratamento do câncer?

    MHD |

    Compreendemos que poderíamos usar a mesma lógica em diferentes tipos de câncer. Bastava só procurar a droga adequada para fazer a mesma ativação em outros tipos de tumor. A grande sacada foi inverter o que a terapia convencional procura fazer e, em vez de desligar os sinais que fazem as células se dividirem, a ideia é forçá-los até o limite. Como estamos trabalhando com uma perspectiva completamente diferente, temos a esperança de que os pacientes não tenham efeitos colaterais. Isso porque, enquanto as terapias tradicionais atingem também as células normais, essa estratégia atua de forma mais específica. Outras coisas, obviamente, podem acontecer, tudo precisa ser testado, mas provavelmente os efeitos serão diferentes e, esperamos, menores. É nesse sentido que as coisas estão avançando bastante.

  • G |Em que pé está a pesquisa? Já estão sendo feitos testes em pacientes?

    MHD |

    Do ponto de vista racional [justificativa que explica por que um estudo é necessário e importante], a pesquisa avançou bastante. Hoje, outros laboratórios também já exploram essa abordagem e há artigos interessantes sendo publicados que apontam para a mesma maneira de lidar com o câncer. Em relação ao nosso projeto, temos o protocolo e toda a parte ética prontos, mas ainda não conseguimos iniciar os ensaios clínicos. Dependemos de duas farmacêuticas para fornecer as drogas, que ainda não estão disponíveis. Mesmo que quiséssemos comprar os compostos e pagar por todo o ensaio, não há como. Estamos em contato com outras empresas que fabricam drogas semelhantes, mas o problema é o mesmo: não são companhias grandes e elas têm um determinado foco. A gente precisa convencê-las de que vale a pena investir no ensaio clínico. É um processo altamente demorado. Cada e-mail demora, em média, um mês para ser respondido, as reuniões demoram para acontecer. Está completamente fora das nossas mãos.

Em vez de desligar os sinais que fazem as células se dividirem, a ideia é forçá-los até o limite

  • G |O que te levou para a Holanda?

    MHD |

    Fiz o pós-doc no Brasil e, depois, passei um tempo no Reino Unido com um projeto da Fapesp relacionado ao pós-doc. Quando voltei, ainda investigando essa abordagem, percebi que a ideia era grande e promissora, mas também bastante radical, por ir na contramão da terapia convencional. Para promovê-la e demonstrar no laboratório que ela funciona, em um cenário de maior visibilidade e com mais chances de chegar aos pacientes, achei que seria melhor que a pesquisa estivesse em um ambiente internacional. Foi por isso que decidi vir para a Holanda, para um laboratório da linha de frente da oncologia mundial. Eu sabia que essa abordagem acabaria ganhando grande visibilidade, e foi o que aconteceu. Hoje, ela é estudada por diversos laboratórios e faz parte de uma chamada mundial que oferece 25 milhões de dólares para um consórcio de pesquisadores. O projeto tomou uma proporção gigante, exatamente como eu esperava: espalhar a ideia o máximo possível para ajudar as pessoas quanto antes.

  • G |Não daria para fazer a pesquisa no Brasil?

    MHD |

    Sim, daria, mas não na mesma velocidade. Existem excelentes cientistas trabalhando no Brasil, e é possível fazer ciência de qualidade no país. No entanto, esse tipo de ciência, que depende de reagentes e experimentos em laboratório, naturalmente leva mais tempo no Brasil, não só pela falta de recursos, mas porque os reagentes, por exemplo, demoram quatro ou cinco vezes mais para chegar às mãos dos pesquisadores. Esse é um fator importante que acaba atrasando o trabalho. Outra questão relevante é a visibilidade. Não basta ter uma boa ideia, é preciso que ela seja vista e compartilhada para crescer. Decidi sair do Brasil para dar mais exposição à ideia, para que ela pudesse sair das minhas mãos e do laboratório onde eu trabalhava. Era importante fazê-la alcançar um patamar maior dentro do mesmo espaço de tempo.

  • G |A pesquisa é voltada para o tratamento de algum tipo de câncer específico?

    MHD |

    Não, na verdade, o racional por trás da pesquisa é válido para qualquer câncer porque ele foca uma característica que todos os cânceres têm, o descontrole de proliferação celular. Mas, naturalmente, é impossível testar todas as formas de uma vez. Só é possível fazer ensaios clínicos se há dados sólidos que digam que aquilo tem boas chances de funcionar, e o projeto que a gente desenvolveu é focado em câncer colorretal. Por isso, faz mais sentido que a gente teste primeiro nesse tipo de câncer. Existem outros laboratórios testando, por exemplo, em leucemias. Acabei de fazer uma transição de carreira e, além de trabalhar no NKI também estou no Princess Máxima Center, um hospital de oncologia pediátrica aqui na Holanda também, onde estou investigando mais a fundo essa mesma abordagem em sarcomas pediátricos.

  • G |Qual a importância de levar o estudo para a área do câncer infantil?

    MHD |

    Acho que vai ser ainda mais importante a pesquisa com esse foco porque um dos problemas do câncer pediátrico é que, mesmo que a criança seja curada, ela terá efeitos adversos do tratamento que duram para a vida inteira. E não é isso que devemos buscar. As crianças devem ser curadas e ter a possibilidade de crescer saudáveis, sem problemas como a infertilidade, além de questões cardíacas e renais. Será uma grande vantagem usar essa abordagem em cânceres pediátricos.

