Viagens a Terras Inimagináveis
Psicóloga Dasha Kiper explora em livro a delicada relação entre cuidadores e entes queridos com demência
Pouco após concluir seu mestrado, a psicóloga Dasha Kiper passou a trabalhar como cuidadora de um sobrevivente do Holocausto que sofria de Alzheimer. Essa experiência marcante para a profissional nascida na Rússia e criada nos EUA se tornou a base para uma extensa pesquisa junto a cuidadores de pessoas com demência. Agora a psicóloga, hoje diretora de consultoria clínica de grupos de apoio da organização The Caring Kind, reúne boa parte das experiências de pacientes e cuidadores que acompanhou ao longo dos anos no livro “Viagens a Terras Inimagináveis” (Todavia, 2025).
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Kiper propõe novos olhares sobre os dilemas dessa relação delicada por meio de uma série de relatos comoventes, como o de um homem cuja devoção católica tardia acaba irritando a esposa, a crença de um paciente de que a mulher com quem convive há décadas na verdade é uma impostora e de amizades imaginárias que acabam levantando uma barreira invisível entre uma mulher e seu marido. Decidida a apresentar os diversos fatores presentes nesse contato, a autora explora não apenas as variadas formas como a mente de pessoas com demência costuma agir, mas também as reações mais comuns daqueles ao redor — em muitos casos, igualmente pouco razoáveis.
Como no trecho selecionado por Gama a seguir, a raiva, a frustração e a tristeza de muitos cuidadores, sentimentos absolutamente compreensíveis, evidenciam nossa dificuldade crônica de aceitar ou mesmo entender um diagnóstico como esse. Discussões frequentes e pesadas na busca por reestabelecer uma realidade partilhada com um pai, mãe, esposa ou marido também apontam, em vez de um sintoma de crueldade, o desespero por confrontar o paciente com a realidade, além da pequena esperança de que ainda é possível superar um quadro irreversível. Numa combinação de neurociência e literatura, psicologia e filosofia, a obra deixa claro como o amor e os laços de uma vida inteira podem nessas situações levar a padrões nocivos, dos quais é difícil escapar.
Observar como o sr. Kessler contornava e compensava a perda de memória me fez lembrar do conto “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges, cujo protagonista se lembra de absolutamente tudo. O que a princípio parece ser uma enorme vantagem cognitiva é, à sua maneira, mais incapacitante do que a perda de memória. Incapaz de esquecer, Funes está livre dos pecados da memória. Embora esses pecados pareçam um defeito, na verdade, são recursos adaptativos que nos ajudam a navegar pelo mundo. Justamente porque você e eu não conseguimos reter todos os detalhes da experiência, nossas mentes são motivadas a resumir a experiência em termos de valores, lições e significado. A memória perfeita de Funes, entretanto, não sente esse impulso ou essa urgência. Para ele, o mundo simplesmente está ali: cada pensamento, visão e som, cada experiência, é gravada, no mesmo instante, para sempre. Funes é mesmo escravizado pela memória, forçado a acumular fatos precisos, nos mínimos detalhes, que aumentam ao infinito, mas nunca assumem uma forma ou um aspecto.
Antecipando-se em meio século aos psicólogos cognitivos, Borges inferiu algo fundamental sobre a natureza da memória: a memória humana não é voltada para a precisão, não é uma gravação de acontecimentos, mas sim uma reconstrução deles que nos permite dar sentido ao mundo. Portanto, embora o sr. Kessler possa ter perdido a capacidade de lembrar, ele — ao contrário de Funes — ainda conseguia fornecer o que o dr. Sacks descreve como “continuidade, uma continuidade narrativa, quando a memória e, portanto, a experiência, [estão] sendo arrancadas a cada segundo”.
O que ajuda o paciente a lidar com a doença, porém, pode frustrar o cuidador. Quanto mais o Alzheimer subtraía do sr. Kessler, mais ele se agarrava à narrativa que lhe interessava e mais negava qualquer coisa que pudesse contradizer sua autoimagem. Para Sam, essa negação não era um subproduto da redução do hipocampo, mas um sinal da típica falta de autoconhecimento de seu pai. É claro que a própria predisposição de Sam também o impedia de reconhecer que havia perda de memória.
Como a memória é tendenciosa em relação ao conhecimento preexistente, todos nós “editamos” o presente para que ele se pareça com o passado. Não importava quais novos sintomas seu pai apresentasse, a memória de Sam codificava o comportamento do pai de forma que o pai parecesse mais condizente com o homem que ele conhecera. Assim, tanto as inclinações dos pacientes quanto as dos cuidadores colaboram para que a doença pareça estar menos disseminada do que de fato está.
É uma pena que só quando os pacientes ficam realmente desamparados e incapazes de fazer compensações os outros consigam enxergar a doença com clareza. Certa noite, em que Sam decidiu ficar para dormir, encontrou seu pai no corredor pegando o telefone.
Quanto mais o Alzheimer subtraía do sr. Kessler, mais ele se agarrava à narrativa que lhe interessava
“Para quem você está ligando?”, perguntou Sam.
“Pro meu filho”, respondeu o sr. Kessler.
“Ah”, disse Sam. “Quem sou eu?”
“Você é o Sam”, disse seu pai, indiferente à contradição e rindo da tolice dessa pergunta. Ele continuou discando.
Por um momento, Sam ficou atônito. Em seguida, se aproximou do pai e com jeito pôs o telefone no gancho. A expressão em seu rosto me disse tudo o que eu queria saber. Por fim, ele tinha percebido que algo que não tinha nada a ver com ele estava acontecendo. Seu pai tinha viajado para um lugar aonde Sam não podia ir, um lugar que ele precisava aceitar se quisesse ajudar o pai (e a si mesmo) a lidar com a doença.
