12 horas com Susan Sontag
Reedição de uma longa entrevista traz visões até então inéditas de uma das intelectuais mais influentes do século 20 sobre a arte e a vida
Autora de livros como “Sobre Fotografia” e “Diante da Dor dos Outros” (Companhia das Letras, 1977 e 2003), hoje clássicos absolutos, Susan Sontag (1933-2004) foi uma das mais influentes escritoras e intelectuais do século 20. Além de abordar temas profundamente culturais, a pensadora também foi uma voz importante para causas como a defesa dos direitos humanos, o movimento contra a guerra e a campanha de conscientização sobre a AIDS. Na semana em que completaria 92 anos, Gama traz um trecho da nova edição de uma de suas entrevistas mais famosas.
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Fã do formato da entrevista e do diálogo, ela conversou em 1978 durante impressionantes 12 horas com o jornalista Jonathan Cott. Um registro parcial — aproximadamente um terço — dessa conversa, que aconteceu entre Nova York, sua cidade natal, e Paris, onde ela morava, saiu nas páginas da revista Rolling Stone. Somente décadas depois a entrevista foi publicada na íntegra neste livro “Susan Sontag: A entrevista completa para a revista Rolling Stone” (Bazar do Tempo, 2024).
Verdadeiro resumo das visões de Sontag sobre a arte, a vida e sobre si mesma, a intelectual usa o grande espaço de uma conversa quase informal para tratar de alguns dos assuntos mais caros para ela, como filosofia, política, literatura, fotografia e feminismo. E também se abre a respeito da vida pessoal, trazendo à tona perspectivas até então inéditas sobre trabalho, família, leituras e relacionamentos. No trecho que selecionamos a seguir, ela trata de como a descoberta de um câncer a levou a escrever sua também célebre obra “Doença Como Metáfora” (Companhia das Letras, 2007).
Jonathan Cott Há quatro anos, quando você descobriu que tinha câncer, passou logo a pensar sobre sua doença. Lembro-me de algo que Nietzsche escreveu: “Para um psicólogo, poucas perguntas são tão atraentes quanto às relacionadas a saúde e filosofia, e, se ele fica doente, examinará essa doença com toda a sua curiosidade científica.” Foi desse jeito que começou a pensar Doença como metáfora?
Susan Sontag Com certeza o fato de eu ter ficado doente me fez pensar sobre a doença. Penso sobre tudo o que acontece comigo. Uma das coisas que eu faço é pensar. Se eu fosse a única sobrevivente de um acidente aéreo, possivelmente teria me interessado pela história da aviação. Tenho certeza de que essa experiência dos últimos dois anos e meio aparecerá na minha ficção, ainda que com muita transposição. Com relação ao meu lado ensaísta, o que aconteceu foi não perguntar “Pelo que estou passando?”, mas sim “O que realmente acontece no mundo da doença? O que as pessoas pensam sobre isso?”. Estava examinando minhas próprias ideias porque eu mesma tinha muitas fantasias sobre a doença, em especial sobre o câncer. Nunca havia considerado a questão da doença. Então, se você não pensa sobre as coisas, é provável que se torne um veículo de clichês, até mesmo dos mais inteligentes.
Não foi como se eu tivesse me colocado a missão de “Agora que eu estou doente, vou pensar sobre isso” — simplesmente estava pensando sobre o assunto. Quando se está deitada na cama de um hospital e o médico entra para ter esse tipo de conversa… você escuta e começa a pensar sobre o que está sendo dito, seu significado, a informação que está obtendo e como deve avaliá-la. Mas você também pensa: “Que estranho as pessoas falarem assim.” Isso acontece por causa das crenças em torno do mundo da doença. Pode-se dizer que eu estava “filosofando” sobre isso, ainda que não goste de usar essa palavra pretensiosa, porque tenho muita admiração pela filosofia. Mas, de modo geral, é possível filosofar sobre qualquer coisa. Quer dizer, se você se apaixona, começa a pensar sobre o que é o amor, caso tenha temperamento para isso.
Se você não pensa sobre as coisas, é provável que se torne um veículo de clichês, até mesmo dos mais inteligentes
Um amigo meu, especialista em Proust, descobriu que a esposa estava tendo um caso. Ele ficou com muito ciúmes e bastante magoado, e me contou que começou a ler com outra visão o que Proust escreveu sobre ciúmes, passou a pensar sobre a natureza desse sentimento e a refletir cada vez mais sobre o assunto. Ao fazer isso, ele desenvolveu uma relação diferente com os textos de Proust e com a sua própria experiência. Ele estava sofrendo muito — não havia nada falso no seu sofrimento e o fato de pensar sobre ciúmes do modo como fez não era uma fuga da sua experiência —, mas, até aquele momento, ele nunca tinha sentido um ciúmes sexual tão profundo. Antes, quando leu Proust tratando do assunto, leu como algo que não fazia parte da sua experiência — só é possível se conectar quando se sente a mesma coisa.
