Trecho de livro

Memórias do Cacique

Livro narra pela primeira vez os anos de formação do Cacique Raoni, um dos principais líderes na luta pelos direitos indígenas e pela preservação da floresta amazônica

Leonardo Neiva 04 de Julho de 2025

Um dos nomes mais conhecidos nacional e internacionalmente da luta pelos direitos indígenas e pela preservação da floresta amazônica, o Cacique Raoni pertence ao povo Mẽtyktire-Mẽbêngôkre, também conhecido como Kayapó e Txukarramãe. Embora conheçamos sua face como líder, pajé e cuidador de seu povo, porém, a maioria de nós ainda sabe muito pouco sobre sua formação e os acontecimentos que o levaram a assumir uma posição de tanto destaque no cenário contemporâneo. Em “Memórias do Cacique” (Companhia das Letras, 2025), Raoni toma para si essa tarefa de lembrar e colocar nas páginas as memórias que o tornaram quem ele é.

Escrita a partir de entrevistas até agora inéditas feitas com Raoni por seus netos — seus tabdjwy — entre os anos de 2020 e 2023, a obra condensa dezenas de horas, divididas em várias sessões, em que ele se aprofunda sobre sua caminhada, as muitas mudanças que acompanhou ao longo do tempo e as histórias e mitos que o formaram. Falando sempre em mẽbêngôkre, língua tradicional do povo Kayapó, o livro é resultado de uma tradução meticulosa para o português feita por uma equipe liderada pelo antropólogo Fernando Niemeyer, que também assina o prólogo da obra.

Começando por relembrar histórias de seus antepassados, que foram sendo transmitidas e recontadas de geração para geração, em “Memórias do Cacique”, Raoni revela desde os primeiros passos de sua meninice até seus anos de formação, a passagem para a idade adulta, os primeiros contatos com os brancos e sua entrada na luta ininterrupta dos povos indígenas para não verem suas terras sendo arrancadas deles. Trata-se também de um convite para enxergar a história do Brasil de uma perspectiva diferente da nossa: a daqueles que sempre habitaram estas terras e hoje precisam elaborar estratégias de resistência para não serem apagados, defendendo a floresta também como uma forma de existência e esperança para o futuro.

A seguir, Gama seleciona um trecho do livro que mostra um momento pouco conhecido da trajetória de Raoni: sua entrada como guerreiro na luta contra os invasores brancos.


Nas florestas dos Tapirapé

Fizemos essa aldeia no Bytikrengri e dali começamos a andar para o rumo do Araguaia. Assim entramos nas florestas dos Tapirapé. Os brancos também já começavam a ocupar aquela região. A gente caminhava, montava os acampamentos, e os guerreiros saíam para uma incursão. Eu queria ir junto e falava para o meu pai:

— Eu quero ir com eles, quero matar algum branco pra tomar uma arma dele! Eu posso tentar bater em algum que já tenha sido atingido.

Mas meu pai dizia:

— Não, filho. Espere você crescer mais um pouco…

Foi praqueles lados que os brancos mataram meu irmão Tàkàkryti e meu cunhado Pirôre. O lugar onde eles foram enterrados, hoje é uma cidade.

Numa dessas incursões trouxeram o João Nhudjà. Nós estávamos acampados numa mata mais fechada, e meu irmão Kopre foi procurar algum sinal dos kubẽ. Dali a pouco ele voltou.

— Pessoal, a gente está bem próximo de um caminho dos brancos. Bem ali, no limite da mata. Amanhã a gente vai lá.

Enquanto eles foram, meu cunhado chamou para caçar.

— Meus cunhados, quero matar alguma caça pra vocês comerem. Algum de vocês poderia ir comigo

Todo mundo ficou quieto e pensei: “Eu vou…”, e outro disse:

— Eu vou com você.

Saímos pelo cerrado e topamos com um rastro de tatu. Tinha muito tatu-canastra lá; não sei hoje, se ainda tem… Os brancos com seus tratores já destruíram tudo, não deve ter sobrado nenhum. Então seguimos o rastro do tatu pelo cerrado até que topamos com uma colmeia. Meu cunhado disse:

— Vão tirando este mel, depois vocês me encontram. Eu vou na frente, atrás desse tatu.

