Trecho de livro

Os Anos de Vidro

Em livro de contos, Mateus Baldi explora gênero, sexualidade e nossa relação com o desejo a partir de personagens inquietos e incompletos

Leonardo Neiva 18 de Julho de 2025

A complexa relação com nossos desejos é a principal matéria-prima de “Os Anos de Vidro” (Nós, 2025), novo volume de contos da escritora carioca Mateus Baldi. Num avião, uma pessoa imagina um diálogo revelador com outro passageiro. Dois antigos colegas se reencontram num bar, onde um deles faz uma proposta criminosa. A passividade de uma mãe frente a um episódio cotidiano de violência começa a desencadear uma série de medos e traumas. Nessas 11 histórias curtas, Baldi desenvolve personagens marcadas por encontros inesperados e silêncios incômodos, em meio a uma paisagem urbana crua e violenta.

As narrativas, porém, não acontecem de forma isolada. Em uma das histórias, por exemplo, um jovem segue pelas ruas um antigo professor, o que acaba lhe dando coragem para iniciar um processo de transição de gênero. Mas o final desse conto não é a última vez que acompanhamos a história de Marina. Ela vai surgir mais para frente em meio a outras tramas, numa conexão fragmentada e não-linear espelhando romances policiais como os de de Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza, que ajudaram a formar Baldi como escritora.

Mestra em literatura, cultura e contemporaneidade pela PUC-Rio, ela também é autora do livro de contos “Formigas no Paraíso” (Faria e Silva, 2022) e organizadora da antologia “Vivo Muito Vivo: 15 contos inspirados nas canções de Caetano Veloso” (José Olympio, 2022). Aqui, além de questões de gênero e sexualidade que integram boa parte das narrativas, a autora faz questão de explorar, em suas próprias palavras, “outras vidas que não a minha”: personagens inquietos, incompletos, incertos sobre aquilo que desejam. Tudo isso numa prosa concisa e direta, capaz de envolver o leitor em poucas páginas nesses pequenos fragmentos que parecem arrancados da vida cotidiana.


Istmo

O homem à minha frente não sabia que estava sendo seguido. Caminhava a passos lentos, golpeando as pedras portuguesas com seus chinelos de borracha, as mãos para trás, pequenas manchas de suor que escureciam a camisa branca. Seu cabelo ainda era grisalho.

Eu o seguia de longe o suficiente para que ele não me notasse. Mantinha o ritmo com cuidado, como se fosse possível alertar uma vítima e pedir desculpas antes do bote.

Ele virou à direita na rua do Catete e foi até uma esquina, onde dobrou à esquerda, seguindo pela transversal. Eu olhava para o celular grudado à mão e de vez em quando consultava as notícias, respondia uma mensagem, um olho na caça e outro nos possíveis ladrões.

Ele ultrapassou um bar onde uns sujeitos bebiam assistindo ao VT do fim de semana e entrou na casa. Olhei para os lados, deixei um carro passar. Atravessei em silêncio. Pedi uma cerveja no balcão, um rapaz loiro fez gol. Os homens vibraram, parecia domingo.

Era terça-feira, e o sol derretia o asfalto.

Eu tinha saído de casa com uma missão simples: deixar as roupas na lavanderia e comprar uns potinhos para guardar arroz e temperos. A máquina havia escangalhado alguns dias antes e naquela manhã o rapaz da autorizada se ajoelhou na área de serviço, puxou uma placa cheia de fios coloridos e disse que só na sexta retornaria com uma nova. Minha mãe perguntou se eu não queria levar as roupas pra dona Cássia lavar e, se desse, passar. Abri o cesto, enfiei tudo em duas grandes sacolas de supermercado e desci fazendo ruído. Lá fora havia um resto de brisa do fim de semana, pedaços de ar fresco rolando entre os carros. Dona Cássia disse que uma das máquinas tinha dado problema, só no dia seguinte. Mas o vestido ficaria pronto no fim da tarde.

Agradeci, dobrei o recibo e meti no bolso. Peguei um copo de suco numa lanchonete e voltei a caminhar sem maiores preocupações, observando as pessoas, os movimentos da cidade. Foi diante do cinema que vi o homem saindo da farmácia.

Na época da escola ele era mais sisudo, metia medo, mas agora me parecia só um velho forte, ou um quase velho fraco, o que dava na mesma. Seu veneno não era capaz de se traduzir em intensidade física, era como outros milhares de velhos do bairro, e por isso eu me sentia lívido.

Na época da escola ele era mais sisudo, metia medo, mas agora me parecia só um velho forte, ou um quase velho fraco, o que dava na mesma

Decidi segui-lo por puro capricho — ou despeito. Parecia ter adentrado uma camada submersa que remontava a um passado não muito distante. Meu corpo foi ficando mole, os ônibus e os carros dilatavam na correria, o tempo carcomido de um material rígido — o ferro, o abismo, a ferrugem.

O homem loiro fez mais um gol e de novo ouvi os gritos no bar. Sentado numa cadeira meio de canto, me senti no ano do Penta, o uniforme grudado na coxa de Michael Ballack e um pequeno ardor contaminando minha barriga, ainda que não pudesse parecer mais que euforia — agora sei que não era, como também não era o rosto dos meninos na confraternização com a coordenadora pedagógica, celebrando na mesa ao lado à que eu estava, minutos depois de ela afirmar que o professor de biologia era viado.

Como você sabe, perguntaram, e ela disse ah, a gente saca, o cara nunca tem namorada, mora sozinho há anos, vive no bar com homem, não conta um caso, nada. A gente percebe. Fica fácil.

E se não for, indaguei, talvez ele só seja tímido.

