Como as desigualdades afetam o Brasil?
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

Por que escolaridade das mães é fundamental para educação dos jovens

Além da formação materna, aspectos como raça, renda familiar e até a presença de irmãos podem impactar as perspectivas educacionais de crianças e adolescentes

Leonardo Neiva 27 de Abril de 2025

Por que escolaridade das mães é fundamental para educação dos jovens

Leonardo Neiva 27 de Abril de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Além da formação materna, aspectos como raça, renda familiar e até a presença de irmãos podem impactar as perspectivas educacionais de crianças e adolescentes

O número de mulheres com nível superior hoje no Brasil já supera o dos homens. Um dos principais aspectos apontados pelo Censo 2022, divulgado pelo IBGE em fevereiro, mostra que 20,7% das brasileiras com mais de 25 anos têm formação universitária completa, contra apenas 15,8% dos homens na mesma faixa etária. Além de a cifra ser importantíssima para as mulheres por aqui, ela também pode ser crucial para as famílias brasileiras.

Pesquisas já indicam há um bom tempo a relevância da escolaridade dos pais na formação, desempenho e até no futuro profissional e financeiro dos filhos. Mais do que isso, no entanto, há evidências robustas de que a escolaridade da mãe pode ser ainda mais decisiva nessa equação, pontuando bem acima de outros fatores como a ideia de meritocracia ou a própria formação do pai.

O economista Naércio Menezes Filho, professor titular do Insper e professor associado da Faculdade de Economia e Administração da USP, realizou uma série de estudos focados no impacto desse background familiar para a formação de jovens no país. “A escolaridade dos pais, principalmente da mãe, é a variável mais importante na família para o sucesso educacional dos filhos”, afirma em entrevista a Gama.

Esse impacto materno tem algumas razões de ser. Para começar, “a mãe permanece mais tempo com a criança, desde a gravidez e o nascimento até quando a criança entra na escola e termina seus estudos”, acrescenta Menezes. Característica que vem de um conhecimento não só estatístico, mas também cultural e histórico.

Segundo o pesquisador, é uma questão de normas sociais. Historicamente, a sociedade atribui um papel maior para a mãe em todo o processo de acompanhamento e orientação das crianças — tendência que, em meio a uma revisão dessas responsabilidades dentro das famílias, continua forte. Sem contar os casos em que a mulher é não só a principal, e sim a única responsável pela criação dos filhos. Afinal, 11,3 milhões de domicílios brasileiros — cerca de 15% do total — têm como referência uma mãe solo, de acordo com o IBGE.

O nível de escolaridade materno é relevante até para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e de linguagem das crianças. “Quando a gente estuda desenvolvimento infantil, sempre considera a escolaridade dos pais, especialmente a materna, porque ela tem efeito tanto para favorecer quanto para se tornar uma condição de risco”, aponta Maria Beatriz Linhares, professora associada sênior do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).

A escolaridade dos pais, especialmente a materna, tem efeito tanto para favorecer quanto para se tornar uma condição de risco no desenvolvimento infantil

A pesquisadora de economia aplicada e professora de ciências econômicas da FGV, Janaína Feijó, acrescenta que filhos de pais mais escolarizado, com ensino médio ou superior completo, costumam até falar um número maior de palavras, em média. “Quando o pai é mais escolarizado, ele tem essa consciência de que a criança é uma esponja e vai absorver todo conhecimento, prática e hábito”, diz Feijó, autora de um estudo que mensura essa influência direta e indireta da educação dos pais.

Para a estudiosa, a forma como principalmente a mãe — que é quem geralmente mais participa de todo o processo — conversa e ensina a criança até os sete anos de idade é crucial para que ela alcance ou não o seu potencial educacional. “Por isso que se fala que investir na educação desde a infância é tão importante.”

E a escolaridade das mães, junto à das mulheres no geral, vem numa curva ascendente ao longo das últimas décadas, acompanhando uma tendência bem abrangente na educação brasileira. “Desde os anos 1990, a fatia de jovens que concluíam o ensino médio passou de 30% para cerca de 70%”, diz Menezes. “A porcentagem de mães que têm ensino médio completo aumentou muito nos últimos 20 anos, e foi resultado desse crescimento educacional no país como um todo.”

Essas mudanças marcam um período de investimento e políticas públicas de acesso à educação em diferentes níveis no país durante as últimas décadas. Iniciativas como o Bolsa Escola, o ProUni (Programa Universidade para Todos) e o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), entre outras, foram surgindo desde a virada do século. Foram criados programas de cotas, e houve um aumento generalizado no número de vagas em todos os níveis de ensino, o que também pode ter contribuído para essa realidade.

