Trecho de Livro: Aos Prantos no Mercado — Gama Revista

Trecho de livro

Aos Prantos no Mercado

Unindo culinária afetiva ao luto pela morte da mãe, primeiro livro da roqueira Michelle Zauner emociona e instiga o apetite na mesma medida

Leonardo Neiva 14 de Outubro de 2022

No livro “Aos Prantos no Mercado” (Fósforo, 2022), os corredores de um mercado coreano nos Estados Unidos, assim como a bancada da cozinha e os vídeos de uma youtuber especializada em gastronomia asiática se tornam um portal para as memórias da protagonista. Morta ainda muito jovem, sua mãe expressava o amor que sentia pela filha por meio da comida – em contraste com os modos rígidos com que a tratava no dia a dia. Na condição de uma coreana criada em território americano, com um pai caucasiano, essa conexão da personagem com as lembranças da mãe asiática se transforma no único elo com sua herança cultural.

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O início desse relato da cantora de rock independente Michelle Zauner comoveu os leitores da revista New Yorker quando publicado pela primeira vez, em 2018. Anos depois, a história acabou virando livro, o primeiro da autora, também com um sucesso estrondoso: foram 56 semanas na lista de mais vendidos do New York Times, fora honrarias como a inclusão na lista de melhores livros de 2021 do ex-presidente Barack Obama. Curiosamente, o livro de memórias de Zauner sai no Brasil apenas um mês antes da primeira visita de sua banda, a Japanese Breakfast, na versão nacional do festival Primavera Sound, em São Paulo.

Unindo culinária afetiva à complexa relação entre mãe e filha, o livro leva o leitor por um caminho pouco usual em meio a pratos tipicamente coreanos, como kimchi e banchan, lembranças controversas sobre as escolhas tomadas pelos pais ainda na adolescência da protagonista e soluços incontroláveis na seção de congelados. O relato profundamente pessoal de Zauner também não deixa de lado as cutucadelas sociais e os apontamentos espirituosos construídos com inteligência ao longo da narrativa. Um prato para se comer com parcimônia, saboreando cada garfada.


Aos prantos no mercado

Desde que a minha mãe morreu, eu choro no mercado H Mart.

O H Mart é uma rede de mercados especializada em comida asiática nos Estados Unidos. O H significa han ah reum, uma frase coreana que se traduz mais ou menos por “compra a braçadas”. O H Mart é para onde os filhos de imigrantes seguem quando querem encontrar a marca de macarrão instantâneo que lembra o lar da infância. É onde as famílias coreanas compram biscoitos de arroz para fazer tteokguk, a sopa de carne e biscoito de arroz que recebe o Ano-Novo. É o único lugar em que dá para encontrar um barril gigante de alho descascado, porque é o único lugar que realmente entende a quantidade de alho necessária para o tipo de comida que a sua gente consome. O H Mart é a libertação do único corredor da seção “étnica” dos mercados comuns. Aqui, não tem feijão enlatado ao lado de frascos de molho de pimenta sriracha. Em vez disso, é provável que você me encontre chorando em frente às geladeiras de banchan, lembrando o gosto dos ovos com molho de soja e da sopa fria de nabo de minha mãe. Ou na seção de congelados, segurando um saco de massa para bolinho, pensando nas tantas horas que eu e minha mãe passávamos à mesa da cozinha recheando a massa fina com carne de porco moída e cebolinha. Soluçando perto dos não perecíveis, perguntando a mim mesma se eu realmente continuo a ser coreana se não sobrou ninguém para quem ligar e perguntar qual era a marca de alga desidratada que a gente costumava comprar.

Desde que a minha mãe morreu, eu choro no mercado

Por ter sido criada nos Estados Unidos, por um pai caucasiano e uma mãe coreana, eu dependia da minha mãe para acessar nossa herança cultural coreana. Apesar de ela de fato nunca ter me ensinado a cozinhar (a tendência dos coreanos é desprezar medidas e fornecer apenas instruções cifradas, do tipo “adicione gergelim até ficar com o mesmo gosto do que o da minha mãe”), ela realmente me criou com um apetite bem coreano. Isso significa reverência pela boa comida e predisposição para uma relação afetiva com a alimentação. Éramos extremamente minuciosos: o kimchi precisava ter o amargor perfeito, o samgyeopsal, ser crocante à perfeição; ensopados tinham que ser servidos fumegando, se não, eram intragáveis. O conceito de preparar as refeições da semana com antecedência era uma afronta absurda ao nosso estilo de vida. Acolhíamos os nossos desejos todos os dias. Se a vontade era comer ensopado de kimchi durante três semanas seguidas, nós nos esbaldávamos até que um novo desejo surgisse. Comíamos de acordo com as estações e as festividades.

