COLUNA

Fernando Luna

Está na hora de eu falar de mim

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre uma crise de meia-idade em plena terceira idade, o divórcio do século, um meta-assalto em São Paulo e o dia da marmota musical

16 de Junho de 2025

Está na hora de eu falar de mim, vamos ficar de pé!

Walt Whitman, 1855
Antologia Profética

Donald Trump teve uma crise de meia-idade em plena terceira idade.

Nem todo homem, mas sempre um homem costumamos ser bastante previsíveis nessas encruzilhadas existenciais.

Na tentativa de dar algum tônus à masculinidade frágil e supostamente ameaçada pela passagem do tempo, é comum apelar a certos clichês.

É quando aparece uma tatuagem com significado hermético nas costas, uma motocicleta deveras barulhenta na garagem, um colar de couro no pescoço, uma overdose de creatina nos bíceps, uma tentativa de virar DJ nas festas dos amigos, uma bicicleta de R$ 40 mil chamada de bike ou camisas estilo titio-moleque no guarda-roupa.

O presidente americano superou tudo isso – e não falo de seu bronzeado que, fosse cor de esmalte, seria chamado de “Fanta Laranja Radioativa”.

Pra comemorar 79 anos, foi muito além de um parabéns em que as velas custariam mais que o bolo, pra ficar com a definição de envelhecimento de Bob Hope. Promoveu logo uma parada militar em homenagem a si mesmo.

(Uma interpretação narcísica do clássico “Canto a mim mesmo”, em que Walt Whitman inventa um eu lírico que inclui toda a nação, e não apenas um sujeito vaidoso.)

Há mais de 30 anos Washington não era palco de um desfile desses.

Um general de quatro estrelas até tentou demover o comandante-em-chefe: “Isso é coisa de ditadores”. O argumento saiu pela culatra: era o que faltava pra quem elogia Vladimir Putin e Kim Jong-un botar a tropa na rua.

Um orçamento de US$ 45 milhões levou pro desfile 6,7 mil soldados, além de bombardeiros, caças, tanques de guerra, veículos blindados, helicópteros de combate, cavalaria, duas mulas e um cachorro simpático chamado Doc que não merecia estar ali.

Enquanto isso, milhares de manifestações contra o presidente que quer ser rei sacudiam todos os 50 estados nem tão unidos do império norte-americano. Cada país tem o 7 de Setembro que merece.

Eu te amo e daqui pra frente tudo será decepção

Nicolas Behr, 2012

Foi uma semana difícil pra quem acredita no amor.

Desde que Luana Piovani tretou com Pedro Scooby, uma separação não mobilizava tanto as redes sociais. Donald Trump e Elon Musk fizeram das páginas de política uma terapia de casal.

“Elon e eu tínhamos um ótimo relacionamento”, lamentou Trump. “Mas ele ficou diferente, tô muito decepcionado.” E Musk: “Ele é ingrato, teria perdido a eleição sem mim”.

Daí pra acusações de mamar nas tetas do estado e de pedofilia, bastaram mais dois ou três posts.

(Cada um tem sua própria rede social – X e Truth Social – e abusa dos algoritmos pra esculhambar o outro. Entendeu porque é preciso regular essas joças? Mas agora espera: deixa solto mais um pouco, pra gente curtir o quiproquó.)

Aquela lógica da guerra fria, MAD, acrônimo de “Mutual Assured Destruction”, dessa vez falhou. Os dois partiram pra destruição mútua garantida. É daquelas brigas em que os dois lados têm razão.

A divisão de bens já tá dando confusão. Trump quer passar pra frente seu Tesla vermelho modelo S, único dono e baixa quilometragem, enquanto Musk ameaça proibir a Nasa de usar seus foguetinhos particulares.

As crianças vão sofrer com o divórcio.

Considerando que Musk tem 14 filhos e Trump outros 5, o ideal seria acionar o UNICEF. Infelizmente, o corte promovido pela dupla tirou 142 milhões de dólares da agência dedicada à infância.

Como no poema de Nicolas Behr em “Meio seio”, depois das primeiras juras foi tudo ladeira abaixo: “Eu te amo// e daqui/ pra frente/ tudo será/ decepção”.

Se o quebra-pau piorar, periga Trump lançar mão dos códigos nucleares ou Musk revidar expondo as informações sensíveis que coleta com seus satélites. Pior que isso, só mesmo um fogo cruzado de revenge porn.

