COLUNA

Fernando Luna

Quebrou, não tem mais jeito

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre o triste fim de Bolsonaro Quaresma, o mais aleatório dos rolês aleatórios, o fim de um relacionamento de 25 anos e a pelada do Pacaembu

14 de Julho de 2025

Pátrias, famílias,
religiões
e preconceitos,
quebrou,
não tem mais jeito

Antonio Cicero, 1986
Antologia Profética

Semana passada Lima Barreto baixou numa mesa branca, ali no condomínio Vivendas da Barra.

O escritor desceu do plano espiritual pra se haver com um espírito de porco que assombra os vivos. Soprou uma versão atualizada de seu romance célebre: “Triste Fim de Bolsonaro Quaresma”.

O protagonista ainda é um patriota idiota. Porém, com novas camadas, agora um patriota idiota e entreguista.

Ele não quer convencer ninguém a trocar a língua portuguesa pelo tupi-guarani – tudo que deseja dos indígenas são suas terras, pra pasto ou mineração.

(“Competente foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje não tem esse problema no país”, lamentou o anti-heroi sem nenhum caráter.)

Quanto ao idioma, prefere sua versão vassala do inglês. “Popi coin aicecrim sirles sentencedi for culp dê tá”, discursa, numa passagem constrangedora da trama, pra canalha do BBBB – Boi, Bíblia, Bala e Bet.

Como em 1915, o personagem principal dá seus pulos pra conseguir apoio presidencial. Em vez de apelar pro atual Floriano Peixoto, ajoelha diante de Donald Trump. Resultado: 50% de tarifa nas exportações, prejudicando os empresários made in Brazil de boné MAGA.

A retaliação comercial brasileira é mesmo coisa de ficção.

O respeitável Thatys Drinks tascou um tarifaço sobre as saliências de um gringo, que desfrutava as belezas naturais de Fortaleza. A Fundação Cacique Cobra Coral fechou o tempo e cortou relações com o governo estadunidense.

Alerta de spoiler: o triste fim de Bolsonaro Quaresma não é o fuzilamento que liquidou Policarpo. Desta vez, ele termina na cadeia.

O romancista desencarnado ainda teve tempo de incluir uma epígrafe, à guisa de recado pra quem anda saudoso das fascistadas do século 20. Foi emprestada de um recém-chegado àquelas bandas, o poeta Antonio Cicero: “Pátrias, famílias, religiões/ e preconceitos,/quebrou não tem mais jeito”.

Deixa a vida me levar (vida leva eu)

Serginho Meriti, 2002

Uma coisa, já bastante audaciosa, é deixar a vida te levar. Outra, ainda mais destemida, é deixar o Zeca Pagodinho te levar – de moto, sem capacete.

Pois Ney Matogrosso se deixou levar na garupa do Zeca, mostrando pela enésima vez ser homem com H e com H ser muito homem. Felizmente, quebrou apenas a internet: nenhum osso fraturado no mais aleatório dos rolês aleatórios.

Nem era moto, era quadriciclo?

Pelamor, quadriciclo consegue ser mais perigoso que moto de duas rodas. O incauto, crente que tá seguro apoiado sobre quatro rodas, acaba abusando e capotando sozinho.

Uma pesquisa do Colégio Americano de Cirurgiões confirmou que a mortalidade nesses acidentes é proporcionalmente maior do que nas motocas convencionais.

Ney já passou por quase tudo nessa vida – pai repressor, ditadura militar, caretice generalizada e os fatais anos 1980. A minimotociata da última sexta-feira em Xerém, distrito de Duque de Caxias onde Zeca tem um sítio, foi só mais um desafio.

Talvez ele tenha mentalizado, como numa ladainha relaxante, os versos que o motorista da rodada botou o mundo pra cantar: “Deixa a vida me levar (vida leva eu)/ Sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu”.

Faz apenas uns dois anos que descobri o verdadeiro autor desse tratado de filosofia estoica em forma de samba, uma reflexão taoísta sobre aceitar com serenidade o que não se pode controlar.

Tava numa apresentação do Samba pros Orixás, no paulistano Movimento Cultural Recreativo Dois-Dois, quando chamaram ao palco um “convidado muito especial”: Serginho Meriti.

Não liguei o nome ao hino popular. Quando aquele então desconhecido anunciou uma composição sua em parceria com Eri do Cais, saí atrás duma cerveja. Fui impedido pelos primeiros acordes.

“Eu já passei por quase tudo nessa vida/ Em matéria de guarida espero ainda a minha vez”, começou. Daí em diante, cantamos todos juntos o refrão que protegeu o passeio de Zeca e Ney.

