Trecho de livro

Gaza Está em Toda Parte

Com presença marcante na Feira do Livro, escritora e jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho denuncia genocídio palestino em nova obra

Leonardo Neiva 20 de Junho de 2025

O mundo hoje assiste com apreensão ao conflito entre Israel e Irã, iniciado após ataques de Israel a alvos militares e nucleares iranianos. No momento da publicação deste texto, o rastro já é de mais de 240 mortos. No entanto, nem mesmo a guerra pausou a escalada do conflito em Gaza, que vem acontecendo desde 2023, com um saldo de mais de 55 mil mortos em ataques do governo de Israel — e que segue aumentando, com dezenas de vítimas diariamente.

É dentro desse contexto que a escritora e jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho publica “Gaza Está em Toda Parte” (Bazar do Tempo, 2025), livro que reúne uma série de textos que a articulista vem publicando desde 7 de outubro de 2023, data do ataque do Hamas ao sul de Israel. Coelho, autora também de “O Meu Amante de Domingo” (Bazar do Tempo, 2022), esteve presente na Feira do Livro, em São Paulo, onde falou sobre a obra e reforçou sua denúncia a respeito do genocídio que vem ocorrendo na Palestina. No evento, Coelho ainda fez duras críticas a Israel, além de entidades europeias e jornalistas pela falta de ações mais contundentes contra o que tem acontecido na Faixa de Gaza.

“Não existe paralelo da situação da Palestina com nada no planeta. Gaza já foi um campo de concentração em um passado recente. Agora, é um campo de extermínio”, ela afirmou durante sua participação no evento. Muitos dos textos que compõem o livro foram escritos à distância, principalmente devido aos bloqueios que marcaram o início do conflito. Outros, no entanto, ela redigiu e registrou também em imagens de tudo aquilo que testemunhou nas suas viagens à Palestina e a Israel, relatando sua última ida a Gaza e traçando um verdadeiro retrato da aniquilação que o mundo acompanha ainda hoje.

Foto de Alexandra Lucas Coelho

3 de novembro de 2023

FORÇAS INTERNACIONAIS EM GAZA, JÁ. E UM BOICOTE GLOBAL AO GOVERNO DE ISRAEL

1- A Europa disse: nunca mais, e era mentira. Estamos a ver o genocídio ao minuto num campo de concentração. Milhões pelo mundo, incluindo milhares de judeus, manifestam-se pelo cessar-fogo. A União Europeia ignora-os: só uma “pausa humanitária”. Os Estados Unidos seguem Israel na guerra, agora também com “pausa humanitária”. É a pausa do curativo antes da bomba? A última refeição dos condenados à morte?

Sempre que pego no telefone para ver se W. e R. ainda estão vivos em Gaza vejo mais uma criança em choque, cortada, tirada dos destroços. Um pequeno saco de plástico com partes humanas. Muitos sacos brancos no chão, em valas comuns. Ou muitos sacos com gente ainda agarrada a eles, numa dor que não tem regresso. Há 27 dias consecutivos que 2,3 milhões de pessoas sem saída são bombardeadas ao vivo nos nossos telefones. O cessar-fogo é urgente, ainda mais: uma força internacional de interposição em Gaza, e um boicote global ao governo de Israel. Desde ontem — aguardamos que a lista cresça — Bolívia, Colômbia, Chile, Barém cortaram laços diplomáticos, chamaram os embaixadores ou falaram em genocídio.

2- Muitos judeus pelo mundo percebem isso com clareza, e no último shabat, 28 de outubro de 2023, milhares ocuparam a Grand Central Station de Nova York com t-shirts Não em nosso nome, cartazes Nunca mais é para toda gente. O tributo à memória do Holocausto estava ali, não em Israel. A vida estava ali, não a morte. Centenas foram detidos, numa fila interminável. Desobediência civil inédita na mesma noite em que Israel apagava Gaza do mundo, num blackout de telefone e internet.

