"Mulheres experimentam de forma diferente as violações de seus direitos" — Gama Revista
Dá pra comemorar, mulher?
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Lucas Jatobá/Anistia Internacional Brasil

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Conversas

Jurema Werneck: 'As mulheres experimentam de forma diferente as violações de seus direitos'

Médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, ela fala sobre o regime patriarcal e racista que rege o país e sobre seus efeitos sobre os direitos da mulher

Isabelle Moreira Lima 06 de Março de 2022

Jurema Werneck: ‘As mulheres experimentam de forma diferente as violações de seus direitos’

Isabelle Moreira Lima 06 de Março de 2022
Lucas Jatobá/Anistia Internacional Brasil

Médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, ela fala sobre o regime patriarcal e racista que rege o país e sobre seus efeitos sobre os direitos da mulher

Jurema Werneck é muito direta. Logo na primeira resposta desta entrevista, a diretora-executiva da Anista Internacional (AI) no Brasil desenrola o mapa do território que vamos explorar: não dá para falar em “mulher”; as mulheres são diversas, bem como são seus sofrimentos. Todas padecem sob o patriarcado, mas dado que estamos em um país racista, as negras, indígenas e ciganas têm muito mais a enfrentar.

A carioca completou cinco anos à frente da AI na segunda-feira de Carnaval, dia em que essa entrevista foi realizada. Para que ela aceitasse o cargo, a organização teve de correr atrás, Werneck não estava interessada em deixar o trabalho que fazia há décadas pela saúde da mulher. Médica de formação, ela percorreu um longo caminho de luta, começando pela infância pobre no Rio de Janeiro e passando pelos estudos em escolas militares, a graduação em medicina na UFF (Universidade Federal Fluminense) e o atendimento às comunidades de favelas pela prefeitura.

Foi essa a chave para a missão das últimas décadas: ao ver as más condições e a negligência a que eram submetidas mulheres pobres brasileiras no sistema público de saúde – maus tratos no atendimento, esterilizações compulsórias, pré-natais malfeitos que levaram a sequelas tão graves quanto a morte –, entendeu que era fundamental lutar por elas e tornou-se o que pode ser chamado de uma incansável-ativista-por-inconformismo-empírico. Fundou em 1992 a ONG Criola, uma das principais organizações na luta pelo acesso à saúde para mulheres negras, e de lá foi ocupar a cadeira de secretária-executiva da AMNB (Articulação de Organizações de Mulheres Negras). Foi ainda conselheira no Ministério da Saúde.

Na Anistia Internacional, ela trabalha para deixar a organização mais antirracista e feminista. “Essa Anistia me interessa, vale a pena comemorar cinco anos ali. Não pode ser aquela [organização] do homem branco de Londres, citando ordens para o resto do mundo. Essa já mudou, está em mudança”, diz a Gama.

Na entrevista que você lê abaixo, vai notar que o discurso de Werneck é firme e dolorosamente realista – “a experiência brasileira é de um racismo patriarcal” – mas sem perder jamais a otimismo e a ideia de que deve haver um horizonte: “É preciso lutar para mudar o mundo. Os movimentos de mulheres negras, feministas, indígenas fazem isso ao quebrar o racismo e o patriarcado. Isso é mudar o mundo. Leva tempo, mas estamos empenhadas”.

A experiência brasileira é de um racismo patriarcal

  • G |Quais os principais desafios para que as mulheres exerçam plenamente os seus direitos reprodutivos no país hoje?

    Jurema Werneck |

    O maior desafio no horizonte é o acesso à cidadania. A cidadania plena é o oposto da violação de direitos, é a experiência de viver todos os direitos. Um ponto fundamental é que existem grupos diferentes de mulheres experimentando de forma diferente as violações de seus direitos. Em comum, todas têm o patriarcado, mas é preciso lembrar que a experiência brasileira é de um racismo patriarcal. A linha de cor, que separa os claros e os escuros, faz diferença no Brasil. Então as mulheres brancas não têm acesso à cidadania plena, mas estão muito mais próximas dela do que as indígenas, negras, ciganas. Tudo o que vem daí, todo o desdobramento, é do racismo sistêmico, o patriarcado sistêmico, que vê a mulher e seu corpo como território dominado.