  • G |Como você avalia o atual momento da pesquisa oncológica no mundo?

    MHD |

    É difícil avaliar tudo o que acontece simultaneamente, mas percebo uma mudança na forma de enxergar o câncer. Durante muito tempo, o câncer foi visto apenas como uma doença única e exclusivamente genética: bastava acumular mutações o suficiente para que surgisse, e o tratamento se baseava em drogas que inibiam a proliferação celular. Hoje, há novas abordagens, como as imunoterapias, que revolucionaram o tratamento, embora funcionem apenas para uma população pequena de pacientes. A maneira de pensar o problema está mudando. Estamos saindo de uma visão centrada apenas nas mutações e passando a considerar a saúde do organismo todo. Cada vez mais se entende que exercício físico, alimentação equilibrada e hábitos saudáveis ajudam não só na prevenção, mas também durante o tratamento. O câncer deixa de ser visto como algo restrito à célula tumoral e passa a ser entendido como um desequilíbrio do organismo todo.

  • G |Em tempos de desinformação, como você enxerga o papel dos cientistas na comunicação com o público, principalmente em relação às diversas fake news relacionadas ao câncer?

    MHD |

    De certa forma, é até compreensível que as pessoas sejam céticas em relação à ciência e às diferentes notícias que leem. Nós, cientistas, tendemos a estar muito focados no trabalho, porque é uma necessidade da área, e acabamos dedicando menos tempo à comunicação com o público, a mostrar o que fazemos e explicar de um modo que todos entendam. Mas acredito que temos obrigação não só com a ciência, mas também com a informação. Precisamos de um contato maior com a sociedade para que a sociedade também se aproxime da ciência. Se conseguirmos fazer isso de maneira mais eficiente, diminuiremos a desinformação, porque as pessoas estarão mais informadas sobre o que realmente acontece em um laboratório. Assim, elas mesmas perceberão que muitas teorias da conspiração não fazem sentido e que problemas complexos, como o câncer, envolvem desafios difíceis de enxergar de fora. Há cientistas, inclusive brasileiros, que fazem esse diálogo de forma brilhante, mas ainda precisamos avançar e entender melhor quais são os anseios da sociedade em relação à ciência.

  • G |Voltando para o início da sua trajetória profissional, como foi a decisão de cursar biomedicina? Você sempre gostou da área da saúde?

    MHD |

    Nunca tinha pensado em fazer biomedicina. Gostava de biologia, química e física, mas, quando terminei o colegial, ainda não sabia o que queria. Entrei na faculdade três anos depois do colegial, não foi imediatamente como para a maioria das pessoas. Lembro de ter decidido quando percebi que queria contribuir mais para a sociedade. Pensei em como poderia fazer isso e lembrei do que gostava. Vi um folheto com diferentes cursos e percebi que me interessava por biologia, mas não tanto por plantas, e sim por pessoas. Assim, escolhi cursar biomedicina. Não foi uma decisão muito planejada.

Estamos saindo de uma visão centrada nas mutações e passando a considerar a saúde do organismo todo

  • G |Como foram esses três anos de intervalo entre colégio e universidade?

    MHD |

    Meu pai sempre teve uma borracharia, então, de quando saí do colegial até começar na universidade, eu trabalhei na borracharia. Enquanto trabalhava, veio o pensamento de que poderia fazer alguma coisa diferente do que fazia ali. Lembro exatamente o dia que isso aconteceu. Estava lá sem fazer nada, olhando para o tempo, e pensei: “Acho que deveria fazer outra coisa da minha vida. Eu posso contribuir de uma maneira diferente”. Foi exatamente nesse momento que decidi começar a faculdade. É uma história estranha, foi quase como uma epifania.

  • G |Por que você decidiu se especializar em oncologia?

    MHD |

    Na verdade, eu não decidi [risos]. Estava estudando como as células se dividem — os mecanismos mais básicos da divisão celular —, quando o tema do câncer apareceu no caminho. E era impossível ignorá-lo. Percebi que havia ali um potencial enorme de contribuir para a resolução do problema do câncer. Nem foi uma escolha deliberada. Quando entendi o que estava acontecendo e as implicações daquilo, ficou óbvio que eu não podia fazer nada além de dedicar toda a minha carreira a estudar o tema e tentar fazer essa ideia funcionar.

  • G |O que você acha que seria legal para as pessoas saberem — que talvez ainda não saibam — sobre o câncer e as possibilidades de cura da doença?

    MHD |

    Voltando à desinformação, acho importante dizer que não existe nenhuma conspiração das farmacêuticas para esconder a cura do câncer. Trabalho há algum tempo negociando com o setor e posso afirmar que o que há, de fato, é uma grande ineficiência dessa indústria em testar novas abordagens. Mas não uma conspiração. Qualquer farmacêutica que descobrisse uma droga realmente capaz de curar pessoas poderia cobrar o que quisesse e ganharia muito mais do que tentando esconder essa cura. Também vale destacar que há uma infinidade de pessoas no mundo dedicadas a melhorar os tratamentos e alcançar a cura para muitos pacientes. O problema é extremamente complexo e envolve várias etapas e controles extensivamente demorados. A falta de solução até hoje se deve, em parte, ao fato de que não entendíamos bem o problema. Agora estamos começando a compreendê-lo melhor. Quando entendermos melhor o câncer, curá-lo será muito mais fácil.

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