Entretanto, nos Estados Unidos, uma anciã, militar retirada, levanta um cartaz pelo cessar-fogo, interrompendo o Secretário de Estado Antony Blinken, enquanto vários jovens erguem as mãos pintadas de vermelho. Noutro lugar, uma rabina levanta-se, interrompendo Biden, para apelar ao cessar-fogo.

Judeus que estão a descolar o judaísmo da barbárie. A libertar as pessoas para o protesto sem serem acusadas de antissemitismo. E ao dizerem, enquanto judeus, que nunca mais é para toda gente, libertam e protegem outros judeus. Inspiram judeus em Israel a quebrar o silêncio por dentro. Foi Israel quem colou o judaísmo à barbárie. Ao massacrar os palestinos, Israel é o pior inimigo dos judeus, além do pior inimigo de si próprio.

Estamos a ver o genocídio ao minuto num campo de concentração. Milhões pelo mundo, incluindo milhares de judeus, manifestam-se pelo cessar-fogo

Foto de Alexandra Lucas Coelho

O sionismo, claro, é muito anterior à fundação de Israel. O seu texto-marco é de 1896. Militantes sionistas recorreram repetidamente ao terrorismo nas décadas seguintes. A primeira vez que fui a Tel Aviv ainda entrevistei Uri Avnery, que fora um desses sionistas armados, e caminhara até uma certa ideia de paz, usava dois pins com as bandeiras de Israel e da Palestina.

Nunca foi tão urgente distinguir judaísmo e sionismo, antissemitismo e antissionismo. O judaísmo é milhares de anos anterior e está muito além do Estado de Israel. Os judeus de Nova York que se descolam da barbárie também se descolam do sionismo em muitos casos. Não dois Estados. Um Estado para toda gente, sem supremacia étnica ou religiosa.

Autores da chamada Nova História de Israel, como Avi Shlaim ou Ilan Pappé, falaram de como sionismo é racismo. Como um Estado para os judeus se fez à custa da limpeza étnica dos palestinos em 1948, a Nakba. O mundo acabara de sair da Segunda Guerra. O horror sem precedentes do Holocausto ficou inscrito na própria Declaração de Independência de Israel. E se nos primeiros tempos o Estado judaico teve vergonha dos que se tinham deixado abater (quando não colaborado na sua própria extinção), depois foi usando o Holocausto como arma. Enquanto tirava cada vez mais direitos aos israelenses não judeus. Racismo de Estado.

Há dias vi Netanyahu na sua performance de comandante-em-negro da guerra agora, mais uma vez invocando o Holocausto. Qualquer pessoa que conheça Israel sabe como isso é comum. E qualquer europeu sabe como a culpa do Holocausto tem paralisado a Europa. Não me vou alongar sobre o que já escrevi. O argumento do Holocausto tem de ser virado do avesso, desarmado. Em vez de motivo para não impedir a morte em Gaza, motivo para a impedir.

Em Gaza, Israel está a bombardear o próprio argumento da sua existência: proteger um conjunto de pessoas de serem perseguidas. A autodestruição de Israel tem vindo a acontecer há décadas, e 2023 pode ser visto como uma solução final, ao mesmo tempo assassina e suicida. Ao massacrar o povo que ocupou, Israel leva-se a si mesmo para um abismo irreversível.

3- Mas a União Europeia continua cega. “Israel é um Estado democrático guiado por princípios muito humanitários. Podemos estar certos de que o exército israelense respeitará as regras do direito internacional em tudo o que fizer, não tenho dúvidas quanto a isso.” As palavras de Olaf Scholz, líder da Alemanha, há menos de uma semana, quando 7 mil corpos já tinham sido identificados em Gaza, 2 mil dos quais crianças, e mais de dois milhões de pessoas continuavam bombardeadas. Li essas palavras e afinal era pior do que sermos todos maus animais. Pensei: somos a vergonha dos animais.