Quando a primavera chegava e o tempo virava, levávamos a churrasqueira para fora e assávamos tiras de barriga de porco fresca na varanda. No meu aniversário, comíamos miyeokguk — uma sopa de algas bem fortificante, cheia de nutrientes, que as mulheres são incentivadas a tomar no pós-parto, e que os coreanos tomam tradicionalmente no dia do aniversário para homenagear a mãe.

Minha mãe expressava amor por meio da comida. Por mais crítica ou cruel que ela pudesse parecer — sempre me forçando a atender a suas expectativas obstinadas –, eu sempre sentia o afeto dela irradiando das merendas que ela preparava para eu levar à escola e das refeições que ela cozinhava para mim bem do jeito que eu gostava. Mal sei falar coreano, mas, no H Mart, eu me sinto fluente. Toco nas frutas e nos legumes e pronuncio em voz alta: melão chamoe, danmuji. Encho o carrinho de compras com os petiscos que têm pacotes vibrantes estampados com algum personagem de desenho conhecido. Lembro da vez em que a minha mãe me mostrou como dobrar o cartãozinho de plástico que vinha nos sacos de Jolly Pong, como usá-lo de colher para levar o arroz tufado caramelizado até a boca, e de como era inevitável que aquilo caísse na minha camiseta e se espalhasse pelo carro todo. Lembro das coisas que minha mãe contava que comia quando criança e como eu tentava imaginá-la com a minha idade. Queria gostar de todas as coisas de que ela gostava, de incorporar minha mãe completamente.

Minha mãe expressava amor por meio da comida. Por mais crítica ou cruel que ela pudesse parecer, eu sempre sentia o afeto dela irradiando das merendas que ela preparava para eu levar à escola

Meu luto vem em ondas e geralmente é suscitado por algo arbitrário. Posso falar com toda a seriedade sobre o cabelo da minha mãe caindo na banheira ou sobre as cinco semanas que passei dormindo em hospitais, mas, se você me pegar no H Mart quando uma criança passa correndo segurando saquinhos de ppeongtwigi, eu fico transtornada. Aqueles biscoitos de arroz eram a minha infância, uma época mais feliz quando minha mãe estava presente e nós mastigávamos os disquinhos translúcidos depois da escola, como se não houvesse amanhã, separando um do outro como se fossem aquelas placas de isopor usadas para proteger encomendas em caixas, deixando derreter feito açúcar na língua.

Choro quando vejo uma avó coreana comendo macarrão com algas na praça de alimentação, colocando as cabeças dos camarões e as conchas dos mariscos na tampa da tigela de metal cheia de arroz da filha. O cabelo dela é crespo e grisalho, as maçãs do rosto proeminentes como se fossem dois pêssegos, as sobrancelhas tatuadas desgastadas à medida que a tinta se desbota. Fico imaginando como a minha mãe teria sido se tivesse chegado aos setenta anos, se acabaria fazendo o mesmo permanente que toda avó coreana faz, como se isso fizesse parte da evolução da nossa raça. Imagino a gente de braços dados, seu corpo franzino apoiado em mim ao subirmos a escada rolante até a praça de alimentação. Nós duas vestidas de preto, “ao estilo de Nova York”, ela diria, com seu imaginário da cidade sempre atrelado ao tempo de Bonequinha de luxo. Ela estaria com a bolsa Chanel de couro matelassê que desejou a vida toda em vez das réplicas que comprava nos becos de Itaewon. As mãos e o rosto dela estariam um pouco viscosos por causa dos cremes anti-idade comprados no canal QVC. Ela estaria usando algum tipo de tênis de cano longo e salto alto do qual eu discordaria. “Michelle, na Coreia, todas as pessoas famosas usam este modelo.” Ela tiraria os fiapos do meu casaco e implicaria comigo: meus ombros estão caídos, preciso de sapatos novos, eu realmente devia começar a fazer aquele tratamento de óleo de argan que ela comprou para mim. Mas estaríamos juntas.

A vida é injusta, e às vezes culpar alguém de maneira irracional por isso ajuda

Para ser sincera, existe muita raiva. Fico com raiva dessa senhora coreana que não conheço, por ela ter a chance de viver e a minha mãe, não, como se, de algum modo, a sobrevivência dessa desconhecida tivesse alguma relação com a minha perda. Por alguém da idade da minha mãe ainda ter uma mãe. Por que ela está aqui comendo macarrão picante jjamppong e a minha mãe não? Outras pessoas também devem se sentir assim. A vida é injusta, e às vezes culpar alguém de maneira irracional por isso ajuda.

Às vezes, meu luto é igual a ter sido deixada sozinha em uma sala sem porta nenhuma. Toda vez que eu lembro que a minha mãe morreu, parece que estou batendo contra uma parede que se recusa a ceder. Não há escapatória, só uma superfície dura contra a qual eu me choco vez após outra, um lembrete da realidade imutável de que eu nunca mais vou voltar a vê-la.

Produto

  • Aos Prantos no Mercado
  • Fósforo
  • Michelle Zauner
  • 288 páginas

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