Trecho de livro

Setembro Negro

Uma das principais atrações da Flip, o italiano Sandro Veronesi, de “O Colibri”, retoma temas como família e perseverança em novo romance

Leonardo Neiva 13 de Junho de 2025

É o verão de 1972 na Versilia, noroeste da Toscana, na província de Lucca. Gigio tem 12 anos e vive o início de uma vida de experiências em vários sentidos: descobre a música, a leitura, o desejo, o amor. O escritor italiano Sandro Veronesi reconstrói em detalhes as imagens, os cheiros, os sons que animam esse momento doce e bastante específico da existência, instantes meio desconexos de uma juventude até então feliz. E que são brutalmente interrompidos. Nesse mais recente romance do autor, “Setembro Negro” (Autêntica Contemporânea, 2025), os laços familiares, traumas, amores e ressentimentos dão a tônica para uma narrativa que envolve desde a primeira página.

Mais conhecido por “O Colibri” (Autêntica Contemporânea, 2024) — livro com o qual venceu seu segundo prêmio Strega, um dos mais importantes da literatura italiana —, Veronesi hoje é reconhecido como um dos melhores e mais habilidosos romancistas da Itália contemporânea. E é um dos nomes confirmados na próxima Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece entre julho e agosto. Com uma obra extensa, boa parte dela ainda indisponível no Brasil, o escritor é também jornalista e ensaísta de renome, com a grande maioria de seus textos voltados para a escrita e o fazer literário.

Como bom italiano, o autor traz quase sempre a família para o centro de suas histórias, fator que pode explicar em parte o sucesso de “O Colibri” aqui no Brasil, um país onde as relações familiares costumam ser igualmente estreitas. Interessado em atos cotidianos de heroísmo, e com tramas otimistas e esperançosas apesar de seus aspectos sombrios, Veronesi apresenta em “Setembro Negro” uma nostalgia que, em conjunto com os cenários do dia a dia da Itália de décadas atrás, já tinha atraído muita gente à obra de Elena Ferrante. Se ele será capaz de repetir fenômeno semelhante não importa tanto quanto o crescente fascínio que sua obra já vem despertando em leitores do mundo inteiro.


Para começar a contar esta história, preciso falar dos meus pais. Naquela época, eles eram os guardiões da minha serenidade, e isso significa que eram bons pais. Eu tinha doze anos, e não havia nada na minha vida que chegasse perto da importância deles. Se é possível dizer que minha infância foi um espaço seguro e que fui uma criança feliz, o mérito é deles. Eis a razão pela qual os fatos que contarei me abalaram tanto: porque, pela primeira vez, eles não souberam me proteger, ou melhor, foram uma das causas das perturbações que sofri. Pela primeira vez, o mundo conseguiu me tocar diretamente, sem filtros — e o mundo queima, é fogo vivo, e eu não sabia disso porque, até então, justamente meus pais sempre se colocavam no meio: só que, daquela vez, eles próprios foram o mundo enfurecido; por isso, pode-se dizer que, a partir de certo dia, não fui mais feliz — pelo menos não daquela maneira —, e foi por culpa deles.

Meu pai era advogado criminalista. Aliás, era o único advogado criminalista na cidade em que morávamos, que agora vou dizer qual é, e todos vocês vão pensar a mesma coisa: Vinci. Mas Leonardo nada tem a ver com esta história. Prefiro recordar outra coisa ligada à minha cidade, muito mais importante para mim, embora ninguém nunca se lembre dela: a queda da ponte sobre o rio Arno, em 17 de novembro de 1966, poucos dias depois da inundação que atingiu Florença e toda a região. Esse desabamento, mais ainda que a própria inundação, foi o primeiro trauma da minha vida: a ponte desabou no rio, e minha cidade, junto com outras vizinhas, viu-se isolada do mundo. O isolamento durou muitos dias, não se ia à escola nem à catequese, as famílias foram divididas, e quem tinha de ir a Florença para trabalhar, como meu pai, era obrigado a fazer um longo desvio e percorrer estradas de montanha, que tinham se tornado perigosas. Eu ouvia dizer que aquele desabamento era um fato muito grave, porque a ponte tinha apenas doze anos: eu tinha a metade disso, e doze anos realmente não me pareciam pouca coisa, mas, seis anos depois, quando foi minha vez de desabar, percebi que doze anos são pouco. Por isso, lembro-me muito bem do período da inundação e da queda daquela ponte: eu e ela tínhamos a mesma idade quando fomos atingidos, ela pela natureza, e eu pelos homens, e essa é uma idade em que certas coisas não deveriam acontecer, nem às pontes, nem aos homens. É cedo demais.

