COLUNA

Fabiana Moraes

Ser a Rosa e a Maria de um João

“Avó” é daquelas palavras que nascem carregadas de um modo de ser. Obrigações, expectativas, moralidades. Quase um emprego

30 de Abril de 2025

Vou ser avó.

Vó, vovó, vozinha, voinha.

“Avó” — e todas as suas variações — é daquelas palavras que nascem carregadas de um modo de ser. Obrigações, expectativas, moralidades. Quase um emprego.

Fica entre o aterrorizante e o estranho o momento no qual chega a nossa vez de sermos apresentadas a um papel tão marcado. Ser pai, ser mãe; ser acadêmico, ser professora; ser adulta, ser porraloca; ser ativista, ser artista.

Ser avó. Vó, vovó, vozinha, voinha.

Puta que pariu, pensei.

Avós erram?

Avós enchem a cara?

Avós dizem “eu não sei”?

Avós odeiam?

Avós têm medo do escuro?

Avós se sentem confortáveis na contradição?

Avós continuam a ser pessoas?

Ora, eu deveria saber. Tive uma avó “boa” e uma avó “má” durante um bom tempo da vida, até entender que eu mesma estava encalacrada em mais uma dessas injustas e cotidianas binaridades às quais recorremos diariamente. Eu olhava para cada uma — Rosa, a “boa”, e Maria, a “má” — e via somente uma coisa: avós. Vós, vovós, vozinhas, voinhas.

Elas tinham, eu acreditava, a obrigação de serem carinhosas, mansas, generosas. Jamais poderiam errar, encher a cara ou dizer “eu não sei”. Não poderiam odiar e me protegeriam do escuro. Nunca navegariam as áreas cinzentas entre o sim e o não: para elas, a dúvida era um bicho desconhecido.

Mas vó Maria saía da igreja evangélica e depois ia beber cachaça. Vó Rosa lavava roupa pra fora, vendia sarapatel na feira e contava piadas safadas. Vó Maria detestava mulheres, vó Rosa ficava irada e ia pra cima de qualquer um. Vó Maria me deixou sozinha e nua uma vez, chorando do lado de fora da casa. Vó Rosa fazia bolinho de farinha e feijão com as mãos e me dava na boca. Eu olhava para ela e dizia: “tá uma delícia, vovó”.

Me dei conta que na verdade sei muito pouco sobre ambas. Os homens que amaram, as comidas que mais gostavam, os dias mais felizes de suas vidas, que músicas as emocionavam. Tudo isso porque as avós estavam ali para antes de tudo me servirem com todo amor, generosidade, proteção, etc. Eu não tinha que fazer nenhum movimento em direção a elas, só receber.

É uma pena: fiz poucas perguntas para as minhas avós e elas, há muito longe, não podem mais saber de mim.

Agora estou aqui, com microplástico correndo em minhas veias e vendo o Congresso Nacional discutindo anistia para gente criminosa em vez de segurança. Estou aqui, calçando os sapatos de Maria e tomando emprestado os vestidos de Rosa.

Alcançando seus postos e prestes a ser cobrada como um dia elas foram, percebo que não havia nem uma vó má, nenhuma vó boa: existiam somente duas mulheres que jogaram o jogo e passaram por esse Brasil com menos acessos e confortos do que eu, hoje, tenho.

É claro que só alcancei esses caminhos — ter dinheiro o suficiente para cuidar de mim e da minha família, por exemplo —, graças também às duas, com suas iras, piadas safadas, descuidos, carinhos, esforços, peixeiras, cachaças. Não acredito que meus desejos se pareciam com os delas, ou ainda que o modo como tantas vezes levei a minha vida as agradaria.

Mas é assim: estou apenas seguindo os passos delas e jogando o meu jogo. Não devemos nada umas às outras — a não ser a tradição de sermos fiéis às nossas vontades.

As avós estavam ali para antes de tudo me servirem com todo amor, generosidade, proteção, etc. Eu não tinha que fazer nenhum movimento, só receber

Não fui me despedir de vovó Maria quando ela morreu. Percebi que eu não a havia perdoado por ter me deixado nua lá no quintal da sua casa. Havia, a seu mando, tomado banho usando a água de um tonel. Mas esqueci de levar a toalha. Tinha uns seis, sete anos. Gritei pedindo uma e ela disse que não iria levar. Me deixou lá: “é pra você aprender”. Enquanto isso, uns meninos da rua se juntaram no quintal vizinho para me ver através de uma cerca de madeira. Depois, ela me deu uns tapas e me culpou por aquele show de nudez involuntário. Fui assunto entre os pirralhos da rua durante dias.

