COLUNA

Fernando Luna

O poder costuma ser muito silencioso

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre filmes da Mostra, notificações do Zap, músicas de Belém do Pará e limitações do amor

20 de Outubro de 2025

O poder
costuma ser 
muito silencioso

William S. Burroughs, 1994
Antologia Profética

O melhor da Mostra de Cinema é ver aqueles filmes que só passam na Mostra: irresistivelmente esquisitos, sem chance no circuito comercial.

“Nova 78” é desses.

O documentário de Aaron Brookner e Rodrigo Areias recupera imagens esquecidas há quase 50 anos de um evento também esquecido há quase 50 anos: “The Nova Convention”, um tributo a William S. Burroughs.

Talvez você não goste da sua prosa alucinada do beatnik.

Mas Patti Smith, Philip Glass, Merce Cunningham, John Cage, Timothy Leary, Frank Zappa, Allen Ginsberg e Laurie Anderson gostavam. Tanto que se enfurnaram num teatro do East Village pra celebrar o escritor, entre 30 de novembro e 2 de dezembro de 1978.

Ele próprio subiu ao palco, pra ler o manifesto “What ‘The Nova Convention’ Is All About”: “Esta é a Era Espacial e estamos prontos para partir. Até aqui, porém, esse programa é restrito a uma elite medíocre”.

Elon Musk tinha 7 anos de idade na época, mas Burroughs já sabia que o mundo não tinha jeito. Era preciso inventar um novo mundo, e o espaço era a metáfora perfeita pra sua utopia lisérgica, queer e sem fronteiras.

(Quando escreveu que “O poder costuma ser muito silencioso”, em “Pistol Poem 3”, o boquirroto Donald Trump era apenas um corretor de imóveis.)

Tem outras duas sessões de “Nova 78” programadas.

Vai lá ver Glass esmerilhar “Einstein on the Beach” no sintetizador. Cunningham dançar um solo, enquanto Cage fala sobre “Finnegans Wake”. Ginsberg cantar um poema de William Blake. Leary comparar as palavras e o LSD. Andersen, numa performance com vocoder, descrever um pouso de emergência. Zappa ler um trecho escatológico de “Almoço nu”.

Keith Richards, vacilão, furou em cima da hora.

Sobrou pra Patti dar a notícia à plateia. Ela sobe ao palco, saca 12 dólares do bolso e pergunta se alguém quer um reembolso pela ausência do guitarrista dos Rolling Stones. Ninguém se manifestou.

Escrevia porque estava sozinha e queria estar com pessoas/ Depois estava com pessoas e queria estar sozinha

Adília Lopes, 2009

O que mais gosto no celular é que me aproxima de quem tá longe. O que mais detesto, é que me afasta de quem tá perto. E digo mais.

*

Coisas abomináveis num celular: Notificação. Mensagem “Oi, tudo bem?” e mais nada. Ligação de número desconhecido. Gente que liga sem antes escrever perguntando se pode ligar — exceção pra casos de vida ou morte.

Playlist que não entrega o que promete — “Manhã de domingo” com Joy Division?! Agonia com a bateria em 5%. Esquecer de desativar o alarme no domingo. Tela engordurada. Carregador com mau contato: horas na tomada e não carregou nada. Sem conexão.

Pessoa que manda mensagens homeopaticamente e deixa seu Zap com mais balões que festa infantil. Esquecer de botar no modo silencioso no cinema. Só usar o aparelho como telefone fixo, senão roubam no meio da rua.

Pagar pelo wi-fi do avião e passar o voo inteiro vidrado na telinha. “Encaminhado com frequência”. Emoji indecifrável — é cantada, esporro ou engano? “Tira mais uma foto na vertical pro Stories?”.

Corretor automático.

*

Coisas deleitáveis num celular: Notificação da Laura. Mensagem “Oi, me passa seu Pix?”. Ligação de alguém em quem você tava pensando agorinha mesmo. Mensagem de áudio tão boa que você escuta de novo.

Playlist a dois. A plenitude da bateria em 100%. “Adiar” o alarme. Tela limpinha com pano de microfibra, mesmo sabendo que só dura dois minutos. Encontrar na mochila o carregador perdido. Conexão 5G com três pauzinhos.

Pessoa que escreve tudo numa só mensagem, com começo, meio e fim. Telefone guardado no bolso durante toda sessão de cinema. Bater papo no meio da rua com fones de ouvido, pra não atrair ladrão.

Aproveitar o voo pra não checar o celular obsessivamente. Aquele meme incrível – amar é mandar meme. Figurinha que dá vontade de favoritar. “A foto ficou ótima, obrigado”.

Corretor automático.