Ao mesmo tempo, “é muito difícil medir o impacto direto de uma política pública”, considera Flávia Longo, doutora em demografia e pesquisadora no Centro de Antropologia de Processos Educativos da Unicamp. Em relação às mães, segundo ela, principalmente se a maternidade acontece na juventude, é um fator que pode inclusive interferir nas perspectivas educacionais das mulheres.

Mães na escola

“Alguns estudos apontam que, sim, há interferência nessa trajetória, mas que muitas mulheres também voltam e terminam o ensino fundamental ou o ensino médio”, contrapõe a pesquisadora. “Elas têm como se fosse uma responsabilidade maior de inserção ocupacional no mercado de trabalho, mas menos precarizada, justamente pensando no sustento dos seus filhos, porque querem ser exemplos para eles.”

Nesses casos, políticas públicas podem ter um impacto crucial para o acesso e a permanência dessas mães seja no ambiente estudantil ou no mercado de trabalho, acrescenta Longo. A pesquisadora se refere a questões centrais, como a oferta de creches ou mesmo uma legislação que permita às mulheres conciliar os estudos ou o trabalho com o exercício da maternidade.

Esse impacto da maternidade sobre as perspectivas da mulher, claro, muda de acordo com aspectos como classe social, raça ou mesmo faixa etária dessa mãe. O rendimento de mães solo negras, por exemplo, fica abaixo do de homens com filhos ou de mães solo brancas no Brasil, como aponta um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Muitas mulheres também voltam e terminam o ensino fundamental ou o ensino médio, justamente pensando no sustento dos seus filhos, porque querem ser exemplos para eles

Outro aspecto central é que mães solo, independentemente do nível escolar, muitas vezes acabam passando menos tempo com os filhos, já que são as únicas responsáveis pela manutenção do lar, como lembra Feijó. “Provavelmente ela vai colocar a criança em uma escola de tempo integral ou então essa criança vai acabar passando um tempo com terceiros, como familiares ou vizinhos”, avalia.

Se esse contato no contexto familiar é tão importante para o desenvolvimento cognitivo, pode ser preocupante que a criança fique privada dele tão cedo. Até por isso, aponta a pesquisadora, escolas de regime integral fazem bastante sentido dentro de algumas realidades. O mesmo vale para casos em que a convivência familiar é problemática, marcada por vícios ou violência, já que passar mais tempo na escola acaba sendo mais benéfico ou menos prejudicial para esse desenvolvimento.

“Quando a gente pensa na maternidade em idades mais avançadas, com 25 anos ou mais, já existe uma outra relação com a escolaridade. Essas mulheres mais velhas, mais escolarizadas, tendem a postergar a idade em que entram na condição de mães. Então, de certa forma, a gente pode dizer que os níveis mais altos de escolaridade funcionam como um certo fator de proteção contra a entrada na maternidade”, afirma Longo.

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Outros fatores

As diferentes composições contemporâneas de família também tornam um pouco mais complexo analisar o impacto do contexto familiar na formação de jovens. Em sua tese de mestrado, a economista Ivy Shinohara concluiu que jovens que vivem com ambos os pais têm mais chances de sucesso educacional do que em outras formações parentais. Depois, vêm adolescentes que moram apenas com a mãe, com a mãe ou pai mais um cônjuge, e, por último, os que vivem somente com o pai.

A escolaridade dos pais, embora essencial nessa análise, não é o único fator que impacta a formação de jovens. Questões como a renda familiar — o que pode inclusive ampliar o gap causado pela desigualdade financeira — ou a qualidade de ensino da escola que esse jovem frequenta são igualmente relevantes para seu desempenho.

“Quando conseguem colocar seus filhos em uma boa escola, em que aprendem cedo a ler e escrever, chegando nessa escola com aptidões e habilidades socioemocionais, facilita bem”, explica Menezes. “Se a escola tiver uma gestão competente, uma preocupação com o aprendizado, a criança vai tomar gosto, vai permanecer na escola, tirar boas notas.”

A professora da FMRP-USP, Maria Beatriz Linhares, lembra que não é uma simples questão de matemática. “Não basta a mãe ter escolaridade. Se tiver uma depressão materna, pode afetar esse desenvolvimento”, ela reforça. “Você tem que olhar outros fatores que estão em volta. Às vezes os pais não são tão escolarizados, mas a pessoa teve oportunidades, uma bolsa ou pode ir a uma escola por cotas. Ou então teve um professor que foi uma referência importante nesse desenvolvimento.”

Desigualdades

Em sua tese de mestrado, focada na mobilidade educacional entre diferentes gerações de famílias, a pesquisadora Flávia Longo apurou que boa parte dos adolescentes filhos de mães com pouca ou nenhuma escolaridade não consegue concluir o ensino fundamental na idade esperada. Além disso, desigualdades regionais podem impedir essa mobilidade, assim como fatores de raça e gênero — jovens do sexo masculino e não brancos têm menos chances de alcançar uma escolaridade maior que a de seus pais, por exemplo. Mesmo assim, o número de jovens que superaram a escolaridade materna vem crescendo.