Foi praqueles lados que os brancos mataram meu irmão Tàkàkryti e meu cunhado Pirôre. O lugar onde eles foram enterrados, hoje é uma cidade

Peguei um galho seco, cutuquei a colmeia e ela caiu. Nossa, tinha muito mel! Comemos um tanto, depois peguei um pouco, embrulhei numa folha, e ouvimos meu cunhado gritar:

— Venham aqui! Eu já matei o tatu!

Ele matou o tatu bem debaixo de um formigueiro, e já tinha preparado a alça para carregar. Eu disse:

— Deixe que eu carrego.

Nossa, como era grande aquele tatu! Botei nas costas e dali a pouco apareceram uns bois. A gente nunca tinha visto boi.

— Estão vindo uns veados-campeiros enormes! Cunhado, vamos subir nesta árvore!

Larguei o tatu-canastra e subi num pé de sambaíba. Os bois passaram embaixo da árvore, berrando. Depois que eles se foram, nós descemos e ficamos conversando sobre aqueles veados estranhos com chifres retorcidos.

Logo os outros já vieram trazendo o João Nhudjà. Tinham matado um branco que estava com ele e trouxeram o João, que também ganhou os nomes de Bep-oio e Kukôj-jamyti. Eu desembrulhei o mel que estava na folha e ofereci a ele, que se aproximou e começou a comer. Nós éramos praticamente da mesma idade. Depois voltamos para o acampamento na mata. À noite o João cantou uma música para a gente escutar. Foi assim quando o trouxeram, e ele passou a viver com a gente.

De outra vez trouxeram duas Tapirapé, a Iparemõ-i e a Pawãjngô. Os jovens mẽnõrõnyre saíram numa incursão e enquanto isso meu tio Àkire nos levou para pescar num rio largo onde tinha muito peixe. Esse lugar já foi tomado pelos brancos… Pescamos muito pacu, matrinxã, curimatã e arraia. Àkire disse

— Olha, vocês tomem cuidado! Venham banhar aqui mais pra perto, pois este lugar tem dono. Aqui é a morada de outro povo. — E continuou: — Eu vou dizer uma coisa pra vocês: eu tive uma visão onde meu sobrinho executava um kubẽ e trazia sua filha. Vamos retornar pra esperar por eles.

Meu tio Àkire nos levou para pescar num rio largo onde tinha muito peixe. Esse lugar já foi tomado pelos brancos…

Na aldeia as mulheres já tinham pintado o corpo e aguardavam nossa chegada com os peixes, que prepararam com massa de macaúba e assaram no forno de pedra ki. Ao entardecer, começamos a escutar este canto:

Ngrwa bàri ry dja mã ni
Jã pari bê mẽ pry
Ja tã barê
Ngrwa bàri ry dja mã ni

Jã pari bê mẽ pry
Ja tã barê ne mõ

Numa árvore de buriti
Debaixo há um caminho
Eu atravessei
Numa árvore de buriti
Debaixo há um caminho
Eu atravessei e seguimos

Pouco depois o grupo dos jovens mẽnõrõnyre chegou na aldeia com o ritual mẽ kurwỳk. Meu pai ficou ouvindo e disse para a minha mãe:

— Esse é um canto antigo dos kubẽ. São nossos filhos que vêm chegando, imitando a linguagem dos kubẽ que eles mataram!

Todos se alegraram.

— O grupo dos mẽnõrõnyre voltou!

Eles estavam pintados com a pintura do pàtjarapê e vestidos com seus colares. Quando olhei para eles, fiquei muito admirado. Depois se espalharam, indo cada um para a sua casa, onde foram recebidos por seus familiares com o choro cerimonial. Em seguida foram todos para a casa dos homens, comeram juntos e realizaram suas danças; somente os jovens. Nossa, eles dançaram muito! (Eu os comparo com os jovens Mẽbêngôkre de hoje que não têm mais esse comportamento; estão espalhados no meio dos brancos.) Então essas Tapirapé também passaram a viver com a gente, e assim nos tornamos inimigos dos Tapirapé.

Nossa, eles dançaram muito! (Eu os comparo com os jovens Mẽbêngôkre de hoje que não têm mais esse comportamento; estão espalhados no meio dos brancos)

Produto

  • Memórias do Cacique
  • Raoni Mẽtyktire (trad. Fernando Niemeyer)
  • Companhia das Letras
  • 296 páginas

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