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Thiago Quadros / Reprodução Youtube

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Como gambiarras eletrônicas criam novos gêneros

As apropriações tecnológicas mais radicais estão nas cenas musicais negras das periferias, dando corpo a expressões singulares e contra-hegemônicas

GG Albuquerque 26 de Setembro de 2021
Thiago Quadros / Reprodução Youtube

Como gambiarras eletrônicas criam novos gêneros

As apropriações tecnológicas mais radicais estão nas cenas musicais negras das periferias, dando corpo a expressões singulares e contra-hegemônicas

GG Albuquerque 26 de Setembro de 2021

Após anos trabalhando no mercado de ações, os programadores belgas Jean-Marie Cannie e Frank Van Biesen sentiam-se entediados com a monotonia de seus empregos e buscavam um trabalho mais divertido e desafiador. Foi então que em 1992 eles fundaram a Image-Line Studios, uma empresa focada no setor de “games adultos”, com jogos como “Porntris” — sim, uma versão pornô de Tetris.

Na mesma época, um jovem franco-belga chamado Didier “Gol” Dambrin, de apenas 19 anos, chamou atenção da dupla ao vencer o concurso Da Vinci, uma competição realizada pela gigante empresa de tecnologia IBM a fim de encontrar os grandes programadores das próximas gerações. A recém-criada companhia contratou o prodígio em 1994. Embora tenha sido recrutado para criar games pornôs, foi no setor musical que Dambrin e a Image-Line obtiveram inesperado sucesso e revolucionaram a forma de se fazer música.

Em 1998, a Image-Line lançou o Fruit Loops, um programa gratuito de produção musical com design intuitivo que se tornou uma das mais populares Estações de Áudio Digital — ou Digital Audio Workstations, DAWS na sigla em inglês. Em outras palavras, são programas que oferecem um catálogo de instrumentos virtuais e permitem produzir, gravar, mixar e editar áudio. Tudo para você fazer uma música só com um computador.

Se está dançante, está bom

Desde então, o FL Studio (como o Fruit Loops foi rebatizado em 2003 depois de uma disputa legal com a marca de cereal homônima) se espalhou pelo mundo. De acordo com dados fornecidos pela empresa, atualmente o programa tem cerca de 10 milhões de downloads anuais. Qual o motivo desse sucesso? “Eu não tenho nenhum background musical e acho que isso é o principal motivo pelo FL Studio ter deslanchado, porque não foi projetado para músicos”, argumentou Dambrin em uma rara entrevista concedida ao site Genius.

Essas tecnologias e seus usuários criaram uma abordagem de montagem, mais do que de composição propriamente

Ao municiar um fazer musical digital que não está ancorado no conhecimento de partituras ou no ensino formal de música, o FL Studio — bem como outros softwares similares — pavimentou outras lógicas de criação sonora. Experimentando os sons em tempo real, formando loops por tentativa e erro, o FL Studio e seus usuários criaram uma abordagem de montagem, mais do que de composição propriamente. “É como fazer música no Excel”, brincou o beatmaker mineiro Vhoor, que assina produções para o rapper FBC.

Em vez de melodia, harmonia e ritmo, os produtores desenvolvem saberes musicais com base em parâmetros próprios: as frequências sonoras (o peso de um beat grave), os mecanismos de reprodução (onde essa música será executada? Num paredão de som de um baile? Num celular? Num som automotivo?) e a percepção corporal do som (aceleração das batidas para estimular determinadas formas de dança). “A minha música é um loop, mas é um loop que não cansa. É a coisa mais difícil de fazer. Eu não componho música, não estudei. E se me disserem que a música está em tal tom — no dó, ré ou mi —, eu não faço ideia. Minha música é só fazer e, se está dançante, está bom”, declarou o DJ Marfox, representante da cena de kuduro das periferias de Lisboa.

Acredito que as apropriações tecnológicas mais radicais estão nas cenas musicais negras das periferias. São contextos de precariedade material onde esses dispositivos e softwares são criativamente transformados e ressignificados, com suas possibilidades sendo expandidas e dando corpo a expressões musicais singulares e contra-hegemônicas.

