Trecho de Livro: Cesar Lattes, de Marta Góes e Tato Coutinho — Gama Revista

Trecho de livro

Cesar Lattes: Uma vida

Nova biografia lembra que o legado do físico, sete vezes candidato ao Nobel e crucial para o desenvolvimento da ciência, vai muito além do nome da plataforma de currículos

Leonardo Neiva 24 de Janeiro de 2025

O que você conhece sobre o físico brasileiro Cesar Lattes (1924-2005) para além da plataforma de currículos que leva seu nome? Sabia, por exemplo, que ele chegou a ser indicado sete vezes ao Nobel de Física e que, apesar de sua pesquisa sobre a partícula subatômica méson-pi ter levado o prêmio, o reconhecimento acabou ficando com outro pesquisador da equipe? Ou então que o cientista, amigo de personalidades como Millôr Fernandes e Carmen Miranda, virou sensação na comunidade científica norte-americana no final da década de 1940, se tornando um dos brasileiros mais conhecidos e reconhecidos por lá — ao lado da própria Carmen Miranda?

O novo livro “Cesar Lattes: Uma vida” (Record, 2024), dos jornalistas Marta Góes e Tato Coutinho, explora essas e outras histórias sobre um de nossos maiores cientistas, que ainda são pouco conhecidas do público geral. Filho de imigrantes italianos, o então jovem físico brasileiro foi uma das figuras centrais para os avanços que começavam a moldar o futuro da humanidade no final da década de 1940. O cientista nascido e criado em Curitiba e formado pela USP rodou o globo ao longo dos anos, desenvolvendo suas pesquisas em diferentes cidades do mundo.

Entrelaçados à história do brasileiro, os entraves políticos da ditadura cívico-militar da época e as complexidades da burocracia acadêmica são aprofundados na obra. Unindo esse contexto histórico a passagens mais íntimas da vida de Lattes, os autores exploram pontos-chave de sua trajetória, como o diagnóstico de transtorno de bipolaridade e a visão patriótica que manteve ao longo de toda a carreira: ele sempre considerou sua grande missão aprimorar a ciência e a educação brasileiras.


Encarregado pelo Itamaraty de gravar uma entrevista com o jovem cientista brasileiro que brilhava no noticiário internacional, Vinicius levou consigo Millôr, que se encontrava em Los Angeles. Lattes recordaria o episódio em uma entrevista não assinada ao Diário do Povo, de Campinas, em fevereiro de 1988: “Quando descobrimos os mésons, o Vinicius […] e o Millôr Fernandes fizeram uma dramatização para festejar a descoberta. Eles nos chamaram para um jantar e o Vinicius gritava: ‘Liga o síncrotron’, e o Millôr dava a descarga; depois o Millôr brincava dizendo: ‘Eu sou méson’. Foi muito engraçado”.

Ecos desse encontro ficaram na crônica familiar como um dos episódios mais divertidos da temporada nos Estados Unidos. Ao recordá-lo muitos anos depois, quando entrevistado por uma jornalista portuguesa, Millôr contou que circularam por cenários glamourosos: “Cesar Lattes, cientista, ficou meu amigo, e duas ou três vezes fomos para a casa de Carmen Miranda. […] Jogávamos cartas com ela”. Ele lembrou ainda que mergulharam na piscina da atriz — e que Lattes nadava bem melhor do que ele. Em seu Livro vermelho dos pensamentos de Millôr, publicado em 1973, com trechos de conversas com dezenas de personalidades, há cinco citações a Cesar Lattes, duas delas situadas naqueles dias em Los Angeles. O tom dessas lembranças sugere o quanto os dois — Cesar aos 24 anos e Millôr aos 25 — se divertiam: “No Decálogo, no mandamento dizendo que não devemos fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam, há um desconhecimento total da natureza humana […]. Para cada masoquista há um sádico, e, portanto, nosso comportamento social não deve estar condicionado a uma repetição monótona e pouco prática. O bom líder deve ter sempre presente que os homens não fervem todos à mesma temperatura”. Também referida àquele momento, lê-se uma breve anedota: “Qual a diferença entre uma pessoa física e uma jurídica? A pessoa física, se você aperta, dói; a pessoa jurídica é imortal”. Outras conversas com Lattes, em 1960 e em 1970, incluídas na obra, indicam que a camaradagem continuaria depois que voltaram ao Brasil.

