Trecho de livro

Não Quero Falar Sobre Isso

Terapeuta Terrence Real defende, em novo livro, que os homens vivem hoje uma epidemia silenciosa de depressão

Leonardo Neiva 30 de Abril de 2025

Historicamente, especialistas em saúde mental têm afirmado que a depressão é mais predominante em mulheres do que em homens. No livro “Não Quero Falar Sobre Isso” (Intrínseca, 2025), no entanto, o terapeuta familiar norte-americano Terrence Real questiona essa ideia, apontando que, nos homens, o transtorno vem sendo constantemente ocultado por uma série de questões: desde o fato de que a depressão se manifesta de forma diferente em pacientes do sexo masculino à própria visão de que o homem não pode demonstrar suas dores e vulnerabilidades.

Assim, Real argumenta que muitos depressivos costumam esconder seus sintomas de familiares, amigos e até de si mesmos, convencidos de que a depressão os priva de sua masculinidade. Seguindo esse raciocínio, para o terapeuta, o transtorno atualmente é uma epidemia silenciosa entre os homens, responsável por uma série de outros problemas que consideramos comuns quando associados a eles: “doenças físicas, abuso de álcool e drogas, violência doméstica, problemas para estabelecer intimidade, autossabotagem profissional”, descreve o autor no trecho selecionado por Gama.

O terapeuta também se aprofunda na complexa relação que manteve com o pai violento e depressivo — uma das principais motivações para que entrasse na profissão. “Precisava saber sobre a vida dele para poder entender sua brutalidade e me livrar do ódio que nutri”, explica no capítulo inicial do livro. Mesmo com esse ponto de partida, o autor admite ter levado tempo para se interessar pela depressão masculina, acabando por aderir inconscientemente à tendência de ignorar manifestações de fragilidade nos homens que atendia. Agora, na obra, ele entrelaça as experiências de seus pacientes à própria dor e trajetória pessoal para oferecer um raro guia sobre como a depressão afeta os homens e também as pessoas que os amam.


A depressão oculta dos homens

“No meio do caminho desta vida, me vi perdido numa selva escura.”
Dante

Quando estou entre pais e filhos problemáticos, muitas vezes me sinto inundado por uma sensação de reconhecimento. Todos os homens são filhos e, quer saibam disso, quer não, a maioria dos filhos homens é leal. Para mim, meu pai era um misto confuso de brutalidade e sofrimento. Ao longo da infância, meu caráter assumiu um vazio sombrio e cruel que me assombrou por quase trinta anos. Como outros pais fizeram com seus filhos, meu pai (por meio do olhar, do tom de voz, do jeito de tocar) passou para mim a depressão que não sabia que tinha, da mesma forma que meu avô passou para ele: uma cadeia de dor, conectando pai e filho ao longo de gerações, num legado tóxico.

Analisando agora, fica óbvio que, entre outros motivos, me tornei terapeuta para cultivar as habilidades necessárias para curar meu pai (ao menos o suficiente para que ele se abrisse comigo). Precisava saber sobre a vida dele para poder entender sua brutalidade e me livrar do ódio que nutria. No início, fiz isso de forma inconsciente, não por um amor profundo, e sim por instinto de sobrevivência. Queria que esse legado chegasse ao fim.

Seria possível considerar que eu teria agregado ao meu trabalho uma sensibilidade especial para questões envolvendo a depressão em homens, mas, a princípio, isso não aconteceu. Apesar de todo o conhecimento de caráter pessoal que conquistei a duras penas, passaram-se anos até que eu tivesse coragem de convidar meus pacientes a embarcar na mesma jornada que eu havia trilhado. Não estava preparado, nem em termos de treinamento, nem de experiência, para chegar tão fundo na dor que reside em um homem — para abraçá-lo e confrontá-lo bem ali. Fui ensinado, como a maioria dos terapeutas (na verdade, como a maioria das pessoas em nossa cultura), a proteger os homens ao me deparar com sua fragilidade oculta. Também me ensinaram que a depressão era uma doença de predominância feminina e que sua incidência era de duas a quatro vezes maior entre as mulheres do que entre os homens. Quando iniciei na clínica, acreditava na simplicidade desses números, mas vinte anos de trabalho junto a homens e suas respectivas famílias me levaram a crer que a verdadeira história desse distúrbio é muito mais complexa.

Há um terrível conluio em nossa sociedade, uma dissimulação cultural em relação à depressão nos homens.

Uma das ironias a respeito da depressão masculina é que as próprias forças que ajudam a dar origem a ela nos impedem de enxergá-la. Não é esperado que homens sejam vulneráveis. A dor é algo que devemos superar. É provável que aquele que for assolado por ela veja a si mesmo como alguém digno de vergonha, assim como sua família, seus amigos e até os profissionais de saúde mental. No entanto, acredito que essa é a dor secreta que ocupa o centro de muitas das dificuldades na vida dos homens. A depressão oculta é responsável por várias questões que consideramos típicas dos homens: doenças físicas, abuso de álcool e drogas, violência doméstica, problemas para estabelecer intimidade, autossabotagem profissional.

