Raquel Rolnik: 'O espaço urbano não é inerte, ele produz desigualdade' — Gama Revista
Raquel Rolnik
Tomaz Vello

Raquel Rolnik: ‘O espaço urbano não é inerte, ele produz desigualdade’

Arquiteta e urbanista revela que história de urbanismo de São Paulo explica muito da desigualdade inerente à vida na capital paulista

Leonardo Neiva 05 de Maio de 2022

Que São Paulo é uma metrópole marcada pela desigualdade social não chega a ser uma novidade. De acordo com a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, no entanto, a cidade foi sendo planejada ao longo do tempo para criar e reproduzir essa desigualdade. A tese integra seu livro “São Paulo: O planejamento da desigualdade” (Fósforo, 2022), uma edição revisada e atualizada de “Folha Explica – São Paulo” (Publifolha, 2001), um pequeno clássico da arquitetura brasileira.

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“Questiono a ideia falsa de que São Paulo é o que é por causa desse caos, da falta de planejamento”, afirma a arquiteta, que assumiu recentemente o cargo de prefeita da Cidade Universitária. Na obra, Rolnik reúne evidências retiradas da história de urbanismo da cidade para provar que muitos dos problemas relacionados à desigualdade social vividos hoje pelos paulistanos foram fruto de políticas públicas, e não da falta dela.

Como um dos principais destaques na luta contra essa política de desigualdade no território urbano, a especialista enfatiza o surgimento de novos representantes numa periferia que fervilha com uma cultura marcada por questionamentos antirracistas. Não à toa, o rapper Emicida, uma das principais vozes desse movimento, é quem assina o prefácio da obra.

Apontando a contradição entre o boom imobiliário atual e uma crise sem precedentes na moradia urbana, Rolnik, que debate a obra neste sábado (7) na livraria Megafauna, também fala a Gama sobre os efeitos de uma arquitetura marcada por condomínios e shopping centers e a tomada em escala global da produção imobiliária pelos interesses do mercado financeiro.

  • G |Quais as principais mudanças desde que você publicou a primeira edição do “Folha Explica – São Paulo” lá em 2001?

    Raquel Rolnik |

    Alguns elementos permaneceram, mas existem novas configurações e fenômenos que emergiram, tanto do ponto de vista urbanístico quanto político. O novo livro foi uma oportunidade de repensar alguns temas, não só uma atualização histórica. Conto, por exemplo, como nos anos 1990 a cidade passou por um processo de reestruturação, em meio a uma crise econômica aguda que vem desde os 1980, com aumento da pobreza, e que coincidiu com o processo de redemocratização política. Outro elemento é o projeto de financeirização da cidade, como cada vez mais o setor imobiliário foi se transformando num dos elementos fundamentais do circuito financeiro global. Nos anos 1990, houve uma reorganização dos espaços comerciais da cidade com a emergência dos shopping centers, o primeiro produto do processo de relação entre finanças e imobiliário na cidade. Nele, novos instrumentos financeiros, particularmente os fundos de investimento imobiliário, permitiram uma titularização do espaço construído. A gente tem uma grande massa de capital financeiro que vai entrando e saindo do imobiliário e reestruturando a cidade. Ao mesmo tempo em que é esse produto, o shopping center também muda a sociabilidade e a relação das pessoas com o espaço. Ele chega num momento em que outros imóveis murados, voltados para dentro numa perspectiva de segurança, também se apresentam, como condomínios fechados e all inclusive, que geram na cidade um processo muito intenso de segmentação. Nos anos 2000, esse processo não é revertido, mas sofre duas tensões: um movimento muito importante de reapropriação do espaço urbano e reocupação de espaços públicos antes abandonados, e o rompimento com o modelo rodoviário por uma classe média mais jovem, que passa a usar e pressionar por melhoras no transporte coletivo, antes considerado “coisa de pobre”. O movimento pela melhoria do transporte coletivo implicou um aumento significativo da rede de metrô e CPTM e a implantação de corredores de ônibus na cidade. Isso também gerou uma transformação, mas não o suficiente para romper o modelo. Existe no período da redemocratização um processo de consolidação da periferia, que sempre foi objeto de mediação de representantes políticos do ponto de vista de oferta de infraestrutura. Hoje não dá mais para representar a cidade por uma leitura centro vs. periferia. O centro histórico virou um espaço de disputa e território popular. Desde os anos 1980, esse território vem sendo transformado numa região de expansão imobiliária para a classe média, em nome de uma revitalização, como se ali não houvesse vidas antes. Isso reverteu nos últimos 20 anos um processo de perda de população na região. Um último elemento muito importante, usando uma expressão do [filósofo e professor da Unifesp] Tiaraju Pablo, é a “emergência de novos sujeitos periféricos”, a partir de uma cultura que surge da periferia, com movimentos na música, no grafite e no rap muito marcados pela dimensão antirracista, numa cidade em que a desigualdade tem cor. Não por acaso convidamos o Emicida para escrever o prefácio do livro, trazendo uma dessas novas vozes que discutem a cidade.

  • G |Como diz o subtítulo, São Paulo foi de fato planejada para ser desigual ou o aspecto urbanístico é só um reflexo da desigualdade que já existia?

