COLUNA

Observatório da Branquitude

Mortes de jovens, tradição e surpresa

Assassinatos são tratados como repetição, não há insistência em rastrear como começaram nem esperança de que vão cessar

02 de Julho de 2025

Acontece várias vezes por ano, rigorosamente todos os anos, há muitos anos, com jovens como Herus Guimarães, João Pedro, Thiago Menezes, Kathleen Romeu, e até com crianças, algo que só seria concebível que acontecesse com pessoas brancas se elas tivessem violado a lei, mas frontalmente e em flagrante. Bom, possivelmente, nem assim.

Repare que as histórias que acabei de citar só ficaram conhecidas porque suas vítimas não violavam lei alguma quando perderam suas vidas. Se tivessem feito, provavelmente não saberíamos nem os seus nomes. Não chegariam, portanto, a entrar na memória pública, na sua memória. O apagamento radical é pura negatividade. Não dá para fazer memória com o que estava fora do radar.

A própria palavra “casos”, que nos habituamos a usar para as situações que chegam ao conhecimento público, já carrega a ideia de repetição. Pior, de repetibilidade. E diante dela temos recorrido a relações consagradas de causa e efeito. Causalidade que depende necessariamente de retrospecção.

Os conservadores tendem a buscar sentido retrospectivo para o evento trágico nas condutas individuais. Sua bússola é moral, guiada frequentemente por uma sede de justificação. A pergunta que revela seus pressupostos poderia ser “tinha passagem [pela polícia]?”. Aqueles mais radicais chegam a abraçar histórias forjadas, pois delas conseguem extrair sustentação para uma relação “efeito/causa”. Isto é, culpar a vítima, nem que para isso os fatos é que tenham que sofrer.

No espectro mais progressista, a causalidade costuma ser mais fiel à etiqueta: é, em geral, historicamente fundamentada, leva em conta a cultura e a racionalidade institucionais, é apoiada em números, curvas estatísticas e leituras de contexto que se valem de fatos, textos e declarações públicas. Embora eu confie mais na última, começo a acreditar que, assim como a primeira, ela ajuda a promover uma espécie de homeostase psicológica coletiva. A homeostase é a capacidade de um organismo manter um ambiente interno estável e equilibrado, apesar das mudanças no ambiente externo.

Em todos os casos, alguém decidiu (ou assumiu o risco de) acabar com a existência de outra pessoa para supostamente perseguir um resultado

Não quero sugerir que ambas linhas explicativas se equivalham ou se anulem. Só gostaria de notar como o evento violento em si, em sua brutal falta de lógica, talvez as exceda. Em todos os casos que citei, alguém decidiu (ou assumiu o risco de) acabar com a existência de outras pessoas para supostamente perseguir um resultado. Significa que, desde o início, vidas – aí incluídas as de policiais – podiam ser trocadas por aquele objetivo, fosse qual fosse. 

Todas essas vidas, trocáveis por objetivos que nunca nos contam quais são, talvez não sejam efetivamente registradas, ou melhor, propriamente reconhecidas, e por todo mundo, como vidas. Ser branco, por exemplo, é um fator de proteção e uma armadura. Quer dizer que a sua vida atende às normas para não estar sobre esse tabuleiro e que soará muito estranho e surpreendente se um dia estiver.

Para a violência fora desse grupo, ambas elaborações que eu resumi aqui, tanto aquela que apenas explica quanto a que justifica as perdas brutais, mesmo sendo francamente opostas, tendem a reforçar a adesão às suas próprias linhas de raciocínio. Portanto, se morreu, houve razão e lógica.

Frank B. Wilderson III sugere alternativamente que a violência contra pessoas negras não coopera com a narrativa. Ele usa essa palavra em seu sentido amplo, de dicionário, designando uma sequência qualquer de fatos encadeados por suas consequências. Na sua visão, o evento violento contra vítimas negras é imune ao pensamento racional e a previsões lógicas.

Wilderson usa um dos subenredos do longa “12 anos de escravidão” (2013) como ilustração. “O filme tenta ancorar chibatadas que uma mulher negra [Patsey, vivida por Lupita Nyong’o] recebe nas explicações racionais do ciúme e da transgressão”, explica. A causalidade do ciúme liberaria, assim, o espectador do horror de ter contato com essa violência fundada no prazer sem propósito (na pulsão?). A trama do filme seria uma explicação a posteriori para uma violência que estaria ali de qualquer forma. A fundação refeita depois que a casa(-grande) já está em pé há centenas de anos.

“E se a violência contra os negros puder ser contada entre as coisas que fazem a vida ser vida, sem ser registrada como lucro ou prejuízo? E se o ciúme e a transgressão forem estratagemas, disfarces sob os quais se ocultam as verdadeiras razões da violência?”, são algumas das perguntas provocativas do autor de “Afropessimismo”.

A frase do escravocrata Edwin Epps (papel de Michael Fassbender), quando questionado na sequência da sessão de tortura contra Patsey, “Pecado? Não há pecado. O homem faz o que lhe agrada com sua propriedade“, é ela própria um comentário sobre “bel prazer”, sobre ação despreocupada com consequências, bastante alinhado com a interpretação de Wilderson III.

“Ter passagem pela polícia” não seria uma trama? Não seria outra o fato de a porta da memória pública se abrir apenas para as vítimas que não – e de preferência jamais – infringiram leis, uma vez que o luto público permanece rigoroso na seleção de seus mortos?

A frequência das mortes e o modus operandi das instituições responsáveis por elas vai embaralhando a memória e deixando as pessoas sem noção do tempo

E mesmo que o raio da memória pública seja bem mais curto do que a quantidade de vidas perdidas por ano, a sequência de casos conhecidos ainda é absurdamente numerosa. Até quem acompanha as histórias e as conhece pelos nomes – caso Thiago Menezes, caso Ágatha Felix, caso João Pedro, caso Herus Guimarães – vai ficando perdido: “Nossa, já passaram tantos anos!?”. Para nós, sobreposições de eventos tristes. Para as famílias, perdas que mudam tudo.

A frequência das mortes e o modus operandi das instituições responsáveis por elas – não só a polícia, mas o sistema de Justiça – vai embaralhando a memória e deixando as pessoas sem noção do tempo. Esses assassinatos são tratados como repetição, não há tanta insistência em rastrear como começaram exatamente, não há esperança de que vão cessar e, por isso mesmo, sua recorrência se torna uma espécie de certeza. E essa certeza vai guiando as possibilidades de surpresa de quem só assiste, de forma que o fato novo nunca seja o assassinato de um jovem negro numa favela ou pilotando uma moto numa avenida.

Sem muito passado, meio imune à história cíclica. É mais ou menos a descrição de uma tradição. Se você precisar de uma explicação para ela, haverá uma trama. Uma tradição que, toda vez que é reiterada, reafirma o seu próprio poder de definir e de bloquear os caminhos para a comoção pública e as condições gerais de surpresa. As possibilidades que você tem de se surpreender e de se comover.

Thiago Ansel é jornalista e coordenador de comunicação do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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