Lattes foi recebido de braços abertos no Laboratório de Radiação. Lawrence lhe deu liberdade para usar tudo o que quisesse nas instalações e o apresentou aos colegas com quem trabalharia. Além de Eugene Gardner, Edwin McMillan, professor do Departamento de Física da Universidade da Califórnia em Berkeley, e Robert Serber, físico teórico. Os cinco se reuniram várias vezes para estabelecer a técnica a ser usada no cíclotron, e Lattes descreveria mais tarde a atmosfera como de “excelente camaradagem”.

Eles decidiram bombardear um alvo de grafite com partículas alfa de 400 milhões de elétrons-volts, procurando separar os mésons eventualmente produzidos das demais partículas, que seriam em muito maior número e dificultariam o reconhecimento dos mésons. Numa entrevista à revista O Cruzeiro em maio de 1948, Lattes explicaria didaticamente ao repórter Camarinha: “Para fazer a separação, decidimos usar o próprio campo magnético que faz funcionar o cíclotron, de modo a desviar os mésons na direção das placas destinadas a detectá-los, enquanto as demais partículas seriam desviadas na direção contrária”.

Além do domínio técnico da revelação, a habilidade visual é uma de suas qualidades mais mencionadas, e foi o que tornou imprescindível sua presença em Berkeley

Sua caligrafia aparece pela primeira vez nos cadernos do laboratório numa lista das placas expostas, indicando seus tempos de exposição ao feixe de partículas alfa, o tempo que elas deveriam ficar sob o efeito do revelador e sua correspondente proporção na mistura com água.

As primeiras tentativas fracassaram. “As placas ficaram quase totalmente pretas, devido à presença de milhões de partículas alfa e prótons que haviam sido refletidos em sua direção pelas paredes do sincrocíclotron”, ele contaria. Com a ajuda do time de grandes físicos do laboratório e até de Lawrence, em algumas ocasiões, Gardner e Lattes tentavam reduzir a concentração de partículas indesejáveis nas placas. Em seguida, Lattes as examinava obsessivamente ao microscópio, aumentadas em quinhentas vezes. Durante cinco dias, ele examinou placas em que tinha esperança de encontrar mésons, mas sua tarefa continuava dificultada pelo número ainda enorme de partículas alfa e de prótons. Enxergou o primeiro traço semelhante aos que costumava ver em Bristol na manhã do dia 21 de fevereiro, quando já ia perdendo a esperança. Anotou no caderno: “Encontrado traço. Muito provavelmente méson”. Depois do almoço deparou-se com o segundo e no final da tarde com o terceiro. Lembrou que ele e Gardner comemoraram com um aperto de mão.

Em Bristol, numa pesada rotina de muitas horas ao microscópio, contando grãos de brometo de prata e medindo rastros de partículas, Lattes tinha treinado o olhar. Além do domínio técnico da revelação, a habilidade visual é uma de suas qualidades mais mencionadas, e foi o que tornou imprescindível sua presença em Berkeley. Detectar mésons ao microscópio é uma habilidade que dificilmente poderia ser transmitida por escrito — precisava ser explicada presencialmente.

Lawrence participava de um banquete quando recebeu a notícia de que a experiência tinha dado certo. Abandonou o evento e correu para o laboratório. Lattes estava ao microscópio e Lawrence bateu em suas costas com tanto entusiasmo que seu rosto se chocou contra o equipamento.

Na primeira reunião da equipe depois da descoberta, no dia 26, os cadernos do laboratório registram a dificuldade da tarefa: “Quando o Sr. Lattes encontrou os primeiros traços de mésotron, na noite do último sábado, o fundo estava péssimo. A primeira providência foi tentar baixar o fundo”. Com a ajuda e o encorajamento da equipe, as condições de exposição das placas foram consideravelmente melhoradas.

O primeiro brasileiro a saber do acontecimento foi o almirante Álvaro Alberto, que estava em Nova York, participando dos trabalhos do Comitê de Energia Atômica das Nações Unidas. Por telefone, Cesar Lattes lhe comunicou a façanha.