A partir de certo dia, não fui mais feliz

Como eu estava dizendo, meu pai era advogado criminalista, tinha um escritório pequeno em Vinci e outro maior em Florença, em sociedade com um tal de Ciarnese. Que eu soubesse, ele defendia pessoas inocentes, e justamente o fato de ser ele a defendê-las garantia que eram inocentes. Meu pai era um homem bom e cheio de vida, dotado daquela beleza que constituía o padrão na época, ou seja, magro, de rosto encovado e braços fortes. Tinha belos cabelos pretos como a pelagem de um cavalo frisão, olhos escuros, mas cheios de luz, e uma boca grande e vermelha, feita especialmente para sorrir. Era apaixonado por esporte: não tinha um grande físico, mas afirmava que havia jogado rúgbi quando jovem e praticado judô (que ele chamava de “luta japonesa”) e caratê. Impossível verificar. Certo é que era louco pelo mar e pela vela e dedicava todo o seu tempo livre ao veleiro com o qual se divertia no verão: no tempo em que se passa a história que contarei, ele tinha um Classe A de madeira chamado Tivatù, que demandava uma infinidade de cuidados, e me lembro, como se fosse uma espécie de tortura, dos domingos de inverno em que ele me levava consigo a Fiumetto, em Versilia, para lixar a carena, consertar as fendas, passar o verniz, polir, cuidar daquele veleiro e protegê-lo como se fosse uma criança — como se fosse eu. Na realidade, ele adorava tudo quanto era barco, mas, em especial, gostava dos pequenos e velozes, com a quilha móvel, que podiam ser puxados manualmente para a praia. De vez em quando, também participava de regatas com Gianfranco, o proprietário do balneário Bagno Stella, aonde íamos nas férias, e com um dos irmãos dele, de nome Giuseppe. Nunca venciam: em casa, três troféus, um grande e dois pequenos, ocupavam o lugar de honra na estante da sala. Referiam-se a três edições diferentes da mesma regata, chamada “Happy Day”: na placa do troféu maior estava escrito “2º CLASSIFICADO”, e a data era 1967. Os dois menores eram dois terceiros lugares, de 1966 e 1968. Com base nessas descobertas, eu havia imaginado que ele, Gianfranco e Giuseppe fossem fortes, mas que depois, com o passar dos anos, tivessem encontrado um pão duro demais para seus dentes. Eu o ouvia mencionar nomes pomposos — Capio, Straulino —, que encontrava nos álbuns de figurinhas dos Campeões do Esporte, e achava que fossem eles os adversários que venciam meu pai nas regatas. No entanto, esses eram os ídolos do meu pai, e as regatas nas quais, após 1968, ele não havia conseguido ganhar nem mesmo um troféu de consolação eram pequenas competições amadoras, organizadas para entusiastas como ele. Na realidade, a questão da sua classificação nas regatas interessava muito mais a mim do que a ele, pois a palavra que deve ser utilizada quando se fala do meu pai é “diletante”. Exceto em seu trabalho, em todo o restante meu pai era um diletante, no verdadeiro sentido etimológico do termo, que tem a ver com delicere, ou seja, seduzir, atrair, laçar. Do diletante ele tinha a paixão contagiante e a alegria de existir, a despreocupação e a nobreza de espírito, mas também a superficialidade, a frivolidade, a improvisação e, às vezes, a ingenuidade. É importante ter isso em mente.