As meninas riram. Eu estava no limite exato entre elas e os rapazes, o campo onde tudo se divide, e, sozinho, não conseguia perceber. Aquela fala — a gente percebe —, que me fez olhar para dentro e quase sussurrar e se me perceberem, uma loucura, eu circulava bem entre as meninas, conseguia conversar, de vez em quando até rolavam uns beijos, mas o futuro — essa era minha grande diferença para os meninos — não existia. Ou melhor, claro que existia, mas era inapreensível. Eu tinha certeza de que os outros caras, os bonitos e irrevogavelmente homens, vislumbravam que a vida era isso: botar uma roupa legal, ir a uma festa com identidade falsa, beijar meninas mais velhas, de preferência de tubinho preto, e contar vantagem no recreio de segunda-feira enquanto esperavam a de fora na arquibancada.

Quanto a mim, o que existia? Assistir a filmes antigos, flertar de forma desastrosa, sinalizar intenções e, en
quanto meus pais estavam no trabalho, ficar na putaria em bate-papos clandestinos usando um nick esquisito com homens que eu nunca veria, mas cujo prazer da proibição me fazia experimentar uma felicidade arrebatadora.

Ou então não era nada disso: ainda naquele momento, anos depois, eu fantasiava a possibilidade de que a visão de um sujeito que há muito não via, entrando numa sauna em plena tarde de verão, pudesse me libertar.

Ah, a gente saca, o cara nunca tem namorada, mora sozinho há anos, vive no bar com homem, não conta um caso, nada. A gente percebe

O jogo acabou pela segunda vez, os homens ficaram calados. Alguns me lançavam um olhar, sabiam que não fazia muito sentido estar sentado ali, mas será que sabiam que para mim, naquele momento, não fazia sentido um homem que eu não encontrava havia tanto tempo escolher entrar numa sauna justo quando eu o seguia? E se era tudo um jogo? E se ele me reconheceu num dos mil reflexos espalhados na rua e decidiu brincar, jogar, que nem quando trazia café quente e ameaçava atirar em quem não terminasse o trabalho de sala? Mais um pensamento, perverso, mas não menos útil: os
meninos gostavam.

No jantar de confraternização, a coordenadora pedagógica disse para não contarmos a eles, a verdade seria insuportável. Precisavam entrar na faculdade gargalhando, crentes de que tinham vencido um jogo que nunca estiveram perto de ganhar, que sempre tinha sido um truque — muito bem orquestrado, mas ainda assim, truque.

Não dissemos nada.

De vez em quando eu olhava para a sauna, mas ninguém saía, e só entravam uns rapazes esquisitos, o que me levou a pensar que deixavam suas casas para faturar à custa de velhos ricos, ou de qualquer classe social, vá lá, o que importava era o encontro — também não era um encontro, nos múltiplos sentidos da palavra, o que acontecia comigo naquela transversal? Rever, seguir, esperar. Paguei a conta do bar e fui embora. Não sei a que horas meu antigo professor deixou a sauna. No caminho, me pus a imaginar o que aconteceria se tivesse esperado, se tivéssemos nos reconhecido e conversado — será que ele diria algo como sempre soube que você era bicha ou ficaria espantado de puxar na memória o meu rosto numa carteira no canto da sala, escondido entre vinte rinocerontes, acuado na savana em que ele próprio era o leão invisível, pairando acima de nós aquele tempo todo, e já depois, quando eu estivesse perto de casa, diante de uma loja de roupas, a visão de um vestido e o desejo, o que será que ele diria, vai, entra e prova, ou não, se resguarda, fica aí, o que diria esse homem, esse fantasma que me assombra e que nunca, nunca tinha me dito nada em todos esses anos e agora me tomava com fúria, sua existência me possuindo e descortinando o abismo no qual eu tinha me equilibrado com tanto sucesso, dia após dia — o quê?

Dona Cássia deu uma olhada no varal, escolheu um dos cabides e me trouxe o vestido — longo, preto, decotado. Minha mãe tinha dito que ia ficar presa no salão, perguntou se eu não podia fazer o favor de buscar, ia ter um jantar, seria legal já deixar tudo organizado.

Claro, respondi.

O vestido deslizou pelo ombro e caiu até o tornozelo. Meus ossos, um tremor, ondas de possibilidades destrutivas

A casa estava vazia, fui direto para o computador. Mandei e-mails, escutei áudios. A agonia não passava. Em todas as redes sociais os perfis do meu professor eram fechados, mas a coordenadora pedagógica estava entre os amigos em comum.

Fui para a cozinha, fiz um sanduíche.

Na sala, sobre o encosto da cadeira, o vestido me encarava.

O espelho no quarto dos meus pais ficava atrás da porta. Olhei meu corpo já não muito magricelo, o pau marcando a cueca. Parecia impossível que alguém tivesse atração por aquilo, um corpo antiestético, no entanto lá estávamos eu, meu gesto, minha carne.

Decidi testar o abismo.

O vestido deslizou pelo ombro e caiu até o tornozelo. Meus ossos, um tremor, ondas de possibilidades destrutivas, o rastro de melancolia que era o olhar dos meus pais quando descobrissem o conteúdo da verdade incontornável que se formava naquele quarto: não era mais possível voltar atrás. Eu, Marina — então era esse o nome, o brilho, como um istmo —, não ia voltar atrás.

Pus o vestido de volta no cabide, sobre o sofá, e quando meu pai chegou, jantamos ouvindo suas histórias da viagem. Tudo parecia certo. Nenhum dos dois viu o buraco em mim, os átomos se reconfigurando no espaço do lar, passado e futuro descontínuos.

Eu tinha trazido o abismo para dentro de casa.

Eu, Marina — então era esse o nome, o brilho, como um istmo —, não ia voltar atrás

Produto

  • Os Anos de Vidro
  • Mateus Baldi
  • Nós
  • 144 páginas

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