Há um terrível conluio em nossa sociedade, uma dissimulação cultural em relação à depressão nos homens

Temos a tendência de não reconhecer a depressão nos homens porque o próprio distúrbio é encarado como algo não masculino. A depressão carrega, para muitos, uma dupla marca: o estigma da doença mental e também da sensibilidade “feminina”. Pessoas que vivem um relacionamento com um homem deprimido costumam se deparar com um doloroso dilema. Podem confrontar a condição dele (o que pode deixá-lo ainda mais constrangido) ou podem ser coniventes ao minimizá-la, um caminho que não oferece nenhuma esperança de alívio. A depressão nos homens (uma condição vivenciada como algo vergonhoso e constrangedor) em grande parte dos casos passa despercebida e não é reconhecida tanto por aqueles que sofrem dela quanto por aqueles que os cercam. No entanto, o impacto dessa doença oculta é enorme.

Estima-se que no mundo 11 milhões de pessoas lutem contra a depressão todos os anos. Nos Estados Unidos, o efeito da baixa produtividade combinada às despesas médicas gera um custo de mais de 47 bilhões de dólares por ano, valor equivalente ao relacionado a doenças cardíacas. Ainda assim, a maioria das pessoas que sofre dessa condição não é diagnosticada. Cerca de 60% a 80% das pessoas com depressão não buscam ajuda. O silêncio quanto à depressão é ainda mais desolador porque o tratamento tem uma alta taxa de sucesso. As estimativas atuais são de que, com psicoterapia e medicação, entre 80% e 90% dos pacientes podem obter alívio dos sintomas. Meu trabalho voltado aos homens e seus respectivos familiares me ensinou que, além da relutância em reconhecer a existência da depressão, muitas vezes esse distúrbio também não é diagnosticado porque os homens tendem a manifestá-lo de maneira diferente das mulheres.

Poucas coisas são mais diferentes nos homens e nas mulheres do que a maneira de lidar com sentimentos. Por que a depressão, um distúrbio do sentimento (na linguagem psiquiátrica, um “distúrbio afetivo”), deveria ser tratada da mesma maneira em ambos os sexos, quando a maioria das outras questões de ordem sentimental não é? Apesar de muitos homens a manifestarem de forma semelhante à das mulheres, há um número ainda maior que o fazem de maneiras menos evidentes, que na maioria das vezes são também ignoradas e mal compreendidas, gerando danos enormes. Quais são as manifestações masculinas da depressão? Quais são as causas? A etiologia do transtorno é a mesma para ambos os sexos? Acho que não. Assim como homens e mulheres em geral expressam a depressão de forma diferente, seus caminhos rumo a ela também parecem ser distintos.

Não é esperado que homens sejam vulneráveis. A dor é algo que devemos superar

A socialização tradicional de acordo com o sexo em nossa cultura exige que meninos e meninas “se diminuam”. As meninas têm permissão para manter a expressividade emocional e cultivar a conexão, mas são sistematicamente desencorajadas a desenvolver e exercitar de forma plena seu “eu” público e assertivo — sua “voz”, como costumamos chamar. Os meninos, em contrapartida, são incentivados a desenvolver seu “eu” público e assertivo, enquanto são sistematicamente afastados do exercício pleno da expressão de sentimentos e das habilidades necessárias para estabelecer e apreciar conexões profundas. Durante décadas, pesquisadoras e estudiosas feministas detalharam o grau de coerção exercido contra o desenvolvimento das meninas e os efeitos, às vezes devastadores, da perda do eu mais completo e autêntico. É hora de entender o processo que, de maneira análoga, se dá na vida de meninos e homens.

Em pesquisas recentes, evidenciou-se que a vulnerabilidade à depressão é, muito provavelmente, uma condição biológica hereditária. Qualquer menino ou menina, se tiver a combinação certa de cromossomos, pode ser suscetível à doença. Entretanto, na maioria dos casos, a vulnerabilidade biológica por si só não é suficiente para desenvolver transtorno. O que lhe dá origem é a consequência da vulnerabilidade hereditária com o dano psicológico. É nesse momento que as questões de gênero entram em jogo. A socialização tradicional prejudica tanto meninos como meninas, cada um de maneira particular e complementar. As meninas, e mais adiante as mulheres, tendem a internalizar a dor. Elas se culpam e causam sofrimento a si mesmas. Os meninos, e mais adiante os homens, tendem a externalizar a dor; é mais provável que se sintam vítimas uns dos outros e que descarreguem o sofrimento por meio de atitudes. Enquanto o número de pacientes mulheres supera o de homens no que se refere à automutilação, o número de pacientes psiquiátricos do sexo masculino hospitalizados supera em muito o de pacientes do sexo feminino quanto à taxa de incidentes violentos. Leves ou graves, a externalização nos homens e a internalização nas mulheres representam tendências preocupantes, inibindo a capacidade de cada um de estabelecer uma conexão genuína com a dor do outro. A internalização do sofrimento por uma mulher deprimida a enfraquece e prejudica sua capacidade de se comunicar. A tendência que um homem deprimido tem de extravasar o sofrimento via de regra gera mais prejuízos
do que apenas incapacitá-lo para a criação de vínculos de intimidade. Pode fazer com que se torne perigoso no âmbito psicológico. Com muita frequência, o menino ferido cresce e se torna um homem ferido, infligindo às pessoas mais próximas a mesma angústia que ele se recusou a reconhecer em si mesmo. A depressão nos homens, a menos que seja tratada, tende a ser transmitida. Foi isso que aconteceu entre mim e meu pai.

A depressão nos homens, a menos que seja tratada, tende a ser transmitida. Foi isso que aconteceu entre mim e meu pai

Produto

  • Não Quero Falar Sobre Isso
  • Terrence Real (trad. Bruno Fiuza e Roberta Clapp)
  • Intrínseca
  • 336 páginas

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