Trecho de livro

Corsária

No seu primeiro romance em mais de 20 anos, a autora de “As Mulheres de Tijucopapo” narra a jornada de uma mulher por reparação em nome dos pais

Leonardo Neiva 11 de Julho de 2025

Qual é a real importância de um nome e de uma linhagem? No Brasil, pode significar muito: a diferença entre exploradores e explorados, entre donos de terras e despossuídos e, principalmente, entre brancos e negros. Em “Corsária” (Fósforo e Ubu, 2025), a jornalista e escritora Marilene Felinto, que já foi colunista da Gama, conta a jornada de uma mulher não para reverter a omissão de sobrenome de que seus pais foram vítimas, mas para exigir a reparação por uma vida marcada pelo racismo, pela pobreza e por trabalhos perigosos e mal remunerados.

Lena é quem deixa para trás uma existência estabelecida em Houston, nos Estados Unidos, para buscar no Nordeste brasileiro a reparação moral e financeira à qual sua família tem direito. Para isso, sai por conta própria numa pesquisa em busca de provas e documentos que mostrem que os pais pertencem a famílias de descendentes de holandeses — a mãe, filha adotiva dos Lichthart; o pai, filho bastardo dos van Waerdenburch. O que ambos têm em comum, além da negação do sobrenome, é uma vida compartilhada de dificuldades e privações.

Mesmo sem a aprovação desses mesmos pais, se lança numa epopeia que inclui pesquisas de arquivo, testes de hereditariedade e histórias familiares — e que se trata de uma busca bastante pessoal. “Não devo nada a ninguém, eles é que me devem”, escreve em certo ponto da obra Felinto, também autora do romance “As Mulheres de Tijucopapo” (Ubu, 2021), vencedor do prêmio Jabuti publicado originalmente em 1982. Mais do que reparação, o que a personagem procura é um rompimento da posição de vítima passiva a que muitos brasileiros se veem reduzidos frente a histórias infelizmente comuns, como essa. E tudo isso contado na prosa lírica, bela e cortante da escritora.


De todos os lugares, minha passagem por Houston deveu-se ao carma que meu pai sem querer instituiu na minha vida, de sempre termos vivido perto de portos e aeroportos, dado o desejo frustrado que o homem alimentou vida afora de ter sido capitão de fragata ou piloto de avião. Por isso nós, seus filhos, nasceríamos nas redondezas das praias de lugares menores ou maiores, e sempre muito perto dos aeroportos onde ele trabalhou como almoxarife. Meu pai cumpriu o serviço militar como fuzileiro naval na juventude, na função de telegrafista, daí seu gosto pelo mar. Tempos depois, passou a colecionar flâmulas de companhias aéreas do mundo todo, além de miniaturas de aeronaves e navios de todo tipo. Assim ele purgava o que, no fundo, sentia como o fracasso de sua trajetória pessoal. Meu pai foi um injustiçado total, de fio a pavio, em palavras de meus avós postiços.

De todos os lugares, parei aqui neste cafarnaum chamado Três Estradas, no alto sertão, com o propósito de preencher lacunas e esclarecer mentiras que acompanham a vida de meu pai e de minha mãe, eles que não constam, eles sobre quem nada se registrou, eles que se calam sobre o que sempre me interessou conhecer. Esta minha aventura não tem a aprovação deles, muito pelo contrário, ofendem-se, amargando não sei que tipo de dor a partir dos dados que ando aqui coletando, de um passado remoto, da nossa antiguidade tardia, que preferem manter como morto, que ando revolvendo, trazendo à luz como ninguém nunca ousou fazer.

Não me deixo abater pelo chororô deles — mantenho meu plano, meu projeto pouco metódico, mas firme em seu propósito. E digo e repito a eles a todo momento: “Ora, quem, em sã consciência, acha que eu quero contar a história da vida de vocês? Não! Não quero!”, eu disse a meu pai e minha mãe numa conversa dura e definitiva que tive com eles antes de vir para cá. “Nunca quis! Porque é doloroso demais para mim também”, complementei.

Parei aqui neste cafarnaum chamado Três Estradas, no alto sertão, com o propósito de  esclarecer mentiras que acompanham a vida de meu pai e de minha mãe, eles que não constam, eles sobre quem nada se registrou

Ainda que isto não passe de um arregimentado de provas, de um relatório de sistematização de provas para embasar uma série de processos em que vou pedir a justa indenização, isto também se chama dor, doer, doer e doer, mesmo que eu me proíba maiores emoções, vacilos, gagueira e tropicões típicos dos perfis de sofridas heroínas de histórias de ficção. Não. Não mesmo.

Os fatos que vêm de datas perdidas no tempo têm raízes na pequena comunidade de invasores holandeses que aqui se refugiaram nos idos dos 1600, acossados por tropas da Coroa portuguesa que os expulsaram do litoral de Pernambuco. Rastros daquela gente ainda são identificados em sobrenomes remanescentes de famílias como van der Ley, Lichthart, van Waerdenburch, de Holanda, tanto aqui como para as bandas do litoral.