O carioca DJ Polyvox sampleou o som de uma garrafa de refrigerante que o seu filho batia na porta criando o beat base do funk 150 BPM

Um exemplo é o carioca DJ Polyvox, que sampleou o som de uma garrafa de refrigerante que o seu filho batia na porta de seu estúdio e o transformou no beat conhecido como Tambor Coca-Cola, um dos primeiros da vertente funk 150 BPM. Usando e ao mesmo tempo adaptando as possibilidades de sua DAW, o DJ da favela Nova Holanda inventou um método artístico próprio: incorporou o ruído da garrafa pet (considerado “não musical” pela musicologia ocidental). O resultado? O desenvolvimento de uma nova forma do funk, com uma nova dinâmica sonora, que renovou a cena do Rio. Na mesma linha, o produtor recifense JS o Mão de Ouro utilizou o som da panela de sua avó para criar as batidas metálicas que constituíram a sua assinatura sonora e caracterizam o movimento bregafunk com hits como “Tudo Ok” e “Hit Contagiante”.

Sangra tímpano

Já no atual funk mandelão de São Paulo, predomina um som agressivo, distorcido e ruidoso que contraria as expectativas de uma “música dançante” e, sobretudo, as normas técnicas de uma boa produção, abraçando o “erro” em recurso expressivo. Em faixas como “Tuin Destrói Noia”, do DJ K, uma frequência aguda contínua perfura nossos ouvidos. O que para muitos é visto como incômodo, nos bailes de rua esse som complementa a alucinação auditiva provocada pelo uso do lança-perfume ou loló. Assim, os DJs constróem um vocabulário musical singular, que se nutre da ritualidade do baile para dar vazão a um som específico, não encontrado em nenhum outro lugar do mundo. Não por acaso, essa vertente também circula no YouTube com os nomes de “sangra tímpano” e “destrói fone“: a escuta implica ir além do ouvido e ativar uma experiência que mobiliza o corpo inteiro.

Na comunidade rural Sanankoroba, no Mali, o DJ Diaki (expoente do gênero balani show) reinterpreta os softwares de discotecagem para desconstruir os padrões rítmicos da música eletrônica ocidental.

As batidas repetitivas — o famigerado “bate estaca” — é um dos elementos definidores da música eletrônica de pista. Foi esse mesmo ritmo fixo que caracterizou as raves quando estas passaram a ser alvo do governo britânico, que em 1994 conferiu à polícia “poderes para remover pessoas participando ou se preparando para participar de uma festa rave” na qual se execute “música total ou predominante caracterizada pela emissão de uma sucessão de batidas repetitivas”.

Na contramão desse padrão histórico e do compasso 4 x 4, Diaki opera uma transfiguração que subverte o DNA rítmico da eletrônica a partir de uma sensibilidade polirrítmica africana. Batucando uma bateria eletrônica, ele dispara uma ampla variedade de samples que correm soltos e aglomeram-se em uma massa tórrida e frenética de sons sintéticos e implacáveis, como podemos ouvir no álbum “Balani Fou”, de 2020.

O que para os ingleses soa como ataque de pânico, para os malineses é música de festa que faz centenas de pessoas dançarem na rua

Pode parecer um ataque de pânico para ouvidos desacostumados”, avisou o jornal The Guardian ao comentar o disco. Mas o que para os ingleses soa como ataque de pânico, para os malineses de Sanankoroba é música de festa que faz centenas de pessoas dançarem despudoradamente na rua.

O músico enquanto inventor

Esse desencaixe na percepção da música de Diaki indica um pensamento musical dissidente. Esse saber está atrelado intimamente a uma experimentação dos dispositivos tecnológicos, a partir da qual se desenvolve uma técnica inovadora. Uma forma particular de escrita sonora.

O funk do Rio e de São Paulo, o bregafunk de Recife e o balani show do Mali trilham os caminhos abertos pelas tecnologias digitais como o FL Studio e as DAW. Por outro lado, essas musicalidades não se limitam ao complexo tecnológico no qual se originam. Os artistas das periferias fazem uma “torção semântica” desses dispositivos, criando usos imprevistos para eles. Em vez de usuários ou consumidores passivos, os músicos assumem o papel de inventor, dando outros propósitos para as tecnologias. Nesse processo, elaboram os próprios métodos e procedimentos para criar um som que jamais fora ouvido, dançado ou pensado. Uma música que, em suas limitações materiais, reimagina as ferramentas digitais para instaurar novas possibilidades para a arte e para a vida.

GG Albuquerque é jornalista e doutorando em Estéticas e Culturas da Imagem e do Som pela UFPE. Fundador e redator do site Embrazado, apresentou o documentário sobre bregafunk produzido pelo Spotify e desde 2015 edita o blog Volume Morto