Trecho de livro

Uma Delicada Coleção de Ausências

Um dos best-sellers da Feira do Livro, novo romance de Aline Bei explora os desafios da convivência familiar entre mulheres de diferentes gerações

Leonardo Neiva 27 de Junho de 2025

Neta, avó e bisavó. Três gerações de uma mesma família passam a viver juntas no novo romance de Aline Bei. A autora volta a explorar temas como maternidade e infância em “Uma Delicada Coleção de Ausências” (Companhia das Letras, 2025), livro que aborda as diferenças e semelhanças entre três mulheres que precisam aprender a conviver enquanto compartilham seus traumas e mágoas.

Mas a obra não é apenas sobre conflitos. Mais uma vez, Bei explora os afetos e mundos particulares que vão sendo construídos e destruídos na convivência familiar. Também mostra o impacto que mudanças bruscas podem ter para a vida de uma criança, quando a chegada da bisavó trinca o forte elo amoroso então formado por avó e neta. Uma nova presença que vai se apoderando dos cômodos da casa e da própria vida dessas duas mulheres, que passam a ter de se acostumar com a solidão, a sobrecarga e uma série de pequenos traumas e violências.

Nesse encerramento da trilogia informal que inclui “O Peso do Pássaro Morto” (Companhia das Letras, 2017), seu livro de estreia, e “Pequena Coreografia do Adeus” (idem, 2021), a escritora retoma também um retrato da infância e suas perdas, da concretude do envelhecimento, da determinação feminina e de como os sofrimentos são cruciais para a nossa formação.

A obra foi a mais vendida da editora durante a Feira do Livro de São Paulo, onde Bei bateu um papo com a escritora e tradutora Bruna Dantas Lobato, que lança seu primeiro romance, “Horas Azuis”. Um dos destaques foi o estilo de escrita marcante da autora, em que prosa e poesia são indissociáveis, além de sua preferência por mesclar gêneros literários: “Gosto de embaralhar os gêneros ao meu modo, um pouco de poesia, dramaturgia, prosa, oralidade, vou misturando tudo isso no meu caldeirão.”


escurecia na pequena casa onde Margarida cresceu e morou por toda a vida, sem contar o interlúdio de sua fuga — mas isso aconteceu há tanto tempo que soaria até como uma memória inventada, se não fosse por tudo o que permaneceu daquela época. de outro cômodo, uma menina chama:

— vó!

e Margarida apaga o cigarro ainda contemplando o lusco‐fusco pela janela da cozinha.
quando abre a porta do banheiro, tudo é de um azul tão retumbante que as paredes parecem tremer. o espelho reflete a ligeira curva que Margarida ganhou nas costas ao longo dos anos, mas o rosto misteriosamente se manteve com o mesmo blues.

— que foi?

a menina aponta para a torneira de água quente. está de calcinha, o uniforme do colégio no piso, ao lado do que antes parecia da maior importância, mas que de repente se acabou: era um dadinho, esquecido no chão do banheiro, pois agora a menina é só o próprio corpo, sem a companhia de objetos. tal recusa não foi uma decisão, mas algo que lhe aconteceu numa tarde em que brincava de boneca e sentiu o plástico, tudo aquilo era de plástico, olho, joelho, pezinho. soltou a boneca no quintal, deixou que a noite a engolisse. no outro dia, a avó perguntou o que houve, com a boneca de ponta‐cabeça nas mãos.
não quero mais.
tem certeza, Laura?
tenho.
posso dar para o Camilo vender?
pode.

mas a avó não fez isso, escondeu no armário da lavanderia, para que no futuro, quando mostrasse à Laura, ela pudesse experimentar a mesma sensação que Margarida teve há pouco, olhando o lusco‐fusco pela janela. quando se deparar com a bonequinha, irá sentir um poema ao tempo vivido que é a nostalgia. mas é preciso que aconteça daqui a muitos anos. é preciso primeiro Esquecer, para então verdadeiramente lembrar.

“é preciso primeiro Esquecer, para então verdadeiramente lembrar”

a menina abre a torneira, iiiiiiii, a senhora ouviu? como se o alfabeto emperrasse.

Margarida se aproxima do barulho. coloca as mãos na água, que demora, mas esquenta. então não deve ser grave, não deve vir do fundo da parede.

— pode tomar banho, querida.
— no duro?

— (distraída com o bolor dos azulejos) no duro. amanhã peço para o Camilo dar uma olhada nesse encanamento.

Laura tampa o ralo, espera ansiosa a banheira encher. cargas elétricas parecem percorrer seu corpo, e nos olhos a mesma bondade serena e luminosa de um cão.

a avó coloca o uniforme no cesto de roupa suja. você lavou o cabelo ontem, diz. prende para não molhar.

Laura refaz o rabo de cavalo, frouxo desde o corre‐corre na quadra, quando fugiu de Lívia, pegou Jordana e venceu. ainda mais frouxo depois da lousa infinitamente preenchida por uma tal de raiz quadrada que chegou apenas para entristecer os cadernos. quem disse sim quando a professora perguntou entenderam ou mentiu ou foi apressado. era só esperar pelo fim da aula para perceber que a cabeça sabia o tanto que sabia antes, talvez até menos. já a professora de português ofereceu à Laura uma segunda chance para a menina melhorar o caderno que tinha se tornado um acúmulo de anotações sem data, todo sujo nas bordas, além daqueles desenhos inexplicáveis — monstros talvez? — que levantavam a suspeita de que a menina ficava rabiscando em vez de prestar atenção na matéria. mas que falta de capricho, Laura, será que eu vou ter que conversar com a sua avó?

“a menina pensa que a avó não merece uma neta que tenha duas caras, a suja e a limpinha, a de olhos de cão e a que xingou Lívia de puta

a pergunta gelou a menina de morte, ela sentiu algo tão grande como se tomasse um comprimido e crescesse. não que Margarida fosse brava, mas algumas coisas a deixavam triste, e não ir bem na escola com certeza era uma delas. por isso Laura apontou o lápis e vestiu a própria letra de capricho. se surpreendeu com a súbita precisão do O depois de um S bem macio; continuou aquela letra muito limpa, quase bonita de tão irreconhecível, e diante do esforço da menina que até suava a professora de português garantiu que o segredo do caderno ficaria bem guardado com ela.
mas o segredo também está em Laura ali no banho, e a menina pensa que a avó não merece uma neta que tenha duas caras, a suja e a limpinha, a de olhos de cão e a que xingou Lívia de puta. não sabe o
que deu nela, mas disse isso quando Lívia fez aquela coisa no seu pé para que ela tropeçasse. agora a menina sente o aperto de viver sendo duas, a incontrolável e a de sempre, mais calminha.

desliga a torneira do banho, iiiiiii.

Margarida pega o cesto de roupa suja e apaga a luz.

— vó!
— (volta e acende) desculpa, filha!
— fica aqui pra gente conversar.
— já venho.

Laura desce a calcinha. vê aquela mancha no tecido que sempre a faz sofrer de pura existência.

entra na banheira. desliza o sabonete pelo corpo, imitando uma propaganda que viu na tevê.

Margarida chega com um banquinho e o cesto de roupa suja vazio. abre a janela, que calor aqui.

— vó, a professora de português elogiou meu caderno.

“a menina sente o aperto de viver sendo duas, a incontrolável e a de sempre, mais calminha”

Produto

  • Uma Delicada Coleção de Ausências
  • Aline Bei
  • Companhia das Letras
  • 288 páginas

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