É isso, eu pensei. Ele entendeu.
Mas não, não totalmente. Logo que o sr. Kessler voltou a se parecer com si mesmo outra vez, o discernimento de Sam diminuiu e a antiga dinâmica dos dois foi restaurada.
Depois que o sr. Kessler desenvolveu Alzheimer, pai e filho inverteram os papéis. Agora era Sam quem se preocupava. Assim como seu pai fizera com ele, Sam costumava rondar, controlar, insistir para que a vida fosse normal. E agora era o sr. Kessler que exigia espaço, que insistia na sua independência, que parecia determinado a provar que sabia o que estava fazendo. A intolerância que o sr. Kessler havia demonstrado em relação a Sam agora o castigava.
Como muitos filhos adultos, Sam achava difícil ver o homem que ele conhecia indo embora. Parecia injusto, e até cruel, que o sr. Kessler, tendo perdido a família na guerra e a esposa para o câncer, agora tivesse que perdê-los de novo, vendo-os desaparecer de sua memória. Então, Sam fez o que pôde para ajudar a preservá-los. Quando o visitava, ouvia pacientemente as mesmas histórias que já ouvira centenas de vezes antes. Ele se divertia com as reminiscências da Varsóvia onde o pai cresceu cercado pelas pessoas que amava. E era nesses momentos, em que o pai relaxava e deixava o filho cuidar dele, que Sam parecia mais feliz.
Como muitos filhos adultos, Sam achava difícil ver o homem que ele conhecia indo embora
Assim como a doença de Alzheimer pode aumentar os conflitos, ela também pode aflorar afeto e ternura: momentos tranquilos em que as discussões cessavam, quando o sr. Kessler, meio adormecido, pegava a mão do filho. Talvez por causa de um maior desejo de conforto ou da perda de inibição, ou talvez porque cuidar de um paciente torne o toque necessário, algumas pessoas ficam mais afetuosas fisicamente depois que o Alzheimer se instala.
Numa tarde de domingo, aconteceu algo incomum: Sam se ofereceu para fazer a barba do pai. A princípio, o sr. Kessler recusou, mas, sentindo que sua mão não era mais firme, mesmo hesitante ele concordou. Então Sam pôs um banquinho em frente à pia do banheiro e o sr. Kessler se sentou. Sam espalhou espuma no rosto dele e pegou um barbeador descartável. Observando-os da porta, notei que assim que o sr. Kessler sentiu o calor dos dedos de Sam e o toque da lâmina de barbear, ele começou a desfrutar. E Sam tinha prazer com o evidente deleite do sr. Kessler em ser paparicado. “Você parece um barbeiro profissional”, disse o sr. Kessler, rindo, quando Sam terminou o serviço. “Eu deveria te pagar.” E então, quando Sam limpou o resto da espuma, o sr. Kessler se inclinou para ele e suspirou: “Ah, que bom isso”.
Embora o sr. Kessler quase sempre se esquecesse desses momentos, toda vez que Sam dizia “Que tal fazer a barba?”, ele largava o jornal na mesma hora e ia com o filho para o banheiro. Sam, eu sabia, esperava ansiosamente por esses quinze minutos em que podia ficar junto do pai, e, por isso, sofreu um tranco quando o sr. Kessler, numa das sessões, depois de dizer a Sam que ele deveria receber pelo serviço, acrescentou casualmente: “Você precisa de dinheiro, não precisa? Com o seu hobby você continua pobre”.
Pego de surpresa, Sam sentiu uma onda de raiva que lhe era familiar e logo recuou para longe da pia.
O sr. Kessler, sem saber o que havia acontecido, virou a cabeça e perguntou: “Qual o problema? Por que você parou?”.
Sam não disse nada. Impassível, voltou a fazer a barba do pai.
O Alzheimer não só mantinha intacta a imagem que o sr. Kessler tinha de si mesmo, mas também preservava uma imagem obsoleta de Sam. Quase três décadas haviam se ido desde que Sam fora um jovem passando aperto, mas o sr. Kessler agora vivia predominantemente num passado em que os contratempos profissionais de Sam ainda o atormentavam. Nesse estágio da doença, era difícil saber se era o Alzheimer ou a memória seletiva do sr. Kessler que motivava suas palavras. Afinal, não é incomum a perda de memória agir em conivência com um sentido de realidade preexistente e distorcido de uma pessoa. Ao relatar tudo isso para mim, Sam disse algo que, com o passar do tempo, ouvi de muitos cuidadores: “Ele se lembra do que quer se lembrar”.
Sam disse algo que, com o passar do tempo, ouvi de muitos cuidadores: “Ele se lembra do que quer se lembrar”
Ao longo dos anos, deparei-me com muita raiva por parte dos cuidadores. Sam era apenas um dos tantos cuja raiva era constantemente reacendida pelo entra e sai da consciência do doente. É quase um axioma que, em relacionamentos problemáticos, os cuidadores prefiram se agarrar à raiva a aceitar a dor de perder alguém quando há questões que ainda não foram resolvidas. E essa relutância em deixar para lá se exacerba continuamente por uma doença que cria bastante ambiguidade no comportamento do paciente, impedindo que os cuidadores enfrentem sua dor.
Num fim de tarde, enquanto Sam ajudava seu pai a se deitar, o sr. Kessler olhou para cima e perguntou num tom gentil: “Quem é você?”.

- Viagens a Terras Inimagináveis
- Dasha Kiper
- Todavia
- 256 páginas
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