A arte de desaparecer — Gama Revista
©Marcelo Cipis
Capa do livro Meu Ano de Descanso e Relaxamento

A arte de desaparecer

Seis livros com personagens que escolheram sair de cena, sumir do mapa

Laura Capelhuchnik 29 de Março de 2020
  • 1

    Hibernar no apartamento

    “Meu Ano de Descanso e Relaxamento”, Ottessa Moshfegh, 240 págs., Todavia
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    A alienação é o caminho escolhido pela protagonista sem nome do segundo romance da escritora norte-americana Ottessa Moshfegh, lançado no Brasil em 2019. A narradora é bonita, bem de vida, mas tem o peito vazio, muitos problemas de família e um asco pela humanidade. O jeito que encontrou foi se esconder para se autopreservar; driblar as mazelas e o trabalho pela via dos entorpecentes. A personagem, então, passa o ano hibernando em seu belo apartamento em Nova York, um pouco antes dos atentados de 11 de setembro. Mergulha no sono das drogas comercializadas sob prescrição, algumas inventadas para o romance, outras já conhecidas pelos psiquiatras e pacientes: Valium, Orfidal, temazepam e Infermitero, entre outras. As únicas interferências do mundo exterior são os ruídos dos VHS da década de 1980 protagonizados por Whoopi Goldberg e visitas de figuras como um amante e uma amiga que sofre de bulimia. Moshfegh, filha de uma  croata e de um iraniano, é uma escritora de humor ácido, finalista do Man Booker Prize e extremamente apropriada para tempos em que nosso único desejo é sumir.

  • 2

    Deixar a cidade

    “O Escritor Fantasma”, Philip Roth, 192 págs., Dom Quixote
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    O personagem E. I. Lonoff é um escritor eremita que abandona a vida em Nova York para se refugiar em uma cordilheira de Massachusetts, nos Estados Unidos. Atormentado pelas exigências da intelectualidade sobre sua produção literária, Lonoff opta pelo isolamento para poder criar em paz e, mergulhado na escrita, desaparece da vida real. A trama se desenrola a partir do esperado encontro entre Lonoff e o jovem romancista Nathan Zuckerman, um de seus maiores admiradores. Zuckerman é o alter ego do autor americano Philip Roth: ele figura em nove de suas obras. A primeira aparição é neste romance, que tensiona as relações entre vida e literatura e mostra como uma tem potencial de complicar a outra. 

  • 3

    Se comunicar de outro jeito

    “O Sumiço”, Georges Perec, 256 págs., Autêntica
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    O escritor francês foi membro do Oulipo, movimento literário experimental que submetia a escrita a jogos e regras formais, iniciado na década de 1960. O romance, publicado em 1969, é o primeiro depois de o autor ter aderido ao grupo: uma obra de quase 300 páginas em que não há a presença da letra “e” nenhuma vez — o que é especialmente restritivo na língua francesa, em que a vogal é responsável, por exemplo, por marcar o gênero das palavras. A obra se desenvolve a partir de uma investigação sobre o paradeiro do personagem Antoin Vagol, mas acaba girando em torno do sumiço da vogal. A omissão deliberada e sistemática de letras do alfabeto praticada por Perec é chamada de lipograma. Esses e outros artifícios lógicos e matemáticos são característicos da composição de seus livros. Na análise de alguns estudiosos, a falta não é somente uma opção estilística, mas está relacionada à perda precoce de seus pais, vítimas da Segunda Guerra Mundial, e à tentativa de lidar com a ausência familiar na constituição de sua identidade. 

