Trecho de livro

Horas Azuis

O romance de estreia de Bruna Dantas Lobato, que traduziu “A Palavra Que Resta” para o inglês, trata do afeto familiar que sobrevive às distâncias

Leonardo Neiva 23 de Maio de 2025

Vencedora do National Book Award pela tradução para o inglês do livro “A Palavra Que Resta” (Companhia das Letras, 2021), de Stênio Gardel, Bruna Dantas Lobato agora se aventura pela escrita em seu primeiro romance. “Horas Azuis” (Companhia das Letras, 2025) acompanha o cotidiano de uma jovem brasileira que vai estudar literatura numa universidade em Vermont, EUA.

Enquanto se acostuma aos pouquinhos com o clima frio — bem diferente do calor de Natal, onde vivia —, com a rotina do campus, e faz amizades com outros alunos imigrantes, ela repete quase todos os dias um mesmo ritual: senta-se em frente à tela do computador para conversar com a mãe, que ficou sozinha no Rio Grande do Norte. Dividida entre as lembranças da vida no Brasil, os pedidos constantes da mãe para visitá-la e a realidade atribulada da universidade, ao longo do tempo, tanto ela como a relação com a mãe vão se alterando lentamente.

A autora descortina com sutileza e sensibilidade uma história sobre como construir uma vida longe de casa sem deixar de lado o amor e as conexões que ficaram no ponto de partida. É justamente pelos silêncios, do não dito, das pequenas experiências cotidianas que Lobato estrutura essa bela narrativa que, em última instância, trata do afeto familiar que resiste às distâncias impostas pela vida.


Cheguei ao campus de madrugada e subi as escadas arrastando minhas malas. Tinha viajado por quase trinta horas para chegar do Brasil àquela cidade no meio do nada em Vermont, mas ainda assim estava agitada demais para conseguir dormir. Até de manhãzinha, vaguei pelos corredores acarpetados da minha nova casa, conhecida no campus como a “caixa de leite” por causa do formato em ângulos retos e as paredes muito brancas. Li os nomes dos alunos nas etiquetas coloridas pregadas em todas as portas, visitei os banheiros que brilhavam com espelhos enormes, mexi em todos os armários e abri a geladeira vazia na cozinha no andar de baixo, ainda com cheiro de nova, como se ninguém nunca tivesse guardado comida nela.

Os quartos da minha casa tinham móveis idênticos de pinho: uma cama, uma cômoda, uma escrivaninha e uma cadeira que balançava levemente e arranhava o assoalho de madeira envernizada. Quando minhas duas colegas de apartamento chegaram, uma semana depois, cobriram seus quartos com colchas, pôsteres, cadernos e adesivos coloridos, e logo os dois ficaram diferentes: um macio com almofadas e tapeçarias nas paredes, o outro duro com cristais e cerâmicas feitas à mão. O assoalho riscado desapareceu sob tapetes felpudos. Elas tinham geladeiras, micro-ondas, chaleiras elétricas, lousas brancas com recados penduradas na porta, fotos emolduradas, cacarecos sobre todas as superfícies, pedacinhos de casa que trouxeram com elas ou compraram on-line. O quarto delas parecia cheio de si, transbordando com estampas, formas, recordações de suas vidas.

O meu continuou amadeirado, com pinheiros por dentro e por fora da janela enorme que dava para o campo de futebol rodeado de árvores. Nas minhas malas, só couberam meus diários, poucos livros favoritos, algumas roupas, frasquinhos de xampu e condicionador e uma minibarra de sabonete para me ajudar a sobreviver aos primeiros dias. Minha mãe me deu a bolsinha vermelha de primeiros socorros que ela deixava no carro com analgésicos e curativos e eu a enfiei na mochila, pronta para enfrentar o mundo, mesmo que me machucasse.

Minha mãe me deu a bolsinha vermelha de primeiros socorros que ela deixava no carro com analgésicos e curativos e eu a enfiei na mochila, pronta para enfrentar o mundo, mesmo que me machucasse

Apesar de eu ter uma bolsa integral e um trabalho de vinte horas por semana nos correios da faculdade, não tinha condições de comprar nada que não fosse imediatamente útil, só o essencial disponível nas lojas listadas no folheto de boas-vindas aos alunos estrangeiros, Walgreens, AT&T e Walmart: cadernos, toalhas, um cesto de roupas, um celular barato com teclado. Além dos lençóis brancos simples e de um travesseiro, a única coisa que comprei para o meu quarto foi um abajur: azul-marinho, articulável, um pouco de cor no meio dos tons de bege. Quando minha mãe me ligava pelo Skype, do nosso apartamento na periferia de Natal, era isso que ela via. O brilho daquele abajur, morno, sempre me iluminando. Depois, quando ficou mais frio e escuro, quando o céu se encheu de neve e as paredes brancas viraram azuis, eu dependia daquele calor, que esquentava minha pele quando a luz ficava acesa por certo tempo.