  • G | As mulheres negras ainda são as principais vítimas de morte materna. A gente vê as desigualdades sociais se reproduzindo no que a gente poderia chamar de “desigualdade reprodutiva”. Como você vê saída para isso se a gente vive em uma sociedade patriarcal e racista?

    JW |

    É preciso lutar para mudar o mundo mesmo. Os movimentos de mulheres negras, feministas, indígenas fazem isso ao quebrar o racismo e o patriarcado. Isso é mudar o mundo. Leva tempo mas estamos empenhadas. Problemas como eclâmpsia [alteração no quadro de saúde que inclui convulsões associadas à hipertensão arterial] e pré-eclâmpsia, que podem ser diagnosticados e tratados com um pré-natal decente, já estiveram na frente das mortes maternas, em um sinal da desassistência dos sistemas de saúde em cuidar da saúde das mulheres negras grávidas. Nas estatísticas, elas faziam as sete consultas mínimas de pré-natal e ainda assim não se evitava a morte materna. Isso porque eram mal recebidas. O aborto tem um elemento adicional, que é a lei. Existem casos cobertos, permitidos pela lei, e em outros a lei impõe barreiras e relega a vida das mulheres a uma disputa que não vou chamar de religiosa porque não entendo uma religião que pregue a morte. É uma disputa dos interesses patriarcais que penetram em determinadas religiões, monoteístas em particular e as cristãs, muito fortes no Brasil. Elas relegam a vida da mulher a essa disputa pelo território dominado do corpo e ela morre. E a tragédia não se acaba, porque aquela mulher morre e era ela o esteio da comunidade negra, quem segurava a onda da família, da comunidade, da economia — porque há poucos lugares de inserção dos homens negros. Fosse o esteio moral, ético, psicológico, ou o material, não é uma coincidência que as famílias que tinham à frente mulheres negras estão em pior situação socioeconômica do Brasil. É um ciclo de desgraça que não termina.

  • G |O racismo patriarcal ocorre mais nos centros urbanos ou na população rural?

    JW |

    Ocorre onde estivermos. Seja em confronto direto com grupos racistas, seja na sua ausência, porque o privilégio branco retira toda a riqueza da nação a seu favor. Nas áreas rurais pode não ter aquela perseguição explícita, mas também não tem SUS. Todo o SUS está na Avenida Paulista, garantindo que os bairros ricos e brancos tenham as melhores condições de vida, ainda que essas pessoas venham a público dizer que não o utilizam.

  • G |Como a pandemia piorou a situação dos direitos reprodutivos das mulheres?

    JW |

    A pandemia piorou a vida de todo mundo, mas as mulheres pagam um preço importante em diferentes níveis. Na vida cotidiana porque tiveram que colocar seus interesses e necessidades no fim da fila para cuidar de outros. Uma outra dimensão é o sistema de saúde, que já funcionava de forma precária para a maioria das mulheres, negras e indígenas em particular, praticamente se ausentou aos outros cuidados de saúde da pandemia. E se soma a isso o efeito da covid na mulher. O Brasil é um dos campeões da morte de mulheres grávidas por covid. E eu não falei da violência, que ficou muito mais frequente com a proximidade do agressor, a mulher ficou mais vulnerável.

Fazer um aborto não é uma decisão simples – o movimento tem dito isso, mas precisa dizer mais e melhor

  • G |Você conta que assistiu a muitos casos de esterilização compulsória de mulheres na sua prática de medicina, e que isso foi formador da sua militância e fundamental para a sua carreira dali em diante. Como você vê esse cenário hoje?

