Aparentemente tudo passa, menos o nordestino de folhetim
Na alternância entre praias paradisíacas e um sertão de miséria e fome, o nordestino de novela (re)aparece, atravessado pelo fatalismo e pela estigmatização
A resposta foi imediata. Bastou a TV Globo divulgar a primeira imagem da sua próxima novela das seis, “No Rancho Fundo”, para se ouvir, do Nordeste, uma reação justificável. É que o alarme da chegada de mais uma leva de nordestinos de folhetim foi disparado e provocou, num povo cansado de ser representado de forma reducionista, a vontade imediata de freá-la.
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A imagem, sozinha, teve suficiência para o levante na internet, ao apresentar personagens com o filtro insistente do atraso, que há muito persegue as narrativas sobre o Nordeste e a sua gente. Figurino, cabelo e maquiagem à disposição de uma caracterização aparentemente norteada pelo anseio de levar à tevê pessoas maltratadas pela vida.
Mas apesar de uma imagem falar mais que mil palavras, ela não foi divulgada sozinha. E o release que a acompanhou validou a suspeita ao afirmar que a trama se trata de uma “fábula sertaneja”, com “arquétipos bem desenhados”, tendo uma das personagens centrais, inclusive, sido “criada em meio às galinhas”. Foi difícil não entender os sinais.
Acontece que as produções culturais que se atrevem a prestar uma visita ao Nordeste sem compromisso são, na realidade, o que maltrata a região e o seu povo. A começar por essa insistência em enlatar nove estados e uma população de 60 milhões de pessoas como uma coisa só. E na alternância entre praias paradisíacas e um sertão de miséria e fome, o nordestino de folhetim (re)aparece, atravessado pelo fatalismo e pela estigmatização.
Na hora de descrever o personagem, não importa a profissão, os sonhos ou o caráter. O personagem é nordestino e isso basta
O sotaque falacioso é incômodo, mas há coisa pior: a ideia de que o seu lugar de origem é o que define quem o nordestino pode ser, na trama e na vida. E aí na hora de descrever o personagem, não importa a sua profissão, os seus sonhos ou o seu caráter. O personagem é nordestino e isso basta. Um determinismo que dialoga com escritos do início do século 20, quando depreciavam as pessoas do Nordeste por motivos de interesse, elitismo e racismo, visitados — ainda que “sem querer” — por produtos audiovisuais.
O cineasta Pedro Fiuza fez um passeio recente por muitas dessas produções. No curta “A Edição do Nordeste”, é possível ver e rever como a fórmula foi reproduzida anos a fio. Uma espécie de estereotipação recreativa, conforme a qual a região e a sua gente não têm outro destino além do sofrimento e da pobreza. Uma recorrência que indica ser essa receita não apenas resultado de indolência, mas um modelo de negócio.
Entre mandacarus, persiste sobrevivente um povo que, quando muito, fornece entretenimento, ao ponto de Juliana Linhares, em música-desabafo, cantar “um dia eu sonhei que eu era um cacto”. Um cacto, segue ela, “sem ter flor para dar”. Mas é fácil encontrar as flores. Em 2023, por exemplo, dos 60 estudantes que obtiveram nota máxima no Enem em todo o Brasil, quase metade, 42%, eram do Nordeste. Para os de fora, isso sim parece o que Juliana canta como “ficção científica”.
Reduzir o Nordeste sempre foi uma estratégia para encolhê-lo politicamente. Reduzir o povo da região é conduta igualmente interesseira
Muitos pensamentos discriminatórios já foram vencidos, em favor de diversos grupos populacionais, após serem lançadas luz sobre as suas raízes e motivações. O Nordeste e o nordestino, porém, seguem privados dessa atualização. Reduzir a região sempre foi uma estratégia para encolhê-la politicamente. Reduzir o povo da região é conduta igualmente interesseira e já não admite mais desinformação como desculpa.
O “sertão”, palavra que acabou virando sinônimo de Nordeste, existe, mas com histórias múltiplas. É terra onde a estiagem pode castigar, mas é também onde se planta milho, tomate e melão. Onde se produz queijos premiados, até de búfala. Onde se cultiva rosas e se faz vinho com uva e caju. O Nordeste rural que prospera, onde não há ranchos, pode não interessar a audiência, mas ele existe.
Melhor seria se isso não passasse de um grande mal-entendido, decorrente de uma leitura apressada dos sinais. O autor Mário Teixeira, paulista, garante que “a história não lida com estereótipos”. Mas o que foi colocado na vitrine até aqui já o contradiz. A Globo, que errou na mão com “Segundo Sol”, e tenta se redimir com o Nordeste desde “Mar do Sertão”, do próprio Mário, não pode desandar com o passo. Forró é ritmo que se dança a dois, em harmonia, sem movimentos para trás.
A nova novela tem previsão para estrear em abril. Ou seja: há tempo para correções. A reação na internet, que pode ter sido apenas a primeira, deve ser levada em conta, já que, como consta no release da divulgação, “a cultura e as tradições se misturam e desempenham papel fundamental na identidade do sertão brasileiro”, e não há nada mais identitário no sertão do Nordeste do que a resistência. É que “No Rancho Fundo” do Nordeste (se é que esse lugar existe), cresce um ranço profundo de produções estereotipantes, que não fazem outra coisa além de manter a sua gente presa a uma narrativa que não a favorece.
OCTÁVIO SANTIAGO é jornalista, escritor e pesquisador da origem do preconceito contra o povo do Nordeste
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