Trecho de livro

Sem Despedidas

Vencedora do Nobel, Han Kang, de “A Vegetariana”, evoca traumas passados e memória familiar em novo livro que celebra a fragilidade da vida

Leonardo Neiva 09 de Maio de 2025

Em seu primeiro livro publicado no Brasil após levar o Nobel de Literatura de 2024, a sul-coreana Han Kang compõe um delicado manifesto contra o esquecimento. Assim como a autora desenvolveu uma trajetória de resistência silenciosa para a protagonista de “A Vegetariana” (Todavia, 2018), até hoje seu livro mais conhecido, em “Sem Despedidas” (idem, 2025), ela mescla história, memória e a realidade contemporânea num mosaico que evidencia as inúmeras violências, mas também as muitas belezas do mundo em que vivemos.

A trama acompanha uma escritora que viaja de última hora de Seul à ilha de Jeju, a pedido de uma velha amiga hospitalizada. O objetivo: alimentar um amado pássaro de estimação deixado para trás após um grave acidente. Ao final de uma jornada muito mais longa e dura do que parecia, porém, o que a protagonista encontra é a história de uma família que se confunde com as sombras de um massacre real ocorrido na ilha entre 1948 e 1949, às vésperas da Guerra da Coreia, e que deixou como saldo dezenas de milhares de mortes.

Ao retomar um episódio de extrema violência que marcou a história do país, o livro ecoa a trama de “Atos Humanos” (Todavia, 2021), outra obra de destaque em meio à notável produção de Kang. Mas se lá a autora evocou um coral de vozes e pontos de vista diferentes para recriar um evento de grande magnitude, aqui ela recorre principalmente às memórias transmitidas pelas gerações de uma mesma família como forma de documentar os efeitos de um massacre. Com tradução de Natália T. M. Okabayashi, o livro é capaz de aliar essa descida à escuridão da violência humana a uma celebração da vida, por mais frágil que ela seja.


A neve caía esparsa.

O campo em que eu estava se estendia até uma colina. Ao longo do cume, se projetando na minha direção, havia milhares de árvores pretas sem copa ou galhos, apenas troncos nus. Como pessoas de idades diversas, eram árvores que se diferenciavam um pouco na altura e tinham espessura semelhante à de dormentes ferroviários. Contudo, não eram retas como eles, e sim inclinadas ou arqueadas. Por isso se pareciam com milhares de homens, mulheres e crianças magras, os ombros curvados cobertos de neve.

“O cemitério era aqui?”, pensei. “Essas árvores são todas lápides?”

Flocos de neve se depositavam como cristais de sal em cada copa cortada, em cada corte na transversal. Caminhei entre as árvores pretas e os túmulos em forma de monte que se prostravam atrás delas. De repente, meus pés paralisaram, pois senti que estava pisando na água. “Que estranho”, pensei, e quando me dei conta a água já havia subido até meus tornozelos. Olhei para trás. Inacreditável. Ao longe, no campo, onde achei que ficava o horizonte, na verdade estava o mar. Agora a maré subia.

Perguntei em voz alta, sem perceber: “De todos os lugares, por que usar justo este como túmulo?”.

O mar avançava cada vez mais rápido. Todos os dias a maré subia e descia assim? Os ossos já tinham sido levados, e tudo que restava eram os túmulos em forma de monte?

Não havia tempo. Eu não conseguiria alcançar os túmulos já inundados, mas as ossadas que estavam mais acima na encosta precisavam ser removidas. Naquele instante, antes que o mar avançasse mais. Mas como? Não havia ninguém ali. Eu também não tinha nenhuma pá. Como ia chegar a todos esses túmulos? Sem saber o que fazer, antes que me desse conta, a água já estava na altura dos meus joelhos, e me vi correndo, atravessando as árvores pretas.