No começo, a gente se falava todos os dias, daí três ou quatro vezes por semana, quando as aulas ficaram mais puxadas e eu tinha trabalhos da faculdade para fazer. Eu arrumava a minha cama, empurrava para um canto a louça suja que tinha deixado na beira da janela e guardava as roupas penduradas no encosto da cadeira como espécie de preparação para as nossas ligações. Acendia o abajur, morno, e me sentava debaixo do seu abrigo. No computador, conferia minha imagem pela câmera para ver se as minhas olheiras não pareciam muito fundas, se nada no quarto estava fora do lugar. No Skype, através das nossas conexões lentas, minha mãe me perguntava como eu estava.

Mostrei pela câmera meus lençóis novos, meus cadernos em branco, minhas canetas ainda no plástico.

Você tem tanta vida pela frente, minha mãe disse.

O sol estava se pondo em Natal e amarelava sua sala.

Aproveite o calor por mim, falei.

Você tem tanta vida pela frente, minha mãe disse

Nos outros dias, quando eu não passava tanto tempo no quarto, enviava fotos minhas lá fora: debaixo de uma macieira carregando uma cesta de maçãs com minha nova amiga Safia, experimentando um casaco acolchoado num bazar, lendo livros da disciplina de English literature na frente da biblioteca e deixando minhas pernas balançarem na beira do cais do lago. Eu sorria em todas as fotos. O campus era lindo no outono, folhagem vermelha e dourada por toda parte. Sempre que eu pisava nas folhas ressecadas no chão e elas estalavam, quase me esquecia de tudo que sentia falta.

Quase me esquecia, mas nunca completamente. Safia me passava seu celular para eu tirar fotos dela para os seus pais no Paquistão. Ela sorria com as Montanhas Verdes ao fundo. Eu lhe entregava o meu para que ela fizesse o mesmo por mim.

Eu posava, uma mão no quadril, a outra segurando o cabelo para que não voasse no meu rosto.

Então nos sentávamos num monte de folhas, debaixo de um bordo, para estudar as fotos uma da outra, como estávamos diferentes com aquelas roupas e botas novas, neste lugar dourado.

Duas nerds de óculos e botas UGG falsificadas, eu falei e ela riu.

Você vai ver, nossos pais vão adorar, Safia disse. Os casacos até os joelhos, as cores vivas das folhas, as montanhas. É exatamente como eles imaginam.

Parece que você está andando na estrada do Mágico de Oz, eu disse.

Ela disse: Parece que você mora num cartão-postal.

Eu nunca conseguiria terminar de contar à minha mãe tudo o que via, precisaria de tanto tempo para contar quanto para viver

Durante as duas primeiras semanas no campus, tentei registrar todas as minhas experiências novas num caderno. Pratos que comi pela primeira vez, coisas que nunca tinha visto, expressões que não conhecia, palavras que ainda não conseguia pronunciar. Hegemony, facetious, Worcestershire. Um celeiro vermelho transformado em prédio acadêmico, copos de café servidos com canudos, ovinhos azuis num ninho, um carrapato de cervo, me contaram, subindo na minha perna. Carreguei o caderno no bolso e rabisquei nele sem pudor durante as aulas, refeições, conversas com os amigos, na esperança de que me ajudaria a captar algo daquele lugar. Eu teria uma imagem mais completa do que a que conseguia com a câmera, e isso serviria para eu me lembrar daqui mais tarde e também para compartilhar com a minha mãe.

Mas quando finalmente li o caderninho, só continha coisas como Chipmunks não são uma invenção de desenho animado! (Não são nem esquilo, nem serelepe, nem caxinguelê. Por que não tem uma palavra em português?), ao lado de uma página inteira que listava árvores coníferas: espruces, cedros, ciprestes, dezenas de tipos de pinheiros. Enfiei o caderno numa gaveta da escrivaninha e nunca mais escrevi nada, decepcionada com o fato de aquilo me parecer insuficiente e, ao mesmo tempo, exaustivo demais. Por um lado, lugar nenhum pode ser reduzido a um catálogo de comidas, plantas e cômodos. Por outro, havia coisas demais para nomear e tudo precisava de uma forma, uma textura, uma cor. Entendi naquele momento que eu nunca conseguiria terminar de contar à minha mãe tudo o que via, que precisaria de tanto tempo para contar quanto para viver.

Ainda assim, eu tentei. Contei-lhe como era caminhar pela neblina espessa, enrolar meu pescoço com lã, comer costelas com molho de mel.

Você me promete?, ela perguntou. Você me promete que vai voltar inteira?

Produto

  • Horas Azuis
  • Bruna Dantas Lobato
  • Companhia das Letras
  • 144 páginas

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