COLUNA

Francisco Brito Cruz

Nem toda internet é big tech

Nem todo mundo que está na rede está no mesmo jogo. E nem todo mundo deve ser tratado do mesmo jeito

20 de Junho de 2025

Quando se fala em regulação das redes, parece que todo mundo já sabe do que estamos falando. E, quase sempre, o alvo imaginário são as grandes plataformas: redes sociais, buscadores, marketplaces e seus “algoritmos”. É o “capitalismo de vigilância”, o “tecnofeudalismo”, a envelopagem que se preferir. Em suma, o debate fica centrado nessas enormes empresas e seus poderes. De fato, o exercício desses poderes precisa prestar contas à sociedade. Mas tem personagens faltando nessa peça. Nem toda internet é big tech, agir como se fosse tem consequências.

No Brasil, a lei que organiza a governança da internet, o Marco Civil, não foi pensada exclusivamente para redes sociais ou para o Google. Ela vale para todo mundo que oferece qualquer tipo de serviço na internet. Debaixo do conceito de “provedor de aplicações de internet”, que é a categoria legal definida pelo Marco Civil, estão coisas muito diferentes. Está uma rede social, mas também está o site do seu condomínio. Está uma plataforma de vídeo, mas também aquele aplicativo que você usa para pedir um conserto em casa, ler um artigo, ouvir um podcast.

Além dos personagens de sempre, quem estamos esquecendo?

Um exemplo é a Wikipedia. Um dos maiores projetos de conhecimento coletivo da história da humanidade. Um site que não tem publicidade, que não coleta seus dados para vender, que não faz ranking de conteúdos baseado em tempo de tela ou potencial de viralização. É um projeto construído, editado e moderado por uma comunidade global de voluntários, que trabalham juntos para construir um bem público digital.

Outro é o Registro.br: uma organização sem fins lucrativos, que faz um trabalho absolutamente essencial para o funcionamento da internet no Brasil; o gerenciamento dos domínios “.br”. Uma espécie de “lista telefônica” da internet. Eles cuidam do domínio do seu e-mail, do site da sua escola, da padaria da esquina.

Proteger a internet não é a mesma coisa que proteger grandes empresas

Essa diversidade não é detalhe técnico. Ela é central para qualquer discussão séria sobre regulação. Não é a toa que o Comitê Gestor da Internet lançou uma tentativa de “tipologia” de provedores. No guarda-chuva de “provedor de aplicação” estão serviços de e-mail, armazenamento em nuvem, fóruns de discussão, wikis como a Wikipedia, marketplaces, plataformas de streaming, jogos online, aplicativos de transporte, bancos digitais, bibliotecas virtuais e, claro, redes sociais e buscadores. E mais: estão também organizações sem fins lucrativos, projetos de software livre, sites pessoais, portais de notícia, sistemas de governo eletrônico e até serviços de educação a distância.

Cada vez mais não faz sentido regular “a internet” como se ela fosse uma coisa só, como se toda ela funcionasse como os serviços da Meta, Google ou TikTok. É inclusive fora deles que também podem surgir soluções menos dirigidas pela venda de publicidade, ou pelo lucro.

Isso importa também quando se discute o regime de responsabilidade civil — aquele que define se uma plataforma responde ou não por conteúdos publicados por seus usuários. A regra do Marco Civil, no seu artigo 19, foi desenhada pensando em ser um regime geral, ela não deve ser pensada como uma proteção das big techs. A regra para as grandes plataformas deve inclusive mudar, lhes dando maiores obrigações de acordo com os danos que elas facilitam. Por isso, quando o debate público se concentra na responsabilização das grandes plataformas (o que é legítimo e necessário), é preciso garantir que esse movimento não acabe esmagando modelos de negócio, serviços públicos ou coletivos, iniciativas de software livre e projetos que simplesmente não têm nem de perto o mesmo poder, o mesmo alcance ou o mesmo modelo de negócios das gigantes.

O problema apontado por muitos não parecer ser ‘a internet’, mas modelos de negócio específicos, com enorme concentração de poder

Faz sentido exigir que o Instagram ou o YouTube tenham sistemas robustos de moderação, análise de risco, transparência algorítmica e auditorias permanentes? Faz. Eles moldam o debate público, impactam eleições, interferem na circulação de informações, afetam direitos fundamentais todos os dias. Mas faz sentido exigir isso do Registro.br, que apenas gerencia domínios na internet? Ou de uma wiki comunitária? Não é razoável que quem nem se pretende a moldar a expressão alheia e tenha funções mais comunitárias ou técnicas tenha outro regime?

Nem todo mundo que está na rede está no mesmo jogo. E nem todo mundo deve ser tratado do mesmo jeito. O problema apontado por muitos não parecer ser “a internet”, mas modelos de negócio específicos, com enorme concentração de poder, que criaram arquiteturas digitais baseadas na economia da atenção e na extração de dados para envio de publicidade.

Proteger a internet — aquela que funciona como espaço público, como infraestrutura, como ambiente para inovação, educação, cultura, informação e conexão — não é a mesma coisa que proteger os interesses de algumas grandes empresas.

Francisco Brito Cruz é advogado e professor de direito do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), com foco em regulação e políticas digitais. Fez seu mestrado e doutorado em direito na Universidade de São Paulo (Usp). Fundou e dirigiu o InternetLab, centro de pesquisa no tema.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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