Quando abri os olhos, o sol ainda não tinha nascido. Encarei a janela do quarto escuro, no qual não havia campo com neve caindo, nem árvores pretas, nem mar que avançava. Então fechei os olhos. Percebendo que tinha sonhado de novo com aquela cidade, cobri os olhos com as palmas das mãos geladas e permaneci deitada por mais um tempo.

Se pareciam com milhares de homens, mulheres e crianças magras, os ombros curvados cobertos de neve


O sonho aconteceu no verão de 2014, mais ou menos dois meses depois de eu ter publicado um livro sobre o massacre naquela cidade. No decorrer dos quatro anos seguintes, nunca duvidei da ligação do sonho com aquele local. Foi apenas no último verão que pensei pela primeira vez na possibilidade de que não se tratava só disso, e que minha conclusão rápida e intuitiva, na realidade, fora um equívoco ou um entendimento muito superficial.

As noites abafadas, de calor escaldante, já se sucediam havia três semanas. Eu, como sempre, estava tentando dormir na sala de estar, deitada sob o ar-condicionado quebrado. Já tinha tomado vários banhos gelados, mas meu corpo suado não esfriava mesmo com as costas coladas no chão de madeira. Senti a temperatura cair um pouco por volta das cinco da manhã. Era uma pequena dádiva, pois dentro de trinta minutos o sol nasceria de novo. Finalmente achei que conseguiria dormir um pouco; na verdade, senti que estava quase dormindo. De repente, aquele campo apareceu massivo detrás das minhas pálpebras fechadas. A lufada de neve se espalhando sobre os milhares de troncos pretos e os flocos de neve cintilantes que se acumulavam como sal nas copas cortadas eram quase reais.

Não sei por que meu corpo começou a tremer nesse momento. Era como o tremor de quando se desaba a chorar, mas as lágrimas não escorreram: na verdade, nem chegaram a surgir. É possível chamar isso de medo? Seria uma apreensão? Um arrepio? Uma agonia repentina? Não, era como um despertar frio, a ponto de fazer os dentes se entrechocarem. Uma faca enorme — uma lâmina de metal pesada que não poderia ser erguida com a força de uma pessoa — que flutuava no ar, parecendo mirar meu corpo. Era como se eu estivesse deitada enquanto ela e eu nos encarávamos.

Aquela foi a primeira vez que pensei que talvez o mar azul-escuro que avançava para levar os ossos sob os túmulos em forma de monte não tivesse a ver com as pessoas massacradas e a época que se seguiu. Talvez fosse apenas uma profecia pessoal. Talvez aquele lugar de sepulturas inundadas e lápides silenciosas estivesse me falando sobre o futuro da minha vida.

Ou seja, minha vida de agora.


No período de quatro anos entre a noite em que tive o sonho pela primeira vez e aquela madrugada de verão, vivi algumas despedidas. Algumas foram escolha minha, mas outras foram imprevisíveis, e eu só queria que parassem. Se, como dizem várias religiões antigas, existir em algum lugar — no céu ou no mundo dos mortos — um espelho gigantesco que observa e documenta cada movimento das pessoas, o registro dos meus últimos quatro anos seria como um caracol saindo da concha e avançando em cima de uma lâmina. Um corpo que deseja viver. Um corpo que é apunhalado e cortado. Um corpo que rejeita, abraça e agarra. Um corpo que se ajoelha. Um corpo que implora. Um corpo que se esvai, sem parar, em sangue, pus ou lágrimas.

Talvez aquele lugar de sepulturas inundadas e lápides silenciosas estivesse me falando sobre o futuro da minha vida

No fim da primavera, quando todas as dificuldades haviam sido superadas, aluguei um apartamento perto de Seul. Eu já não tinha parentes de quem cuidar nem um emprego que me ocupasse, embora fosse difícil de aceitar. Por muito tempo, sustentei e cuidei da minha família com meu trabalho. Como essas eram as prioridades, para escrever eu reduzia minhas horas de sono, secretamente esperançosa de algum dia ter tempo para escrever o quanto quisesse; esse tipo de anseio, porém, já não existia mais.