O argumento do Holocausto tem de ser virado do avesso, desarmado. Em vez de motivo para não impedir a morte em Gaza, motivo para a impedir

Toda a gente sabe que Scholz mente, a começar por ele próprio. Aquele foi o momento em que a UE decidia não apelar ao cessar-fogo (salve Irlanda, brava). Em que a UE subscrevia como democrático um Estado que está a cometer crimes de guerra, que destratou Guterres, que cuspiu na cara do mundo, dizendo que “a ONU não tem qualquer relevância”. É embaixo disto que Scholz assina? É com isto que a UE quer construir um futuro? Quer proteger os judeus? Proteja-os de Israel.

Que credibilidade tem a Alemanha, ou a UE, depois disto? Tal como os Estados Unidos não têm credibilidade para falar de barbárie.

4- Pego no telefone e a cada minuto aumenta o abismo. Vários abismos: entre gerações, entre eleitores e eleitos, entre Ocidente/Norte e Oriente/Sul. Os mais velhos não ouvem os mais novos. Os governos não ouvem a rua. A gente sai à rua aos milhares contra a guerra em Gaza, por exemplo em Lisboa, apanha com uma chuvarada, e a imprensa resume a coisa a umas centenas, e aos partidos. Mais um abismo: entre a imprensa e as redes sociais.

Os telefones são a arma de uma população que o mundo abandonou. A parte mais envelhecida da Europa — ou parada no tempo, ou só cega mesmo — não terá noção das imagens nas redes que mostram o massacre. Dos reels de um apocalipse contínuo. Mas as pessoas no Oriente Médio e pelo mundo estão de telefone nas mãos. As novas gerações estão a ver isto. E é como o afastamento das placas tectônicas, dos continentes. Não ter noção das redes agora é uma irresponsabilidade para quem tem responsabilidades políticas, porque é nas redes que estão as pessoas sem voz. A partir de um gueto onde não puderam entrar mais jornalistas desde 7 de Outubro.

Há 27 dias que um 7 de Outubro é multiplicado entre anúncios de publicidade e a frivolidade das vidas, tudo a misturar-se como se fosse ficção. Como se fossem trailers. Trailers de crianças a serem arrancadas de escombros.

Mais crianças morreram agora em Gaza do que em todos os conflitos do mundo em três anos. Por muito tempo elas vão assombrar-nos. Vão assombrar as crianças de agora.

Foto de Alexandra Lucas Coelho

5- E a barbárie do Hamas, os reféns? É a única pergunta de muita gente ao fim de 27 dias, mal ouve falar das crianças em Gaza. Mesmo quando esses reféns criticam a ação de Israel. Mesmo quando é claro que Israel os está a usar na guerra. Mesmo quando os EUA, a UE, e outros poderes estão empenhados em salvar cada uma dessas vidas. Ou seja, quando elas já têm quem as proteja — felizmente —, ao contrário de 2,3 milhões em Gaza.

Mais crianças morreram agora em Gaza do que em todos os conflitos do mundo em três anos. Por muito tempo elas vão assombrar-nos. Vão assombrar as crianças de agora

O Hamas é um movimento religioso nacionalista que recorre a terrorismo. Será essa a fasquia da democracia? Contrapor o Hamas a Israel é dizer que as democracias têm o direito de ser terroristas. Que um Estado a que o Ocidente chama democracia, com centenas de milhares de soldados, tanques, força aérea e poder nuclear, pode ser bárbaro porque a 7 de Outubro o Hamas, ou quem o seguiu, foi bárbaro. De cada vez que se repete isto é a Humanidade que se afunda.

E os milhares de trabalhadores de Gaza agora reféns de Israel? Gente de quem não sabemos os nomes, nem quantos são, sequer. Nada sabemos deles, ao contrário dos reféns do Hamas. Valem menos, essas vidas de Gaza? E as da Cisjordânia? O terror a que três milhões estão sujeitos com colonos que os atacam em contínuo. Além das dezenas de milhares de israelenses que se armaram desde 7 de Outubro. Israel é um paiol, com cada vez menos espaço para a compaixão, para a morte dos outros.

E a Europa continua sem perguntar a si própria: por que a impressiona mais a morte em Israel do que a morte em Gaza?

Produto

  • Gaza Está em Toda Parte
  • Alexandra Lucas Coelho
  • Bazar do Tempo
  • 400 páginas

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