Minha mãe vivia em um paradoxo: quanto mais se esforçava para ser invisível, apenas dona de casa e esposa dedicada do advogado Bellandi, mais as pessoas a notavam

Minha mãe tinha os cabelos ruivos, mas de uma tonalidade indescritível — acreditem —, que existia apenas em sua cabeça. Era irlandesa. Tinha vindo com a família para a Itália quando criança, nunca deu para entender direito por quê. Negócios, diziam: seu pai era importador de derivados de borracha e se mudou com a família de Dublin para Florença logo após a guerra, em 1946, quando minha mãe tinha onze anos. Fez o caminho inverso treze anos depois, quando ela já estava noiva do meu pai, e foi por isso que não o seguiu. Deve ter havido certa tensão em sua família naquele período, uma vez que apenas um mês depois que seus pais partiram para a Irlanda minha mãe se casou com meu pai, em 25 de setembro de 1959, quase às escondidas, sem convidados, e menos de seis meses depois, em 12 de março de 1960, eu nasci. Não é difícil imaginar a razão da controvérsia, considerando que minha mãe era de uma família católica que tocava as raias do fanatismo.

Era uma mulher bonita, minha mãe, e, mesmo com toda a austeridade de seu estilo de vida (taciturna, roupas comuns, sem trabalho, sem carteira de motorista, sem vida mundana), aqueles seus cabelos de cor milagrosa eram uma atração irresistível nos lugares onde passava seus dias, ou seja: Vinci durante o ano escolar e Fiumetto nos meses de verão. Aqueles cabelos eram um grito que eu também ouvia: “Ei, olhem para mim! E, já que estão aí, olhem não apenas para os cabelos, mas também para os meus olhos cor de esmeralda, para minha pele branca como uma pétala de magnólia, para os milhares de sardas que surgem assim que tomo um raio de sol! Vocês nunca viram nada parecido!”. O que não deixava de ser verdade: era preciso viajar para ver mulheres como a minha mãe, mas, naquela época, as pessoas viajavam muito pouco, pelo menos na nossa região, e uma mulher como ela representava uma atração. Por isso, minha mãe vivia em um paradoxo: quanto mais se esforçava para ser invisível, apenas dona de casa e esposa dedicada do advogado Bellandi, mais as pessoas a notavam, o que sempre produziu uma boa quantidade de boatos a seu respeito — na verdade, não boatos, é melhor dizer “invenções”, uma vez que sua conduta irrepreensível não deixava espaço para rumores. Por outro lado, essa mesma atração havia despertado a paixão do meu pai, que sempre repetia aos amigos ter perdido a cabeça no instante em que vira aqueles cabelos “da cor de uma alvorada de maio na Cornualha”, dizia, “entre as seis e as seis e meia da manhã”. Como ele nunca tinha estado na Cornualha, sempre pensei que essa fosse uma citação — até porque ele não era um sujeito muito poético; mas, por mais que tenha pesquisado ao longo de todos esses anos, nunca consegui encontrar o original, e, portanto, pode ser que essa frase tenha sido mesmo inventada por ele. Depõe a favor dessa hipótese o fato de meu pai ter acreditado por muito tempo que a Cornualha ficava na Irlanda. Certo é que essa frase surtia efeito na minha mãe; era o que se via pelo sorriso que se abria em seu rosto sempre que meu pai a repetia.

O que ninguém imaginava, porém, e que no mundo inteiro somente eu sabia, era o fato de que dentro dela rugiam leões

Como eu estava dizendo, minha mãe era uma mulher muito vista, muito imaginada — e o que exatamente era imaginado não é difícil de imaginar. O que ninguém imaginava, porém, e que no mundo inteiro somente eu sabia, era o fato de que dentro dela rugiam leões.

Produto

  • Setembro Negro
  • Sandro Veronesi (trad. Karina Jannini)
  • Autêntica Contemporânea
  • 288 páginas

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