Me obrigarás a novas saudades

Manuel Bandeira, 1928

Passei o final de semana em Belém do Pará. É pouco, pouquíssimo. Porém, é muito melhor do que não passar o final de semana em Belém.

*

Uma caminhada pela Cidade Velha é como girar o dial de um rádio.

A cada vinte passos, caixas de som testam seus tímpanos, chamando atenção pras lojinhas. Emendam tecnobrega no calipso, carimbó na lambada, guitarrada na cúmbia. É a mais internacional das músicas regionais, recombinando sons de origens diversas: melodias indígenas, toadas de caboclo, tambores da África, requebros do Caribe e grooves de sintetizador.

Entre beats e batuques, o futuro é mesmo ancestral — e vice-versa.

*

A uma semana do Círio de Nazaré, tem Nossa Senhora por todo canto: pendurada nos postes em neons com a silhueta sagrada, imagens cercadas de flores exibidas diante dos edifícios, ilustrações estampadas em cartazes.

Escutei o chamado divino, todavia, diante de uma Assembleia de Deus. O ar-condicionado bíblico da congregação esfriava até a calçada. Quase troquei os 35 graus equatoriais por uma oração ou um louvor. Quase.

*

A natureza não se rendeu à cidade.

Uma placa advertia: “Perigo! Queda de frutos”. Tava fixada numa jaqueira imensa, com verdadeiros paralelepípedos pendurados em seus galhos.

O aviso podia estar debaixo das infinitas mangueiras da cidade. Quando começarem a cair de maduras, será um ataque aéreo vegetal.

*

A cidade, ao contrário, se rendeu à natureza.

Sábado abriu o “Museu das Amazônias”. No plural, pra deixar claro que tudo ali é muito e múltiplo: são necessários nove estados brasileiros e nove países da América do Sul pra abrigar a maior floresta tropical do planeta.

Diante da baía do Guajará, seus dois andares se completam. No térreo, as fotos de Sebastião Salgado com todo aquele verde em preto e branco. No mezanino, as cores da exposição “Ajurí” educam e encantam – tem jeito melhor de aprender?

*

Sem falar no fuzuê do Ver-o-Peso, o pôr do sol no rio Guamá, os tambores no Apoena, a Bienal das Amazônias, as samaúmas do Goeldi, a pavulagem na rua, o vinagrete de feijão do Saulo na Casa das Onze Janelas.

Manuel Bandeira passou dez dias por lá e escreveu “Belém do Pará”: “Bembelelém/ viva Belém/ Nortista gostosa/ eu te quero bem”. E completou, certeiro: “Me obrigarás a novas saudades”.

As limitações do amor são infinitas

Rui Costa, 2008

“Eu gostei dele e ele, de mim”, confessou Donald Trump, sobre Lula. “Tivemos uma excelente química.”

Uma declaração dessas – diante do mundo inteiro, literalmente – seria apenas uma “estratégia de negociação”? Atire a primeira dor de cotovelo quem nunca se apaixonou à primeira vista.

Lembro de amores instantâneos que duraram seis ou sete quarteirões. Enquanto eu sacudia no ônibus voltando do colégio, imaginava uma vida inteira ao lado de alguma dama do lotação – que logo desaparecia pra sempre, descendo na parada seguinte.

A imagem do presidente dos Estados Unidos, embevecido diante da TV nos bastidores da ONU vendo o presidente do Brasil discursar na tribuna, vale mais que mil posts malcriados na Truth Social.

Mas os tais 39 segundos de olhos nos olhos não seriam muito pouco pra tanta afinidade? A ciência discorda: é tempo de sobra.

Um estudo de Harvard – sempre há um estudo de alguma universidade americana para provar qualquer coisa e, também, seu contrário – mostrou que isso é mais que suficiente pra formar uma opinião embasada sobre outrem.

Examinando por apenas 10 segundos – quase quatro vezes menos tempo que durou o pas de deux presidencial – vídeos de professores dando aula, voluntários tinham que opinar sobre 15 traços da personalidade deles.

Quando se comparou esses julgamentos fulminantes com avaliações feitas por alunos dos mesmos professores após um semestre inteirinho de aulas, a surpresa: a correlação entre as duas considerações era perfeita.

Porém “as limitações do amor são infinitas”, como resumiu o poeta português Rui Costa, no livro “O pequeno-almoço de Carla Bruni”. Ainda mais com os futriqueiros Dudu Bananinha e Marco Rubio tentando intoxicar a paquera.

Pode acontecer qualquer coisa com esse flerte – inclusive descambar pra um quebra-pau tipo Popó e Wanderlei Silva. Mas que seja infinito enquanto dure.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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