Quem quiser continuar apostando no amor, lembra do Lula e Macron passeando de mãos dadas em Paris, com a Torre Eiffel ao fundo.

Sabe para onde ir mas diminui o passo – piso escorregadio

Gonçalo M. Tavares, 2023

Foi um meta-assalto: roubaram não apenas um, como dois daqueles totens de segurança, instalados justamente pra evitar roubos.

Será que o segundo totem tava lá pra garantir a segurança do primeiro – e falhou miseravelmente? Seria o crime evitado se os dois totens estivessem sob o protetor olhar eletrônico de um terceiro?

Imagino o vendedor de totem esgotando esse argumento, empurrando sempre mais um poste pro cliente – e mais um, mais um e mais um, até formarem uma grade feita todinha de totens enfileirados, quando enfim serão capazes de impedir a rapinagem.

O delito aconteceu na Zona Sul de São Paulo. Até agora não descobri se a motivação do crime foi deboche ou vingança.

Deboche de ladrões fanfarrões, porque furtar um totem desses é como arrombar um carro pra afanar o alarme antifurto. Vingança de urbanistas justiceiros, porque já passou da hora de reagir a essas torres de vigilância que transformam as calçadas num distópico paliteiro.

Seja lá o que for, é mais um efeito colateral do capitalismo de vigilância.

Além de algoritmos seguindo nossos passos no mundo digital, algoritmos ligados às câmeras desses totens identificam nossos rostos e seguem nossos passos na vida real.

Não bastasse ter que tirar uma foto pra entrar em qualquer prédio comercial, agora até pra circular pelo bairro é preciso ceder sua imagem. E ninguém sequer faz a pergunta protocolar da recepcionista, “Posso fazer uma foto sua?” – como se houvesse outro jeito de passar pela catraca.

(Aliás, todo mundo tem uma espécie de “cara de catraca”, uma expressão específica pra encarar as telas de reconhecimento facial: ar ligeiramente desconfiado daquela máquina, fisionomia de quem sabe que tá sendo observado, só não sabe por quem.)

Quando sair de casa, sai na manha: “Sabe para onde ir/ mas diminui o passo/ – piso escorregadio”, como na metáfora de Gonçalo M. Tavares em “Tempestade e Motor”.

A bola que lancei quando brincava no parque ainda não tocou o chão

Dylan Thomas, 1936

Por que é comum a gente se apegar às bandas favoritas da adolescência?

Fiz essa pergunta pra mim mesmo enquanto arriscava uma dancinha new wave ao som dos Pretenders, no C6. Eu tinha uns 13 anos quando escutei pela primeira vez a Chrissie Hynde cantar “Back on the Chain Gang”.

Não tava sozinho: centenas de companheiros de geração sacudiam ao meu redor, como numa distante matinê. Entre os palcos e as árvores do Ibirapuera, ficou claro que somos macacos de imitação – de nós mesmos.

Como ninguém entende mais de macaquice que o primatologista Robert M. Sapolsky, fui reler um estudo informal publicado há tempos na “New Yorker”. Ele deixou de lado os babuínos que investiga há décadas, pra se debruçar momentaneamente sobre símios como você e eu.

Ligou pra dezenas de estações de rádio especializadas em música de um certo período, como blues dos anos 50 ou disco dos anos 70. Fez duas perguntas: quando foi lançada a maior parte das músicas que vocês tocam e qual a idade média de seus ouvintes?

Conclusão: “A maioria das pessoas têm 20 anos ou menos quando ouve pela primeira vez a música que escolhem escutar pelo resto da vida”.

O que acontece com o gosto pela novidade?

Sapolsky especula que memória e repetição foram vantagens evolutivas. Lembrar como escapar de uma encrenca e repetir a estratégia bem-sucedida anteriormente nos fez chegar até aqui.

O efeito colateral é ficar preso no setlist da sua festa de formatura.

Evitei essa arapuca no festival, entre hits e lados B lançados de 1970 a 2020 por Nile Rodgers, Wilco, Air e Gossip. Mas tropecei na novíssima Last Dinner Party – por que elas tavam vestidas como princesa de buffet infantil?

Na dúvida, vou correr atrás de Dylan Thomas, no poema “Se Brilhassem os Faróis”, metáfora da curiosidade e inquietação juvenis suspensa no ar: “A bola que lancei quando brincava no parque ainda não tocou o chão”.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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