    JW |

    A esterilização continua sendo compulsória. As empresas continuam não sendo um lugar acessível para mulheres que têm filhos; para as auxiliares de serviços gerais, as agricultoras, para determinadas categorias é ainda mais difícil. Se você para na rua e pergunta para uma mulher “quais os métodos contraceptivos que você conhece?”, o resultado talvez seja igual a quando comecei na medicina. Elas conheciam o aborto e a pílula, comprada na farmácia sem receita, sem assistência, que pode ser mortal, e a esterilização. E entre a pílula e a esterilização, para quem não tem dinheiro para comprar a pílula, o que sobra? A esterilização nunca foi difícil e é uma cirurgia, era para ser a última coisa da lista, mas no Brasil não é, nunca foi, continua não sendo.

  • G |A gente vê muitos avanços na América Latina no tema da legalização do aborto. Mas o Brasil segue na lanterna. Temos um governo conservador agora, mas tivemos três de esquerda, inclusive uma mulher presidente. É uma questão meramente ideológica, de um país superconservador? Mas a América Latina em geral é religiosa. Por que a gente é diferente?

    JW |

    São etapas diferentes do processo político. Era impossível para o Uruguai até que se tornou possível. Era impossível para a Argentina até que se tornou possível, para a Colômbia também. É uma disputa política, acho que aqui ainda não está dado. O Brasil agora é mais do que conservador, é fascista. Mas a esquerda também é conservadora e não valorizou determinadas pautas. Eu sou uma mulher negra e durante os governos de esquerda estive à frente de muitas lutas de pressão sob esse governo conservador de esquerda, que enuncia um compromisso com os direitos sociais, sexuais e reprodutivos e no entanto não realizava grandes esforços e se submetia a pressão dos dogmáticos antiaborto. O desafio é colocar o debate do aborto na dimensão correta, de que não estamos aqui pelo aborto, mas pela vida. Fazer um aborto não é uma decisão simples – o movimento tem dito isso, mas precisa dizer mais e melhor. Compreender as técnicas de diálogo com aquele segmento que está no meio e poderia escolher a vida da sua irmã, filha, mãe, vizinha, amiga. Poderia escolher e não escolhe; fica ali. É um desafio também ter esquerdas mais comprometidas com seus próprios princípios. Tivemos dogmáticos no Ministério da Saúde durante governos de esquerda, com decisões extremamente prejudiciais para as mulheres.

  • G |E qualquer avanço hoje ficou mais difícil?

    JW |

    Hoje nós temos a ministra Damares, uma mulher inteligente, firme de propósito, mas desalinhada completamente com os interesses das mulheres, alinhada com os dogmas, e mais do que eles, com os interesses políticos de quem se apropria dos dogmas de terceiros para fazer o que não deve ser feito. Eu gostaria de lembrar que ela é uma pedra no horizonte político e ético e não apenas por ela. Ela representa o que de pior se pode colocar na esfera pública em termos de interesse privado. Uma privatização dos interesses em favor dos certos talibanismos da política e do sequestro dos direitos. Eu uso talibanismo porque não sei qual é o termo para esses fundamentalismos cristãos nesse nível, afinal o Talibã não é o Islã, mas um sequestro dos princípios da religião em favor de uma política de guerra e dominação. É o que essa gente tá tentando fazer. De fato nos vêem como território ocupado e usam de todos os meios, inclusive os nossos e as políticas públicas, contra nós. Não podemos esquecer, você perguntou o que falta para nós, nos falta lembrar que, enquanto se talibanizar a política pública no Brasil, a nossa luta vai ser mais profunda e a disputa mais intensa.

  • G |Para seguir nessa luta, há muitas cisões no feminismo?

    JW |

    Eu não enxergo cisões, mas não se pode achar que o feminismo é tudo que há em termos de movimentos de mulheres. As mulheres negras construíram um movimento antes da existência do feminismo, e a gente não está em cisão com o feminismo; é um movimento e outro, ambos de mulheres. As sindicalistas também estão organizadas no Brasil desde a década de 30, do século 20. E a primeira organização foi de trabalhadoras domésticas, diga-se de passagem. As sindicalistas estavam lá, as indígenas tiveram que se mobilizar certamente desde a primeira invasão colonial violenta. Então as mulheres produzem movimentos e nem tudo significa cisão. Por outro lado, se você analisar um movimento em particular, é possível que haja diferenças internas, porque cabe. É preciso que se enxergue o mundo na sua pluralidade mesmo, cabe a diferença.

