A formação de crianças com deficiência e transtorno de aprendizagem no Brasil
Apesar de leis que garantem inclusão nas escolas, pais, professores e especialistas apontam que alunos seguem negligenciados e sem aprender
Quando percebeu que o filho pequeno não se comunicava nem respondia aos seus chamados verbais, a professora de educação infantil Luciana Viegas, 32, correu para buscar ajuda médica. Na marca de um ano e nove meses, ele foi diagnosticado com autismo.
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Embora a dinâmica e as interações em casa tenham permanecido iguais, ela logo percebeu que a vida lá fora seria diferente. Para começar, as falas capacitistas de pessoas que achavam mais fácil considerar a criança inapta do que aceitar a necessidade de suporte. E a entrada na escola, segundo Viegas, escancarou de vez a negligência.
“A gente morava em Jundiaí, no interior de São Paulo, uma cidade com bom IDH e índices altos de educação”, narra a professora, hoje diretora-executiva do Instituto Vidas Negras com Deficiência Importam. “Mas ele não tinha recursos de acessibilidade na sala de aula, nenhuma inclusão. A escola proibia entrar com pet, tablet, achavam que era tudo brincadeira. Colocaram barreiras que foram impedindo meu filho de ser inteiro.”
A saída foi se mudar com o marido e o filho para a periferia de São Paulo, em busca de um ensino mais inclusivo. Numa escola de Pirituba, na região noroeste da cidade, finalmente encontraram uma instituição com uma proposta mais adequada para incluir o pequeno de acordo com suas deficiências e particularidades, apesar da falta de recursos financeiros e materiais.
“Sem negar sua deficiência, meu filho é uma pessoa 100% capaz de fazer o que quiser, desde que os suportes sejam fornecidos”, afirma a mãe e professora. “Quando isso não acontece, ele não tem como dar conta.”
A Lei Brasileira de Inclusão determina que as escolas atendam crianças com deficiência em todos os níveis do ensino regular
Quando notou, ao longo do tempo, que compartilhava alguns comportamentos e dificuldades do filho, Viegas acabou descobrindo que também estava dentro do espectro autista. “Mergulhei a fundo nisso e comecei a identificar coisas que fazia na infância, o que me fez conectar ainda mais com ele.”
Em vigor desde 2016, a Lei Brasileira de Inclusão determina que escolas públicas e privadas devem envolver crianças e adolescentes com deficiência em todos os níveis do ensino regular. A legislação também pune tentativas de impedir esse acesso ou cobrar um valor extra por ele, além de garantir a oferta de um profissional de apoio sempre que necessário. No entanto, de acordo com pais, especialistas no tema e professores consultados por Gama, na prática essa inclusão ainda está longe do ideal.
Para o professor e pesquisador de educação e autismo Lucelmo Lacerda, a lei deveria garantir quatro pilares básicos a crianças e adolescentes com deficiência: acesso, participação, permanência e aprendizado. Mas, nas últimas décadas, os avanços teriam se limitado ao primeiro aspecto. “Em relação aos outros pilares, não só não avançamos como tivemos retrocessos importantes”, declara.
Na sua visão, a falta de normas que orientem a inclusão dos alunos vem impedindo uma participação ativa nas aulas. “Hoje, boa parte das escolas públicas do Brasil tem pelo menos um aluno autista que perambula pelos corredores, mas nunca entra na sala”, conta.
O especialista também aponta que a maioria das escolas não está preparada para lidar com comportamentos disruptivos de muitos alunos autistas, normalizando pedidos diários para que pais busquem os filhos mais cedo. Além disso, segundo ele, as taxas de abandono da educação especial hoje são muito superiores à evasão no ensino comum.
Já em relação ao aprendizado, diz Lacerda, é até complexo dar qualquer informação concreta. “Na maior parte das vezes, quando são feitas avaliações externas, esses alunos são orientados a não comparecer ou não fazer a prova”, aponta.
Nesses casos, indica o pesquisador, o ideal seria fazer exames que comparassem seu desempenho ao longo do tempo, mostrando a evolução. Mas, como exames nacionais raramente levam em conta necessidades especiais, ele afirma que informações sobre o desempenho dos estudantes com deficiência intelectual simplesmente não existem. E, ainda que existissem, com a educação atual, o mais provável é que não houvesse evolução alguma, diz Lacerda.
