68 — Gama Revista
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100 contos que representam diferentes idades da vida. A escritora Olivia Byington apresenta com exclusividade na Gama uma prévia de seu novo livro. A seguir, o texto 68

Olivia Byington 30 de Março de 2021

Ela não queria mais saber de sexo. Guardava a lembrança do seu melhor amante, o arquiteto com quem tinha se casado aos trinta e poucos anos e se separado antes dos quarenta. Dos três casamentos, esse era o campeão, louvado nas conversas até mesmo com as duas filhas. Por principio ela achava que não devia falar de sexo com suas meninas mas a vida já ia longe. As meninas eram mulheres adultas que tinham se casado e separado mais vezes do que ela própria. Então contava tudo com detalhes apimentados e se gabava. Pouco se importava com o que elas iam pensar do pai que tinha ficado em ultimo lugar no ranking dos maridos. O casamento com o advogado no principio da juventude foi contaminado pela pudicícia religiosa da sua família. As meninas nasceram em seguida e logo veio a separação. Ele a deixou com as duas filhas ainda pequenas e ela jamais assumiu o estrago que isso lhe causara. Ao contrário, se recusava à posição de vitima e sobreviveu a tudo armada em heroína mesmo que pra isso fosse preciso pisotear diariamente nas memórias do casamento fracassado. Um maricas. Quando cantou uma opereta na casa de minha avó vimos logo que ele desmunhecava. Compensou a ausência do pai, trabalhando e dando aulas particulares enquanto as meninas brincavam em volta da mesa de jantar. Demorou dez anos pra namorar outra vez e assumir um romance diante das filhas que já eram moças e tinham ido morar com o pai.

Foi quando se mudou para o apartamento de dois quartos com o arquiteto amoroso. Pintaram recortes de cores vibrantes nas paredes e encheram a varanda de samambaias. Na casa pequena sempre cheia de amigos, ela cozinhava e bebia cerveja junto com o seu amor. O fato dele ser oito anos mais jovem do que ela e vir de outra camada social suscitava criticas na família. Ela sempre quis ser diferente, parece que agora conseguiu. Espera que ela vai ver no que vai dar isso. Criado no subúrbio, ele surgia de um universo distante, quase desconhecido por ela. Sua paixão transcendeu os preconceitos fixados na infância. De cor, de origem, de educação. Ele não falava o seu francês perfeito e não tinha tomado chá em pequeno como ela mesmo repetia pras filhas quando se referia a alguém que vinha da elite à qual ela pertencia. Ela gargalhava com sua irreverência picante e se deslumbrava com as histórias de um mundo bem mais divertido que o dela. O encontro durou um breve período de felicidade e ele desapareceu no mundo. Tinha vontade de ter filhos, fazer a própria família. E sumiu.

Ela precisava de uma permissão pra ter o direito de ser tão jovem ainda

Veio o terceiro casamento com um homem mais velho do que ela, regrado, assexuado e sem humor. O que faltava nele ela não deixava transparecer, passando o tempo burocraticamente, com um casamento insosso que servia pra que ela não se sentisse só. Significava dividir a casa, a vida, a hora do jantar. Tinha largado seus empregos, tão variados na sua trajetória inventada. De tradutora a ilustradora, de publicitária a representante comercial. Trabalhou pra se sustentar a vida toda mas ele pediu que ela parasse o que ela aceitou de bom grado.

Quando ele adoeceu ela foi incansável ao seu lado até o último suspiro, dedicando-se como uma enfermeira experiente. Ele morreu e ela não chorou. Tinha cumprido sua missão com louvor e agora era viuva e pensionista do homem regrado que trabalhava pra uma universidade do Estado. Voltou a cuidar da vida sem graça, mas não tinha mais preocupações com o sustento e viajou sozinha pro inverno do hemisfério norte. Queria conhecer a neve provando que não precisava mesmo de ninguém.

Até que apareceu o arquiteto amoroso, seu segundo marido. Aos sessenta anos ele encontrou seu nome na internet e veio bater na sua porta. Tinha se passado uma vida inteira desde a ultima vez que se viram. Sentados de frente um pro outro, ela pensava no que ele estaria reparando exatamente. Seus olhos mantinham o brilho com o traço do delineador preto nas pálpebras feito com cuidado. A passagem do tempo amassou sua pele e seu cabelo grisalho nunca experimentou uma tintura sequer. Ela pôs a mesa e preparou o lanche para tomarem juntos. Esse bolo é aquele que eu fazia. Sem tirar nem por. Duas xícaras de cada ingrediente, quatro ovos e uma derramada de leite. Nunca deu errado.

Entre os goles de café e as fatias de bolo, as etapas da vida iam se sucedendo em páginas ilustradas com o humor conhecido dos dois. Ele já era avô, mantinha o mesmo corpo atlético, corria maratonas e guardava a ginga suburbana, o ar jovial e exótico pra ela que sorria e se lembrava da felicidade daqueles anos passados juntos. Seus dentes eram brancos e perfeitos e a pele escura fazia com que parecessem ainda mais claros. A cada sorriso ela surpreendia-se com a saudade que tinha ficado guardada no peito. Foram outros encontros como aquele nos dias seguintes. Era uma amizade enorme que surgia e era nessa amizade que ela apostava. É só isso mesmo, não pensem besteira meninas, vocês são muito maldosas. E as filhas riam reconhecendo na mãe a moça que aos trinta e quatro anos foi feliz. Mas pra ela de fato não cabia pensar em nada mais. A inexistência de contato íntimo com um homem durante tantos anos tornava a fantasia de tocá-lo uma ficção esdrúxula que era reprimida antes de emergir à consciência.

Foi ele quem tomou a iniciativa. Ela não se mexeu, não piscou. Quando percebeu estava debaixo das cobertas com o seu Eros e nada foi diferente daquilo que estava intacto nas lembranças de cada um. Era só um reconhecimento, uma saudação à memória, uma visita guiada a um lugar esquecido dentro dela. O amor voltou e quebraram a cama, o que foi difícil de confessar às filhas. Ela precisava de uma permissão pra ter o direito de ser tão jovem ainda. Foram ao cartório dois meses depois e trocaram alianças.

Olivia Byington é escritora, cantora e violonista. Publicou “O Que é Que ele Tem” (Objetiva, 2016). O texto “58” é parte de uma série de contos em que Olivia retrata as diferentes idades da vida — do 0 ao 100. Cinco desses textos serão publicados na Gama durante o mês de março de 2021, como uma prévia desse projeto que em breve ela deve lançar em livro.

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