“Então quem tem mais chances? As meninas de áreas urbanas, de regiões mais ricas e desenvolvidas do país”, aponta Longo. “O que também significa dizer o oposto: que meninos que vivem em áreas rurais, na região Nordeste, parecem ter menos chances de ver esse tipo de mobilidade.”

Um resultado surpreendente da pesquisa foi que jovens com pelo menos um irmão também apresentaram maiores oportunidades de avançar na educação. “Ficam algumas hipóteses. Irmãos podem se ajudar nas tarefas escolares na ausência de um adulto. Às vezes, no trajeto para a escola, eles ficam mais tempo próximos, o que pode funcionar como um fator de proteção para que não abandonem os estudos”, reflete a pesquisadora.

Embora o mais comum seja pensarmos na educação como algo passado ou inspirado de pais para filhos, o caminho inverso não é tão fora da curva quanto se pode imaginar. Jovens que, em muitos casos, são os primeiros da família a concluir o ensino médio ou entrar numa universidade podem ter uma influência educacional igualmente importante dentro do núcleo familiar.

“Tende a ter um impacto positivo sim. Curiosamente, não só para os mais jovens, mas até mesmo para os mais velhos”, Longo aponta. “Às vezes, pais ou tios acabam se motivando. Não que todos vão entrar para a universidade, mas podem procurar um EJA [Educação de Jovens e Adultos].”

Uma conversão complicada

Mas a pesquisadora alerta que a mobilidade educacional também não é livre de conflitos. “Adentrar um espaço escolar novo te coloca em contato com um mundo que ninguém da sua família conheceu antes. E aí você passa a ter um pé de cada lado”, explica. Ou seja, o jovem começa a receber informações e frequentar espaços desconhecidos para aqueles que o cercam “Dá para imaginar que haverá conflitos pessoais e interpessoais a partir dessa nova estrutura.”

De uma forma ou de outra, dentro das famílias, o avanço na educação ao longo das gerações representa também uma ascensão social e econômica, certo? No Brasil, essa equação é um pouco mais complexa do que uma simples soma de dois mais dois.

Para começar, mesmo com as políticas públicas voltadas para o setor, pesquisas mostram que estudantes de famílias com maior nível de renda ainda mantêm uma vantagem considerável no acesso à educação superior no país. Além disso, há uma certa discrepância nos índices, que englobam também uma série de outros fatores: enquanto os níveis de desigualdade educacional vêm diminuindo constantemente nas últimas décadas, a desigualdade social passa longe de acompanhar o ritmo, com períodos intercalados de aumento e redução ao longo dos anos.

Também há coisas a comemorar. Como lembra Feijó, o Brasil teve melhoras na remuneração média da economia, assim como uma participação maior de pessoas com ensino superior completo no mercado de trabalho. Só que nem sempre conseguimos capturar essas mudanças positivas num espaço tão curto de tempo.

Enquanto os níveis de desigualdade educacional vêm diminuindo nas últimas décadas, a desigualdade social passa longe de acompanhar o ritmo, com períodos intercalados de aumento e redução ao longo dos anos

“Para uma criança que nasce de uma mãe pobre, negra, da periferia, vamos ter que esperar de 20 a 30 anos para saber se as políticas públicas e educacionais conseguiram ajudá-la a sair dessa condição desfavorável“, afirma a pesquisadora da FGV. E completa que seu caso, inclusive, pode ser visto como um exemplo de sucesso: “Meus pais têm apenas ensino fundamental incompleto, e hoje eu tenho um doutorado.”

“As variáveis estão muito correlacionadas, só que a relação não é tão direta”, diz Longo. De forma geral, a educação costuma levar sim a um aumento da renda e das condições de vida. Porém, a pesquisadora lembra que há diferentes níveis de formação — ensino médio, superior, técnico —, além de variáveis como o custo econômico, a qualidade dessa educação e a existência ou não de oportunidades de trabalho.

“Então, no Brasil, a mobilidade educacional tende a ser maior do que a mobilidade de renda. Temos uma maior permanência da renda”, explica a pesquisadora. “Ou seja, a pessoa até pode estudar mais, mas está num momento econômico da história em que aquilo não se converte em uma renda melhor do que os pais dela tinham naquela mesma idade.”

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Esse conteúdo é parte de uma série produzido com apoio da Fundação Tide Setubal, uma instituição que fomenta iniciativas que promovem a justiça social e o desenvolvimento sustentável de periferias urbanas e contribuem para o enfrentamento das desigualdades socioespaciais das grandes cidades, em articulação com diversos agentes da sociedade civil, de instituições de pesquisa, do Estado e do mercado. Para saber mais, visite o site.

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