Não sei se eu leria sobre o tema se estivesse passando por um ciúme doentio. Do mesmo modo, acredito que o fato de estar doente e pensar sobre isso da forma como você fez deve ter exigido um esforço descomunal da sua parte, e até mesmo deve ter sentido a necessidade de se dissociar da situação.
Pelo contrário, teria sido um esforço maior não ter pensado sobre isso. A coisa mais fácil do mundo é pensar sobre algo que está acontecendo com você. Quando se está no hospital pensando que se vai morrer, o esforço para não pensar na morte é que teria exigido um distanciamento maior. O verdadeiro esforço foi o de sair do período em que eu estava tão doente que não conseguia trabalhar nem terminar meu livro sobre fotografia [Sobre fotografia]. Isso me deixou maluca. Quando finalmente tive condições de trabalhar, cerca de seis ou sete meses depois do diagnóstico de câncer, ainda não tinha concluído os ensaios sobre fotografia, ainda que o livro estivesse pronto na minha cabeça e precisasse executá-lo e escrevê-lo do modo adequado, de uma forma vívida e atraente. Mas fiquei maluca por ter que escrever sobre algo com que não estava me conectando naquele momento. Só queria escrever Doença como metáfora, porque todas as ideias para esse livro me vieram muito rápido, no primeiro ou no segundo mês da doença, e tive que me obrigar a me concentrar no livro sobre fotografia.
A coisa mais fácil do mundo é pensar sobre algo que está acontecendo com você
O que eu quero é estar completamente presente na minha vida — estar onde estou, contemporânea a mim mesma na minha vida, dando atenção total ao mundo, que inclui a mim. Eu não sou o mundo, e o mundo não é idêntico a mim, mas estou nele e prestando atenção nele. É isso que um escritor faz: ele presta atenção no mundo. Sou contra a noção solipsista de que é possível encontrar tudo dentro da sua cabeça. Isso não é verdade; existe um mundo lá fora, que está ali, quer você queira ou não. E, se você tiver uma baita experiência, é muito mais fácil conectar a sua escrita com o que está realmente acontecendo com você do que tentar fugir dela, envolvendo-se com outra coisa. Você só está se dividindo em duas partes. Muita gente disse que, para escrever Doença como metáfora, eu devia estar muito desprendida, mas eu não estava nem um pouco desprendida.
Será que “distância” não seria uma palavra mais exata? Percebi que é uma palavra que aparece com bastante frequência nos seus escritos em contextos diferentes, como quando você destaca no seu ensaio “Sobre o estilo” que “todas as obras de arte se fundam numa certa distância da realidade vivida que é representada. […] São o grau e a manipulação dessa distância, as convenções da distância, que constituem o estilo da obra”.
Não, não é distância. Talvez você saiba mais sobre meu trabalho do que eu mesma… e não estou sendo irônica, porque é bem possível que eu não consiga entender totalmente esse processo. Mas nunca senti essa distância. Em geral, escrever não é muito prazeroso para mim. É cansativo e tedioso porque faço vários rascunhos quando escrevo. E, apesar de ter esperado um ano para começar a trabalhar em Doença como metáfora, foi um dos poucos textos que escrevi com certa rapidez e sentindo algum prazer, porque me conectava com todas as coisas que diariamente aconteciam comigo.
Eu o escrevi porque sinto que o que disse era verdadeiro —, mas é um grande prazer escrever algo que seja útil para as pessoas
Por cerca de um ano e meio, ia ao hospital três vezes por semana, escutava essa linguagem, via as pessoas que eram vítimas dessas ideias estúpidas. Doença como metáfora e o ensaio que escrevi sobre a Guerra do Vietnã são, talvez, os únicos momentos na minha vida em que sabia que escrevia algo que, além de ser verdadeiro, era também útil e proveitoso para as pessoas de um modo imediato e prático. Não sei se meu livro sobre fotografia tem utilidade para alguém, com exceção do pensamento mais geral de acrescentar algo à consciência das pessoas e tornar as coisas mais complicadas, o que acho sempre
bom. Mas conheço pessoas que procuraram tratamento médico porque leram Doença como metáfora — quem só estava fazendo tratamento psiquiátrico, por exemplo, passou a fazer quimioterapia por causa do livro. Essa não é a única razão de tê-lo escrito — eu o escrevi porque sinto que o que disse era verdadeiro —, mas é um grande prazer escrever algo que seja útil para as pessoas.

- Susan Sontag – A entrevista completa para a revista Rolling Stone
- Jonathan Cott (trad. Paula Carvalho)
- Bazar do Tempo
- 192 páginas
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