Transtornos de aprendizagem
Mãe de duas crianças com deficit de atenção, a psicóloga Iane Kestelman deu início há cerca de 20 anos, quando o tema ainda era pouco explorado pela sociedade, a uma jornada para entender e tratar o transtorno que dificultava o aprendizado dos filhos. Hoje presidente da ABDA (Associação Brasileira do Deficit de Atenção), ela foi participante em lutas que garantiram direitos como a Lei 14.254, de 2021, que determina o acompanhamento integral para estudantes com TDAH (Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade), dislexia e outros transtornos de aprendizagem.
Embora admita os avanços consideráveis nas informações sobre o deficit de atenção, ela considera que a educação inclusiva na área, um dever do governo, ainda deixa a desejar. “A lei foi sancionada depois de 14 anos de luta, mas essa inclusão ainda não é feita”, aponta Kestelman. “O que temos são professores que buscam se capacitar com seus poucos recursos e algumas escolas empenhadas em incluir esses alunos.”
A inclusão não é só trazer para a convivência, mas reconhecer a pessoa como igual, com acesso a tudo o que é oferecido aos outros
Pela perspectiva da especialista, a formação de professores na educação especial reserva pouco ou nenhum espaço para o tema. A psicóloga também frisa a importante distinção entre integrar e incluir. Enquanto o primeiro termo se limita a trazer pessoas para espaços que elas antes não ocupavam, o segundo precisaria ir além. “A inclusão não é só trazer para a convivência, mas reconhecer a pessoa como igual, com acesso a tudo o que é oferecido aos outros”, explica. Segundo Kestelman, o que as escolas públicas têm feito é integrar, sem de fato incluir.
Na falta de acolhimento e inclusão, muitas crianças acabam relegadas às margens da sociedade, especialmente as que vêm de famílias com poucas condições financeiras, diz a psicóloga. “Se nascerem numa boa classe social, podem ir além, mas ainda estarão aquém do que poderiam”, aponta Kestelman. “A pessoa com TDAH sempre começa em desvantagem. É como botar duas pessoas para correr uma maratona, uma com tênis de corrida e outra de chinelo.”
O estigma
O psicólogo e pedagogo Cristiano Pedroso, coordenador educacional da Adid (Associação para o Desenvolvimento Integral do Down), explica que o estigma em relação à pessoa com transtorno ou deficiência intelectual costuma se pautar na dificuldade de aprender conceitos escolares e adquirir autonomia. Isso, segundo ele, acaba gerando a falsa ideia de que esse indivíduo não é capaz de se desenvolver.
“A pessoa com síndrome de Down é um ser biopsicossocial em maturação. Por isso, está em constante evolução e é sensível às intervenções e experiências construídas no ambiente”, afirma o psicólogo. Quando é subestimada, diz Pedroso, sem incentivo para atingir seu máximo potencial, ela deixa de usufruir de uma educação de qualidade.
É o que acontece quando o processo inclusivo não oferece o apoio necessário. “Com base nos relatos das famílias, os avanços da inclusão são notáveis, mas ainda mais focados no quantitativo do que no qualitativo”, revela. Hoje no Brasil ainda faltam metodologias específicas, professores, materiais adequados e apoios de contraturnos escolares clínicos e educacionais, indica o especialista.
No caso da professora Luciana Viegas e do filho, o preconceito acontece em dose dupla. “Meu filho não enfrenta na escola só o estigma de ser uma pessoa com deficiência, mas de ser um menino negro com deficiência, com impactos grandes e significativos na vida dele”, conta Viegas.
De acordo com a professora e ativista na luta pelos direitos das pessoas negras com deficiência, é comum que, no meio de uma crise, alguém diga que seu filho é mal-educado e solte frases como “esse povo é assim mesmo”. A questão, ela diz, não tem a ver com quem sofre mais, mas com um aprofundamento das desigualdades. A isso se junta ainda à falta de representações na mídia de pessoas negras com deficiência, o que ampliaria a incompreensão inclusive nas escolas.
“A população negra é a que tem maior evasão escolar, e a população com deficiência, a que mais está na escola sem estar na escola”, afirma a professora. “Quando essas duas coisas se somam, temos uma baixa presença e permanência de pessoas negras com deficiência dentro de todos os espaços.”
