Já praticou o amor hoje?
Amar, na democracia, é um trabalho consciente, diário e essencial. O jeito como lidamos com o outro, com o que pensa diferente, pode ser um ato de amor político
O amor está no ar, no centro das interações sociais, nos livros, nas canções. Faz girar a economia e tem seus ecos na política, atividade que é inescapavelmente emocional. Mas esqueça a retórica de políticos e os projetos e as disputas que mobilizam emoções. O encontro entre amor e política não tem a ver necessariamente com gostar ou desgostar de uma pessoa ou de uma ideia, mas com o jeito como lidamos (ou deveríamos lidar) com o que é diferente.
Nos anos 1950 e 1960, o pastor evangélico Martin Luther King mostrou que o amor é indissociável da luta política. Ele não falava de um amor sentimental, mas da habilidade de dialogar e compreender. O engajamento com os outros, ainda que esses outros fossem agentes de algum tipo de opressão, era um princípio fundamental de suas ações.
Martin Luther King mostrou que o amor é indissociável da luta política. Ele não falava de amor sentimental, mas da habilidade de dialogar e compreender
Luther King foi um dos maiores líderes do movimento por direitos civis e ícone da luta contra a discriminação racial nos Estados Unidos. Defendia a ação por meio da desobediência civil e de manifestações não violentas. Discordava de outras referências centrais do movimento negro americano, como o líder Malcolm X e o Partido dos Panteras Negras, especificamente no uso da força na luta contra o racismo.
Seu discurso e a própria ideia do amor político têm raízes nas tradições bíblicas. A prática do amor (e do amor ao próximo, especialmente) na ética religiosa cotidiana tinha como pano de fundo a construção de uma vida em comunidade e a capacidade de tomar decisões coletivamente. Nos séculos 19 e 20, o amor político emergiu principalmente a partir de correntes do pensamento anticolonialista. E teve continuidade na voz de nomes ligados ao movimento negro, sobretudo nos Estados Unidos, como James Baldwin (1924-1987) e, mais recentemente, Cornel West e bell hooks.
O amor, na trajetória de Luther King, era entendido como a chave para engajar indivíduos e comunidades em conflito. Seu trabalho parte de três antigas acepções de amor de origem grega: eros, o amor que representa o desejo; philia, algo como um amor fraterno, por pessoas ou ideias; e ágape, o amor ao próximo, central no movimento que o ativista idealizava. Para King, ágape era a ferramenta capaz de criar uma relação com o opressor para demonstrar que suas ações desumanizavam a sociedade — e amar um opositor não significava ter de gostar dele.
Em seu último livro, publicado um ano antes de sua morte, em 1968, “Where Do We Go from Here: Chaos or Community?”, o ativista mostra com profundidade a idealização de uma sociedade norte-americana inclusiva, diversa e economicamente igualitária. E o amor é apontado como o caminho para criar comunidades que funcionam para todos, e não apenas para poucos às custas de muitos.
O amor político é uma prática
A violência contra as minorias e as profundas divisões políticas dos dias de hoje tornam as palavras e a filosofia de Martin Luther King tão importantes quanto em outras épocas. É o que defende o pesquisador Joshua F. J. Inwood, professor da Universidade Estadual da Pensilvânia, em um artigo sobre a atualidade da obra de Martin Luther King nos Estados Unidos. Segundo Inwood, King vislumbrava um trabalho para tornar as comunidades cada vez mais inclusivas, baseadas em ideais de igualdade e democracia.
A herança deixada pelo ativista cai como uma luva no cenário inédito (para alguns, inimaginável) de uma pandemia. Nossa capacidade de pensar, dialogar e agir coletivamente está sendo avaliada, já que uma coordenação coletiva de esforços e sacrifícios pelo bem comum é decisiva — caso contrário, não há futuro que se sustente. A velha ideia de amor político como prática é uma das ferramentas para solucionar problemas novíssimos, que requerem um olhar atento para as populações vulneráveis e para a nossa inevitável conexão com o que não é, à primeira vista, parte de nós.
Em diálogo com a obra de Luther King, a escritora e ativista norte-americana bell hooks pontua a necessidade da criação de uma ética do amor. É o que, segundo a autora, nos leva ao esforço de prestar atenção aos nossos relacionamentos e abraçar “uma visão global, em que vemos nossas vidas e nosso destino tão intimamente conectados aos de todos os outros no planeta”, como ela escreve em “All About Love: New Visions” (2000).
A ética do amor nos sensibiliza para questões ligadas a sistemas de dominação, sexismo, racismo
Uma ética pautada pelo amor consiste na escolha consciente de um conjunto de valores. O amor, portanto, não é tratado como um sentimento, mas como uma prática — é a maneira como escolhemos agir. Para hooks, a ética do amor é o que verdadeiramente nos sensibiliza para questões que não nos atingem diretamente. Isso significa abolir das relações sociais sistemas de dominação, como o sexismo, o classismo ou o racismo.
Amar tem seus perigos
O amor como ferramenta ligada à transformação coletiva nos dias de hoje é uma ideia também pesquisada por Michael Hardt, professor de literatura da Duke University, nos Estados Unidos. Ele argumenta, no entanto, que pensar no amor como um conceito político pode ser um terreno perigoso. Corremos o risco de cair em uma ideia voltada ao amor pela comunidade, ou por um grupo específico, que pode ser excludente: o amor político não é amar um semelhante ou uma nação. A noção de amor que ainda precisamos criar, observa Hardt, está relacionada a amar justamente o que nos é estranho.
O que também não pode ser confundido com a tolerância ou somente a abertura à diversidade. Trata-se de uma relação que é essencialmente estruturada pela diferença. E é aí, também, que o conceito diverge do amor apaixonado: para Hardt, a ideia que encontramos nos filmes e nas poesias, de dois amantes que se tornam um só, não funciona para o amor político (tampouco para as relações pessoais, na verdade). Amar politicamente não é se fundir em unidade, mas construir uma constelação de diferenças. No fim, trata-se de um tipo de amor que talvez desagrade alguns românticos.