Deixei as coisas mais ou menos nos lugares em que a empresa de mudança havia colocado e até julho passei a maior parte do tempo deitada na cama, mas quase não conseguia dormir. Não cozinhava nem saía lá fora. Eu consumia água, um pouco de arroz e kimchi branco, que pedia pela internet. Quando a enxaqueca acompanhada das cólicas estomacais começava, vomitava tudo na privada. Certa noite, escrevi um testamento. Na carta, que começava com a frase “Por favor, resolva estas questões”, eu explicava de forma breve em que gaveta estava a caixa com as cadernetas de contas bancárias, a apólice de seguro e o contrato de aluguel. Também o quanto de dinheiro eu deixava, no que gostaria que fosse empregado e para quem desejava que fosse entregue o restante. Não tinha certeza, porém, de qual seria a pessoa para quem eu deixaria um problema desses, e o espaço do destinatário ficou em branco. Tentei ainda acrescentar uma frase de agradecimento ou de desculpas, dizendo que recompensaria a pessoa que resolvesse essas questões, mas no fim não consegui preencher nome nenhum.

Foi o senso de responsabilidade por esse destinatário desconhecido que finalmente me fez levantar da cama, onde não conseguia dormir nem por um segundo, mas de onde meu corpo se recusava a sair. Comecei a limpar a casa enquanto me recordava de alguns conhecidos, um deles teria de ser a pessoa designada para resolver minhas questões. Eu precisava descartar as garrafas plásticas de água amontoadas na cozinha, minhas roupas e cobertas, que certamente se tornariam uma dor de cabeça, e os registros pessoais, como caderninhos e diários. Com sacos de lixo nas mãos, pela primeira vez em dois meses, calcei apressada meus tênis e abri a porta de entrada. A luz do sol da tarde de verão se espalhou pelo corredor voltado para o oeste, como se fosse uma revelação. Desci de elevador, passei pela portaria e, enquanto atravessava o pátio, tive a sensação de estar testemunhando algo. O mundo em que os seres humanos vivem. O tempo naquele dia. A umidade do ar e a sensação da força da gravidade.

Voltei para casa e, em vez de continuar juntando as coisas acumuladas na sala, entrei no banheiro. Sem me despir, abri a torneira de água quente do chuveiro e me sentei ali, debaixo da ducha. Eu me lembro da sensação da superfície do piso de azulejos tocando a sola curvada dos meus pés, do vapor sufocante, da camisa de algodão colada nas costas completamente encharcada, do fluxo de água quente escorrendo pela minha franja — que crescera a ponto de cobrir os olhos —, pelo queixo, pelo peito e pela barriga.

Me dei conta da fragilidade da vida. De como carne, órgãos, ossos e vidas carregavam a possibilidade de ser facilmente destruídos e liquidados. Bastava uma escolha

Saí do banheiro, tirei a roupa ensopada e procurei algo que pudesse usar na pilha de roupas que ainda não fora descartada. Pus no bolso duas notas de dez mil wons dobradas várias vezes e saí pela porta de entrada. Andei até o restaurante de juk1 localizado atrás da estação de metrô mais próxima e pedi o de pinhão, que parecia ser o mais leve. Enquanto comia devagar o prato extremamente quente, do outro lado da janela de vidro o corpo das pessoas que passavam parecia delicado, como se fosse despedaçar. Foi nesse momento que me dei conta da fragilidade da vida. De como carne, órgãos, ossos e vidas carregavam a possibilidade de ser facilmente destruídos e liquidados. Bastava uma escolha.

  1. Mingau feito de arroz ou outros ingredientes como soja, feijão, gergelim, abóbora, pinhão, entre outros. [n.t.] ↩︎
Produto

  • Sem Despedidas
  • Han Kang (trad. Natália T. M. Okabayashi)
  • Todavia
  • 272 páginas

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