Família: uma via de mão dupla
A psicanalista Iane Kestelman, da ABDA, também enfatiza a importância da participação dos pais no processo de aprendizagem, sem terceirizar toda a responsabilidade para a escola. “Em casa, é preciso que a família monitore, pegue 30 minutos do dia para olhar os cadernos, ver se está tudo organizado, se tem dever, sentar com a criança.” Afinal, segundo ela, a educação inclusiva precisa acontecer numa parceria da família com a escola, o que costuma ser raro.
Mas Viegas destaca que essa participação crucial não pode vir repleta de culpa e até criminalização. “É muito comum em comunidades periféricas professores ou diretores usarem o conselho tutelar para botar medo e criminalizar uma família que passa por situações de extrema vulnerabilidade”, exemplifica.
É uma via de mão dupla: ao mesmo tempo que a família tem que estar lá, também precisa sentir que a escola a acolhe
O que também acontece muito, segundo ela, são questionamentos excessivos às mães de acordo com o comportamento das crianças, passando uma ideia de que não estão cuidando corretamente dos filhos. “É uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo que a família tem que estar lá, também precisa sentir que a escola a acolhe, criando um ambiente seguro, uma relação sem culpa nem criminalização, para que possa pedir ajuda à escola e vice-versa.”
O aprendizado de cada um
Ao entrar em sua primeira sala de aula da educação infantil lá em 2011, a professora Noadias Novaes, 41, conta que se desesperou ao saber que ensinaria um aluno com síndrome de Down. “Não sabia o que fazer. Na época, tinha pouco acesso à internet e quase nenhuma informação”, lembra.
Moradora do distrito de Betânia, em Itapipoca, no interior do Ceará, ela optou por viajar toda semana até a capital Fortaleza para cursar uma formação em educação especial. “Foi com esse aluno que encontrei meu motivo para lecionar. Graças a Deus, adquiri e ainda estou em busca dos conhecimentos necessários a cada dia”, diz a professora.
Hoje ela atua principalmente junto a alunos com deficiência. Durante a pandemia e com as escolas fechadas, para evitar que eles regredissem em sua evolução escolar, a professora tratou de comprar uma bicicleta e pedalar pela cidade para atendê-los em casa. As aulas fizeram tanto sucesso que jovens familiares e vizinhos acabaram se juntando a eles, formando classes de até 60 pessoas ao ar livre.
Em classes compostas por alunos com e sem deficiência, a professora conta que busca o ensino individualizado, de acordo com as condições e níveis de conhecimento diferentes de cada criança. “Vou fazendo essas adaptações, vendo o que o aluno sabe, do que gosta, se tem ou não deficiência, e propondo atividades que consiga fazer e sejam importantes para seu desenvolvimento”, destaca.
Para evitar casos de preconceito e bullying, ela faz na escola um trabalho de base, em conversas constantes com os alunos. Segundo Novaes, deixar de lado casos assim só piora a situação. “O ideal é fazer intervenções, reunir a turma, explicar e combater. Se deixar, vai longe, e é uma coisa que dá muito prejuízo.”
O processo baseado nas necessidades de aprendizado individuais está próximo do mundo ideal defendido pelo professor e pesquisador Lucelmo Lacerda, tomando como referência o que é feito em países como EUA e Canadá.
“É quando faço uma avaliação do indivíduo com base científica, entendendo seus limites, possibilidades e potenciais, e crio um plano educacional individualizado que mobiliza práticas baseadas em evidências para apoiá-lo”, explica. Como exemplo, cita as diferenças entre as experiências educacionais dele e do filho, ambos com níveis distintos dentro do espectro autista.
“A melhor forma de se comunicar com meu filho em sala de aula é por comunicação alternativa, numa prática chamada treino de comunicação funcional”, afirma Lacerda, que descobriu ter autismo aos 38 anos, pouco após o diagnóstico do pequeno. “Se eu tivesse que entrar na escola hoje, não precisaria de nada disso, e sim de um treino de habilidades sociais e uma política de combate ao bullying muito forte.”
Hoje o estigma sobre o autismo, como aponta o pesquisador, é menos uma visão negativa do que uma divergência entre a expectativa e a realidade do transtorno. Por ter um espectro amplo, pode englobar desde dificuldades sutis de comunicação até a impossibilidade de fala, como acontece com pai e filho. “A pessoa cria, a partir da própria experiência, a expectativa de que todo autista seja como eu ou meu filho. Quando corresponde a essa expectativa, as coisas se encaminham bem. Só que isso dificilmente acontece.”
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