  • G |Como podemos melhorar o ativismo e o feminismo também?

    JW |

    Para sermos melhores ativistas, acho que a primeira é não abrir mão de mudar o mundo. Então você tem que entender quais são as mazelas do mundo. Eu digo que uma das mazelas é o racismo patriarcal heteronormativo neoliberal. Uma crítica que as mulheres negras faziam a uma corrente feminista, a mais capitalista e individualista, era essa: a bandeira que chegava na mídia, o nosso direito a trabalhar, chegava a ser ridícula para uma descendente de mulheres escravizadas, e também para as indígenas que não estão procurando inserção no mundo capitalista. Mesmo se você é feminista e procura uma inserção no mundo capitalista, tem que problematizar essa inserção. Não há lugar a salvo para uma mulher negra ou indígena no mundo capitalista. Então com quem você vai fazer aliança? Com as regras do capitalismo ou com a necessidade de mudar tudo?

As mulheres refugiadas são o segmento mais invisível junto às crianças

  • G |Você já disse que Anistia Internacional nasceu branca há 60 anos e que há várias anistias, mas está comprometida com uma que seja feminista e antirracista. O que você acha que conseguiu nos cinco anos que está lá?

    JW |

    Ela se moveu. A Assembleia Global de 2020 aprovou o compromisso de se tornar antirracista e feminista. Teve coragem de tocar em um tema bastante dramático que é a situação dos palestinos, as decisões do estado de Israel em relação à Palestina. A Anistia que está lá monitorando drone na Somália e monitorando bombardeios na Ucrânia. Antes ela já corria riscos, mas considerando a vida de quem corre riscos 24h por dia, não era tanto. A Anistia tem um poder e precisava se arriscar mais. Acho que está fazendo isso. Na Ucrânia, ela está documentando potenciais crimes de guerra, e a documentação pode vir a servir como prova. Isso é importante e estar aqui também, ao lado do movimento negro quando fez a campanha Jovem Negro Vivo: os jovens negros estavam dizendo “estão me matando”, e o Brasil olhava para o outro lado.

  • G |Nos últimos anos, o Brasil recebeu ondas migratórias de refugiados de diversos países. Como fica o direito das mulheres dessas populações?

    JW |

    O Brasil como um todo prefere olhar para o lado em relação às questões de refúgio. Esse tema surgiu e teve dois momentos recentes que o fizeram crescer: a guerra da Síria, que recebemos refugiados mas a imagem pública era de homens, e agora com o assassinato do Moïse, da República Democrática do Congo, cuja comunidade congolesa tem mais de 30 anos, ainda nem tinham reparado que eles estavam aqui. Diga-se de passagem que no DNA brasileiro grande parte vem daquela região do Congo. A gente não liga para refugiados, essa frase é horrível, mas a gente se importa pouco com o tema. O Brasil é muito autovoltado, e quando você se pergunta onde ficam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, menos ainda. As mulheres refugiadas são o segmento mais invisível junto às crianças. Mesmo a Anistia, tem trabalhos pontuais, e não campanhas com mobilização ampla.

  • G |As ONU tem metas para 2030 de zerar as necessidades não atendidas de contracepção, de mortes maternas evitáveis, e de outras práticas nocivas contra mulheres e meninas com menos de dez anos. O quanto você acha que isso é viável para 2030?

    JW |

    Essas metas funcionam como horizonte ético e político. O papel da ONU vem sendo questionar governos como o nosso que buscam enfraquecer o papel, que é de um organismo multilateral capaz de mediar diferentes interesses. O que fortalecerá a ONU é que ela seja mais ambiciosa na relação com os movimentos sociais. É claro que é um processo delicado já que a ONU para estar nos países está sob licença dos governos, mas é preciso lembrar que a licença é para servir a sociedade, e a sociedade tem os movimentos. Precisamos dessas metas, são centrais para a gente colocar no horizonte para onde precisamos caminhar. Mas a verdade é que precisamos correr: está passando o tempo e vamos ficando para trás.