    RR |

    O espaço urbano não é só um cenário onde os grupos sociais atuam nem um reflexo no qual a desigualdade se desenvolve. O espaço urbano não é inerte, ele produz desigualdade. É através dele e de outros mecanismos que a desigualdade é também reproduzida e intensificada. Então a concentração histórica de recursos humanos, culturais e econômicos em determinados territórios e a exclusão sistemática da maior parte da população é um elemento central do maquinário da desigualdade na cidade. Questiono a ideia falsa de que São Paulo é o que é por causa desse caos, da falta de planejamento, e trago evidências retiradas da história da cidade de que todas as mazelas que vivemos hoje foram fruto de políticas públicas, e não da falta dela. Foram opções tomadas ao longo da trajetória da cidade. Esse processo continua em operação hoje. Neste momento, está sendo discutido na Câmara Municipal o PIU (Projeto de Intervenção Urbana) Setor Central, a mais nova tentativa de eliminar o território popular no centro em prol de uma frente imobiliária. Hoje a região ainda vive um contexto de lutas populares, com ocupações em regimes que não são de propriedade privada individual registrada.

  • G |A pandemia interrompeu ou afetou o momento de revalorização do espaço público e do transporte coletivo que você mencionou?

    RR |

    Durante a pandemia, no LabCidade fizemos uma crítica contundente do quanto as ações tomadas na pandemia são “classemediocêntricas”. Uma parte da população migrou para o online e o home office, mas outra parcela importante, envolvida nos serviços essenciais para que a cidade continuasse funcionando, seguiu circulando e usando transporte coletivo. Para eles, não houve política de proteção ou a possibilidade de permanecer em casa. Então falar que a questão do transporte coletivo se inverteu com a pandemia me parece falacioso. Como prefeita da Cidade Universitária, cargo que assumi faz dois meses, posso dizer que existe lá um problema sério de mobilidade. Com a retomada do presencial na USP, o número de pessoas que usam transporte público na universidade aumentou em relação a antes da pandemia. Só que, na capital como um todo, a gente teve uma redução de linhas de transporte, fruto de uma diminuição do número de viagens. O modelo de financiamento de transporte coletivo no país entrou em colapso, porque sua base é o pagamento da tarifa pelos usuários. Se diminui o número de usuários, vira uma crise. Mas é importante pensar que os processos que ocorreram na pandemia não foram generalizados, mas sim em territórios específicos.

  • G |Por que até hoje políticas redistributivas e de mudança da lógica urbanística não prosperaram ou não chegaram a mudar o panorama da cidade?

    RR |

    Porque nossa equação política de poder não mudou ainda. Não dá para dizer que as tentativas de redistribuição foram totalmente inúteis. Hoje as condições de estrutura em muitas periferias melhoraram concretamente a vida das pessoas. O Bilhete Único e a integração dos sistemas, por exemplo, representou uma ampliação do direito à cidade. Mas uma ampliação insuficiente, por causa da “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, nas palavras do Caetano Veloso, que é forte e hegemônica. Todo o processo de representação da periferia, dos trabalhadores e dos excluídos se acomodou no jogo do controle e distribuição de benefícios mediado pela política. O centrão do Congresso Nacional e sua importância como elemento que mantém uma ordem excludente também está presente na Câmara Municipal de São Paulo, historicamente dominada por um grupo que sobrevive dessa distribuição de benefícios nas periferias. Temos que entender os limites dos elementos redistributivos e como eles foram capturados por esse jogo político que mantém o modelo excludente.

  • G |Recentemente viralizou nas redes sociais um trecho do documentário “Um Lugar ao Sol” (2009), em que um casal que mora numa cobertura do Rio compara os tiros que ouvem das favelas próximas com fogos de artifício. O abismo social como o revelado ali é reflexo também da nossa organização urbana?

    RR |

    O Christian Dunker tem um livro primoroso sobre o que significa morar num condomínio fechado, que é uma espécie de shopping center. Essas formas de morar não são apenas produto do processo de desigualdade, mas também produzem esse processo e geram uma reestruturação das formas de morar. Na hora em que o zoneamento consagra o modelo de uma torre isolada no meio de um lote como incentivo ao mercado imobiliário, também induz muita gente a esse modelo de vida entre muros e reserva pedaços da cidade para a construção desse produto. Aí a moradia fica sujeita aos produtos imobiliários que têm uma lógica dependente da rentabilidade do espaço construído. Para o setor, essa rentabilidade é uma questão absolutamente definidora.

  • G |Além do aumento no número de moradores de rua, hoje mesmo jovens de classe média têm encontrado dificuldade para arcar com os altos preços de imóveis em cidades como São Paulo. Isso deve causar ou está causando uma mudança no panorama urbano que conhecemos?

    RR |

    Vivemos simultaneamente um dos maiores booms imobiliários da cidade e nossa maior crise de moradia, que não é fruto só da pandemia, mas de um processo que já estava ocorrendo e que ficou mais agudo. As duas coisas têm conexão. É uma tomada global do imobiliário pelas finanças. O fato de que o imobiliário se transformou no elemento central do processo de valorização financeira faz com que a produção de imóveis se descole cada vez mais das necessidades, ou seja, da capacidade de pagamento das pessoas. Tivemos um aumento de preços e aluguéis enlouquecedor, simplesmente em razão da disponibilidade de capital global para usar no imobiliário. Foi isso que determinou esse boom. Ao mesmo tempo, uma perda de renda e um desemprego agudos, que já vinham na crise em que estávamos mergulhados e pioraram com a pandemia. O resultado foi que nunca tivemos tantos moradores de rua e estamos vivendo um novo ciclo de enorme extensão de assentamentos precários nas periferias. No momento, não existe política habitacional federal, estadual ou municipal. O município agora está começando a se movimentar, apostando em parcerias público-privadas que claramente não atendem aos mais pobres, porque precisam gerar rentabilidade ao investidor. Então é fundamental uma intervenção inovadora na habitação, repensando esse tema na cidade, porque estamos diante de uma emergência habitacional.

Produto

  • São Paulo: O planejamento da desigualdade
  • Raquel Rolnik
  • Fósforo
  • 120 páginas

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