  • 4

    Visitar realidades paralelas

    “Minha Querida Sputnik”, Haruki Murakami, 232 págs., Alfaguara
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    No romance de 1999, o escritor japonês narra um sumiço que é fruto de desencontros amorosos. Sumire, uma jovem de 22 anos aspirante a escritora, se apaixona por Miu, empresária casada e 17 anos mais velha. As duas passam a trabalhar juntas e, em uma viagem à Grécia, Sumire abre o jogo sobre sua paixão, mas não tem seus sentimentos correspondidos. Então decide desaparecer. A saga em busca de seu paradeiro se inicia. A obra apresenta os ingredientes que consagraram a escrita de Murakami: a solidão do japonês moderno, a busca pela essência do eu, o fantástico e os mundos paralelos, como analisa a professora Márcia Namekata, da UFPR, em entrevista à Folha de S.Paulo. “Minha Querida Sputnik”, para Namekata, leva tão ao extremo a solidão e introspecção dos personagens que as figuras centrais do livro chegam a ponto de ter acesso a outro mundo em sua própria dimensão, enfrentando conflitos pessoais. “O caso mais intrigante é o de Miu, que, no momento em que vive o confronto entre o mundo real e o imaginário, tem sua imagem fundida em duas, e seu outro ‘eu’ fica preso a esse mundo paralelo.”

  • 5

    Inventar uma nova identidade

    “A Amiga Genial”, Elena Ferrante, 336 págs., Biblioteca Azul
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    Febre ao redor do mundo, a Tetralogia Napolitana tem como ponto de partida um sumiço. No primeiro livro da série, a personagem Elena Greco relembra a relação de amizade com Rafaella Cerullo, iniciada ainda na infância, nos anos 1950, em um bairro pobre de Nápoles. Juntas, elas passam pelas turbulências da adolescência e o início da vida adulta. Mas a amiga vai embora sem deixar vestígios, e é a partir daí que a história se desenrola. Elena é notificada do desaparecimento misterioso da amiga e tenta impedir seu sumiço completo.

    Mas não é só porque Elena perdeu sua amiga de uma vida toda que este livro figura na lista, e sim pelo pseudônimo da autora, Elena Ferrante, cuja identidade permanece em segredo (embora seja atribuída à italiana Anita Raja). A escritora (ou escritor) nunca apareceu para promover seus lançamentos, participar de premiações ou dar entrevistas presencialmente. Mesmo assim — e também por isso — fascina o público e a mídia: a Tetralogia vendeu 30 milhões de cópias no mundo. Além do encanto pelo estilo e por uma literatura que retrata a relação entre mulheres do ponto de vista de mulheres, o anonimato também é um dos aspectos que garantem o sucesso de Ferrante. Em 2020, chega ao Brasil sua obra mais recente, “A Vida Mentirosa dos Adultos”, publicado após um intervalo de cinco anos sem novos romances, mas muitas buscas pela verdadeira identidade de Ferrante. 

  • 6

    Afastar-se de suas criações

    “O Peso e a Graça”, Simone Weil, Chão da Feira
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    “Participamos da criação do mundo ao nos descriarmos.” A frase é da francesa Simone Weil e está no livro que traz suas anotações sobre o amor, o sentido do Universo, as relações. Weil viveu no início do século 20 afinada com a metafísica e o misticismo. Um dos temas da obra, que é recorrente em seus diários, é a ideia de “descriação”. A autora escreve com a consciência de que as ideias são mais importantes do que a pessoa que as desenvolve. Seu trabalho de criação envolve também o trabalho de ausentar-se da própria criação: para que as ideias cresçam por si mesmas e sejam transmitidas para outros.

    Esse pensamento adotado por Weil está ligado não só ao trabalho mas à própria vida, segundo a tradutora Leda Cartum, responsável pela nova edição, em português, que será lançada em 2020. “Toda a vida dessa pensadora é uma busca por ser menos, e nunca ser mais. Desde o fato de ela não ter publicado livros em vida – O peso e a graça e vários outros são edições póstumas –, até por ela ter decidido trabalhar como operária, comendo menos do que o necessário para sobreviver”, explica. 

    Weil foi professora, sindicalista e militante política. Formou-se em filosofia e abandonou a trajetória acadêmica para trabalhar como operária na França. Escreveu diversos ensaios sobre o cotidiano nas fábricas e a situação da classe operária e a política internacional. Uma figura essencial para refletir sobre as possibilidades de recriação.  

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