Risca no chão uma cruz: aqui fui feliz

Hilde Domin, 1962

Depois de 25 anos morando na rua Pará, 126/72, sábado chegou o caminhão de mudança.

Já passei por outros endereços, espalhados por quatro cidades em três continentes. Mas dessa vez, mesmo com o novo CEP a apenas seis quarteirões de distância, tive a sensação de romper o espaço-tempo.

Era hora de dar tchau a um quarto de século no mesmo lugar – mais fácil escrever do que fazer.

Como no poema da alemã Hilde Domin, “Tarde no Guadalquivir”, podia riscar no chão do apartamento uma cruz: aqui fui feliz. Muito. Podia, sem surpresa porque a vida é assim, riscar outra cruz: aqui também fui infeliz. Não muito.

Saí no lucro: dancei mais no piso deslizante de granilite da cozinha do que chorei no sofá caliente e acolhedor da sala.

A turma da transportadora passou quinta e sexta embalando e empacotando tudo. O relógio de bolso do meu avô, a câmera Lomo de plástico amarelo, a meia de lã de alpaca, um trilobita de 500 milhões de anos, o ímã de geladeira do Keith Haring, “Pérola Negra” autografado pelo Luiz Melodia, os dois skates com pouco uso, o livro que comprei com o primeiro dinheiro que ganhei trabalhando, o vaso com uma espada-de-São-Jorge imortal, a pedra de cristal que uma macaquinha atirou em mim na Serra da Capivara etcétera e tal.

Tanto etcétera encheu mais de 200 caixas de papelão. É muito ou pouco pra todas as vidas vividas ali?

Quando não sobrou mais nada nem ninguém à vista fui embora distraído, como fiz milhares de vezes. Aí realizei que era a última vez que girava a chave com jeitinho pra trancar a porta – a fechadura da frente tem suas manias.

Então voltei pra dar uma última olhada naquele vazio.

Tava cheio de memórias. Amores e amigos, tanta coisa dita, calada e gargalhada. Manhãs de carnaval e de reunião virtual, sessão da tarde na tevê e sol da tarde na poltrona, noites de insônia e de incêndio. Quero tudo e muito mais na casa nova.

Não amo melhor nem pior do que ninguém. Do meu jeito amo

Affonso Romano de Sant’Anna, 1992

Era o que o futebol precisava e não sabia. Não me refiro à primeira Copa do Mundo de Clubes da Fifa, claro.

Embora tenha seus momentos (Flamengo e Chelsea, o que foi aquilo?), é um campeonato pra confirmar qual o clube mais rico do planeta, capaz de juntar os melhores jogadores sem qualquer conexão com a camisa.

Falo do “Futebol dos Autores” promovido pel’A Feira do Livro, em São Paulo. Não teve gol de letra, mas há registro em vídeo de ao menos uma caneta.

Futebol-arte é isso: em campo, uma penca de prêmios Jabuti, São Paulo de Literatura, Kikito, Vladimir Herzog, APCA e Esso – nenhuma Bola de Ouro, como se viu logo que a peleja começou.

Posso dizer, modéstia às favas, que fiz algo que Cristiano Ronaldo, Mbappé e Haaland jamais foram capazes de realizar no futebol: joguei no Pacaembu.

“Joguei” talvez seja exagero.

Mais honesto dizer que sobrevivi a dois tempos de 20 minutos cada, sem recorrer a nenhuma das quatro UTI móveis estacionadas no estádio.

Saí de campo esgotado, ralado, dolorido e com um respeito imenso pelo pior pereba da terceira divisão de qualquer torneio. É inacreditável que um ser humano seja capaz de encarar essa correria durante 90 minutos, duas vezes por semana – e com uma bola pra atrapalhar.

Pela televisão ou da arquibancada parece mais fácil.

Olhando de fora, os 105 metros de comprimento por 68 de largura sugerem um latifúndio de 7.140 m². Lá dentro, você percebe que é pior, uma área infinita como o final de “Grande Sertão: Veredas”. Pior: havia alguns incansáveis “novos escritores”, com aquela disposição juvenil.

O apito final soou como uma trombeta do Apocalipse. Fim de jogo, empate em 2 a 2. Placar moral, Futebol 7 x 1 Autores.

Bola, desculpa qualquer coisa. Não é você, sou eu. Faço minha a declaração de Affonso Romano de Sant’Anna: “Não amo/ melhor/ nem pior/ do que ninguém./ Do meu jeito amo”.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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