Maria não reservava carinho para as netas, muito menos para sua filha, minha mãe. Essa ausência é talvez a maior herança que ela me deixou: hoje é um domingo de abril, 2025, tenho 50 anos e sinto essa ausência reverberar ainda aqui. Sei quando odeiam uma mulher, sei de olhar o que é auto-ódio e sei o quanto dá certo não ensinar alguém a amar.

Quando vovó Rosa morreu, eu estava a cerca de 200 quilômetros da sua casa, dando aula em Caruaru. Minha irmã Adriana me ligou. Fui para a rodoviária, comprei um pacotinho de churros e, no guichê, pedi uma cadeira perto da janela. Durante duas horas, na BR 232, olhei o dia escurecer: eram somente eu, você e a paisagem, voinha.

Minhas mãos estavam sujas de açúcar, e eu gostei daquilo. “Tá uma delícia, vovó”.

*

Eu a encontrei no outro dia de manhã, no cemitério de Casa Amarela. Ficamos, eu, minhas irmãs, irmão, pai, madrasta, mãe, vizinhos, primos e primas, durante horas ao redor do caixão aberto de dona Rosa, que morreu aos 102 anos. Fizemos carinho no seu rosto, contamos histórias sobre suas iras, suas piadas safadas, sua peixeira, seu carinho. Em certo momento, percebi que aquilo era também uma celebração. Um salve, um saravá para dona Rosa, que tinha a maravilhosa capacidade de rir da vida, da gente, de si mesma. Ela conseguiu que a gente lembrasse do quanto a gente se gosta no seu próprio enterro.

Vovó Rosa era a bailarina de João Cabral de Melo Neto: feita de borracha e pássaro.

*

Ela, desse lugar que a gente não sabe onde, da memória, do espaço, do recôndito, da mata, da vida, da morte, jogou uma semente. Vovó Maria também (desculpa, vó, um dia eu deixo essa história pra lá). Ambas estão presentes, e consigo olhar para elas agora mesmo, quando te vejo meio borrado e laranja numa tela. Seu nome é João.

E, João, eu vou ser tua avó.

Vó, vovó, vozinha, voinha.

*

Quando engravidei de teu pai, escrevi uma carta para ele em um papel redondo muito fininho, veio de uma lata de biscoitos. Foi a minha primeira conversa com ele — e o seu pai, quando está de bom humor, tem uma conversa maravilhosa. Eu soube que você vai chegar há meses, e desde então penso no que devo pensar, no que devo dizer, no que devo esperar, em quem devo ser.

Me dei conta que esse lembrar das avós é também uma forma de apresentá-las a você — e de me apresentar também. Acho que estou tentando escrever uma carta para você, João. À parte as mensagens apressadas e amorosas no WhatsApp para sua mãe e seu pai (berço, exames, ar-condicionado, a nova graduação que ela começou), esta é a primeira vez que escrevo o teu nome materializando tua presença. João.

Talvez eu já espere algumas coisas de você, e me desculpe por isso. Mas desejo, sim, que a sua voz me traga a absoluta sensação de felicidade que eu sentia quando ouvia a voz pirralha de seu pai.

Espero também que eu seja tua Maria e tua Rosa, uma vez que, agora, tenho a chance de saber o que delas fazer e não fazer. Dar conta dos meus próprios erros e não culpar ninguém por isso. Que eu seja tua Neusa e tua Graça, que se tornaram avós há três décadas atrás, depois que eu e o pai do seu pai se uniram. Aí nasceu Mateus. Que veio de Maria, que veio de Rosa.

Chegue, João.

Quando você dobrar a esquina, estarei com minhas dúvidas, mas pronta para abraçar você.

Avós erram?

Avós enchem a cara?

Avós dizem “eu não sei”?

Avós odeiam?

Avós têm medo do escuro?

Avós se sentem confortáveis na contradição?

Avós continuam a ser pessoas?

*

Borracha e pássaro.

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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