Por uma coincidência quase fictícia do destino, meus pais têm vínculos com esse grupo estrangeiro, sendo minha mãe filha adotiva de uns Lichthart que lhe negaram esse sobrenome — e sendo meu pai filho bastardo de mãe identificada como van Waerdenburch, morta na hora do parto dele. Esse sobrenome, conforme meu pai sempre contou, vem de algum general holandês dos 1600, em cuja homenagem se construiu na capital, Imbiribeira, um forte chamado Waerdenburch, destruído há
muitos séculos e séculos.

Para além da origem localizada no tráfico transatlântico de escravizados africanos para estas terras, fato evidente na cara de meu pai e de meu avô, eis que a ancestralidade holandesa se perdeu em documentos nunca lavrados, o que não significa que meu bisavô africano tenha tido papéis de procedência, registros com nome e datas. Não teve, não sabemos quem foi ele. Meu pai não sabe de nada, e nunca teve condições de procurar.

Minha questão é o nome ocultado, a herança usurpada, para além do outro dano infligido

Dentre todos os lugares que escolhi para minha verificação e coleta de provas que demonstrem a genealogia perdida ou ocultada, a herança negada — Amsterdam, Timbó, Regalado e Imbiribeira —, o mais importante é este onde me encontro hoje, na região de Três Estradas, lugarejo onde minha mãe provavelmente nasceu, e por onde meu pai vagou aqui e ali, seguindo os passos incertos de meu avô Malaquias. Vim até aqui para um acerto de contas, para descobrir por que o sobrenome Lichthart foi omitido dos documentos de minha mãe, por que negaram a ela essa identidade de filha que deveria ter sido legalmente adotada. Por parte de pai, um de meus sobrenomes deveria ser van Waerdenburch, nome de proprietário, de donos de vastas extensões de terra de lavoura e gado, exploradores do trabalho braçal de meus tataravós, bisavós, avós.

Minha questão é a indenização por danos, pela herança adulterada, não é o status do nome holandês — e pouco me importa a outra origem fundadora das genealogias rarefeitas, pouco me importa o sobrenome de quem veio de que reino de Miragaia, os navegantes que aqui se instalaram como se esta fosse terra de Seu Ninguém. O que eles não sabiam (e não sabem) é que Seu Ninguém sou eu, Seu Ninguém é meu pai e é minha mãe. Pouco me importa em que século chegaram, em que ano da fundação de povoados seculares como Igarassu, pouco me importa aqueles de sobrenome “de Tal e Tal” que se assenhorearam por completo do país, alastrando-se terra adentro, de norte a sul, impondo seus Dias, seus Nascimento e seus Assunção aos aborígenes, aos escravizados de todo tipo. O sobrenome deles eu conheço, sei de onde vem. Sei que mal causaram. Minha questão é o nome ocultado, a herança usurpada, para além do outro dano infligido.

Vim também averiguar registros das ocupações que couberam a meu pai na fábrica de tecidos e na fábrica de cimento, vim provar como minha mãe teria direito a outro lugar no mundo que não a cozinha do refeitório a que foi relegada como lavadeira de panelas enormes, maiores do que ela, coisa que afetaria para sempre sua coluna vertebral já malformada, consequência da fome antiga e sertaneja. Minha questão é reivindicar o que seria por direito da massa proletária de onde vieram meus pais operários, trabalhadores a salário de fome, ele tendo perdido dois dedos em acidente de trabalho com machado na Companhia de Tecidos Lundvotorim, a CTL, fábrica de tecidos em Regalado, Pernambuco, e arruinado posteriormente seus pulmões na função de ensacador de cimento na Fábrica de Cimento Pauli, naquele mesmo município, ambas propriedades dos coronéis Lundvotorim. Portanto, cá estou eu para o acerto das contas dele, para o inquérito, a reclamação da dívida devida, da indenização total.

Ao mundo não devo nada, eles é que me devem

Vim a Três Estradas também para procurar Abel, irmão adotivo de minha mãe, filho e único herdeiro consumado do mesmo casal Lichthart que adotou ambos, Abel e minha mãe, crias do desamparo e da miséria dos sinistros anos de 1930 nestes sertões da alta antiguidade. Para tanto, faço aqui um levantamento, uma pesquisa completa. Meu plano é deixar tudo muito didaticamente documentado, como se fosse uma ferramenta de estudo, um material verossímil a qualquer auditabilidade, a quem interessar possa. Eles terão de se ver comigo, porque todas as provas estarão coletadas… organizadas em arquivos, em pastas digitais e físicas. Ao mundo não devo nada, eles é que me devem. Então, de resto, não devo nada a ninguém, eles é que me devem.

Produto

  • Corsária
  • Marilene Felinto
  • Fósforo e Ubu
  • 176 páginas

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