Era difícil acreditar que em menos de quinze dias um Gardner debilitado e um físico brasileiro de 23 anos tivessem respondido a um desafio que mobilizava havia quinze meses toda uma equipe

No dia 2 de março, o Preprint UCRL, comunicado do laboratório anterior à publicação, registrou a notícia, ilustrada com fotografias de traços de mésons nas chapas de emulsão. No mesmo dia, Lattes escreveu a Leite Lopes:

Caro Leite,

Estive esperando que o trabalho sobre o méson fosse liberado pela Comissão de Energia Atômica para poder enviar os resultados sem provocar encrencas. Envio-lhe cópia do trabalho, que sairá em Science, o equivalente de Nature aqui, na próxima semana. Infelizmente não tenho fotografias à disposição por falta de tempo, mas os mésons são tais e quais os de Bristol. Logo que o pessoal se acalmou um pouco (já tive que fazer quatro seminários!), consegui trabalhar um pouco. Aqui conseguimos 30 mésons por minuto, em vez de 100 por ano, por 8 pessoas, que era o standard de Bristol!

Lattes e Gardner avaliaram que, com o sincrocíclotron, em 30 segundos podiam produzir 100 vezes mais mésons pi, ou píons, do que em quarenta dias de exposição em Chacaltaya. A produção de píons com o equipamento era 111 milhões de vezes maior do que a das exposições a 5.500 metros de altitude.

A possibilidade de agir sobre os mésons e de dirigir seus movimentos facilitou a observação de suas propriedades e permitiu determinar sua massa — 313 vezes a do elétron.

Inicialmente, tanto a universidade quanto a Comissão de Energia Atômica hesitaram. Era difícil acreditar que em menos de quinze dias um Gardner debilitado e um físico brasileiro de 23 anos tivessem respondido a um desafio que mobilizava havia quinze meses toda uma equipe. Mas uma semana depois estavam convencidos.

Em 9 de março, numa coletiva a que compareceram mais de quarenta repórteres, Lawrence anunciou a descoberta. A agência americana de notícias Associated Press distribuiu-a pelo mundo inteiro.

Por conta de todos os antecedentes — o custo altíssimo do sincrocíclotron e a demora em começar a funcionar — e dos projetos de Lawrence para o futuro, era do seu interesse que a divulgação fosse bombástica. Ele fez o possível para que assim fosse. Como Lattes descreveria, “fez um carnaval”.

No dia 8 de março, a newsletter da revista Science noticiou: “Atomic particle created” [Partícula atômica é criada], e no dia 20 a revista estampou na capa: “How mesons are made” [Como são feitos os mésons]. Lattes e Gardner são identificados na fotografia como “meson makers” [fazedores de mésons].

Os brasileiros mais conhecidos na Califórnia hoje são Carmen Miranda e Cesar Lattes

A grande imprensa deu ampla cobertura. No dia 11 de março, o New York Times anunciou: “Artificial Cosmic Rays” [Raios cósmicos artificiais]. A semanal Time deu a notícia em sua edição de 15 de março. A revista Life, a segunda mais vendida nos Estados Unidos à época, depois da Reader’s Digest, com 5 milhões de exemplares por semana, dedicou uma página ao assunto em sua edição de 22 de março. Lattes e Gardner posaram para uma foto diante do majestoso sincrocíclotron 184″.

Diante de tamanha exposição, um amigo de Lattes em Berkeley, Nelson Lins de Barros, funcionário do consulado brasileiro, gracejou: “Os brasileiros mais conhecidos na Califórnia hoje são Carmen Miranda e Cesar Lattes”.

No Brasil, o primeiro jornal a dar a notícia foi o carioca A Noite, em 9 de março: “Sensacional descoberta de um cientista brasileiro”. No dia seguinte, A Manhã, também do Rio de Janeiro, noticiou “A segunda grande descoberta da ciência moderna”; e o Correio Paulistano foi caudaloso: “Descoberta de um cientista brasileiro, Cesar Lattes, da USP. Trata-se do méson, importante componente nuclear”. A Folha da Manhã, também de São Paulo, estampou em 11 de março: “Considerado o maior acontecimento científico de todos os tempos: a produção artificial de mésons”.

Produto

  • Cesar Lattes: Uma vida
  • Marta Góes e Tato Coutinho
  • Record
  • 320 páginas

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