COLUNA

Fabiana Moraes

No Brasil, o público é aquilo que não pertence a ninguém

A adoração pelo privado é um marcador de classe que informa: o público é o pobre; o particular é o rico. O público é a estagnação; o particular é o “eu venci”

25 de Junho de 2025

Na versão 2025 da novela “Vale Tudo”, a faxineira Lucimar, vivida por Ingrid Gaigher, trabalha exaustivamente para conseguir sustentar a si mesma e ao filho Jorginho (Rafa Fuchs). Em uma cena exibida semanas atrás, ela percebe, ao acompanhar o menino nas tarefas de casa, que ele não avança na escrita. Lucimar, com pouco dinheiro, decide confrontar o pai do garoto, Vasco (Thiago Martins) para cobrar a pensão (por conta disso, as buscas pelo assunto bateram recorde na Defensoria Pública do RJ).

“Vou te tirar da escola pública e te matricular em uma escola privada”, promete ela.

Desde que vi o episódio, fiquei pensando no quanto a fala da personagem reverbera forte na alma nacional, na qual está cristalizado um verdadeiro horror à coisa pública em contraponto à adoração pelos serviços privados. Essa percepção tem raiz fincada, é claro, na montanha de sofrimento vivido pela maioria da população nacional que depende unicamente dos serviços públicos, especialmente nas áreas da saúde e educação.

Mas, sejamos sinceros, a coisa não termina aí. No país dos camarotes VIP e foco no cartão black, a adoração pelo privado é, também, um marcador de classe que informa: o público é o pobre; o particular é o rico. O público é a estagnação; o particular é o “eu venci”. Essa percepção, que desmobiliza qualquer pressão popular para a melhoria de serviços públicos de qualidade, tem como grande difusora a própria comunicação midiática, como vemos no texto da novela.

Enquanto Lucimar prometia uma escola melhor para o filho, uma vez que ela seria privada, lembrei de um momento específico da minha vida, quando tentei o vestibular pela primeira vez — e não passei. Durante minha infância, dos seis filhos e filhas que meu pai e minha madrasta criaram, somente eu e minha irmã mais velha, Patrícia, estudamos em escola privada, pois éramos bolsistas. Na adolescência, continuei, espremendo muito o baixo orçamento do meu pai, em uma escola privada que atendia uma classe média quase baixa (ou uma classe baixa aspirando a ser média, talvez).

Na prova do vestibular, travei nas perguntas do teste de Literatura. Não sabia precisar o que era Romantismo, de quais correntes vinham nomes como Aluísio de Azevedo, quem eram as personagens de Guimarães Rosa. Eu nunca tinha visto aquilo, apesar de toda uma vida estudando em escolas privadas, a primeira localizada na periferia de Recife, a segunda em uma área mais comercial de Jaboatão dos Guararapes.

Mas não são elas — e a maioria dos serviços pagos — que estão na mira de nossas críticas ou ocupando discursos políticos bastante oportunistas, como aquele que pedia uma “educação padrão Fifa”.

Lembro aqui um caso desse oportunismo retórico (e vencedor): em setembro de 2013, a então presidenta Dilma Rousseff sancionou uma lei, depois de muito estica e puxa com o Congresso, que destinava 75% dos royalties do pré-sal para a educação e 25% para a saúde. Em 2022, o então presidente Jair Bolsonaro, eleito em grande parte pelo discurso anti-corrupção e para “melhorar tudo o que está aí” , tentou desobrigar o governo federal a investir justamente nessas áreas. Não se viram alardes de quem queria o “padrão Fifa” para a educação.

Outro fator central é, como dito, o papel da mídia (imprensa, cinema, publicidade, novelas, redes sociais, etc). Não é novidade que a maioria dos meios de comunicação brasileiros reforçam uma narrativa anti pública, promovendo experiências individuais como representações universais: nos jornais, o “atendimento ruim no posto de saúde” vira símbolo de todo o SUS, enquanto o plano de saúde que nega cobertura é tratado como caso isolado.

O imaginário coletivo continua associando a ineficiência ao SUS, apesar de sua capilaridade e resultados expressivos

Dito isso, é no setor privado que muitos brasileiros enfrentam longos prazos de espera para exames e cirurgias eletivas, mesmo pagando caro por planos de saúde. Apesar de a Agência Nacional de Saúde (ANS) estipular prazos máximos de atendimento, um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) em 2022 apontou que os planos de saúde lideram as reclamações nos Procons — superando, inclusive, setores como telefonia e bancos.

O Procon-SP realizou uma consulta com 2.915 consumidores para avaliar a satisfação em relação aos planos de saúde contratados. Dentre os entrevistados, 513 relataram problemas relacionados à demora no atendimento. Quando questionados sobre o nível de satisfação com a operadora do plano, 47% (625 pessoas) afirmaram estar parcialmente insatisfeitos, enquanto 42% (566) declararam insatisfação total. Apenas 11% (150) disseram estar completamente satisfeitos com os serviços prestados.

Ainda assim, o imaginário coletivo continua associando a ineficiência apenas ao SUS, apesar de sua capilaridade e resultados expressivos, como a liderança em campanhas de vacinação e atenção básica em áreas remotas.

Levei certa vez, como jornalista, um ótimo puxão de orelha justamente sobre a assimetria discursiva entre a saúde pública e privada. Viajava pelo interior de São Paulo, 2014, realizando uma série de aulas sobre imprensa, poder e representações. Os encontros aconteciam no contexto da implementação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) em unidades do Senac. Em Jundiaí, uma aluna falou sobre como, naquela cidade, muitas pessoas estavam deixando os planos de saúde não por conta de problemas financeiros, mas porque, naquele momento, o SUS funcionava muito bem no município. Era um orgulho local.

“Mas vocês nunca noticiam esse tipo de coisa. A imprensa gosta de mostrar a ‘falência da saúde pública’, mas não fala quando ela funciona bem.” A estudante estava absolutamente correta. Nunca esqueci essa crítica, e desde então observo como essa ausência de dedo na cara do setor privado faz parte, também, da manutenção da ideologia que se entende como eficiente enquanto a “coisa pública” merece mesmo é morrer de inanição.

E se nós, imprensa, também levássemos exemplos de eficiência dos serviços públicos para debaixo das luzes? E se bons projetos, tocados por boas gestoras e bons gestores, fossem tomados como faróis, de maneira a se multiplicar? A produção dessa percepção certamente teria um impacto social significativo, fazendo que, em lugar de ver o público como algo “de pobre” e a ser evitado, o valorizasse e defendesse. A ausência de uma cultura crítica sobre a mercantilização de serviços essenciais, é claro, compromete a possibilidade de construir um debate equilibrado sobre as formas de organização da vida coletiva.

Esse aspecto foi estudado por Sônia Maria Soares de Oliveira, Carlos Diogo Mendonça da Silva e Gabriela Gomes Freitas Benigno (Universidade Estadual do Ceará) em Privatizar é preciso: o ataque neoliberal à educação pública brasileira, no qual discutem, partir da adoção de políticas que entraram em vigor no país a partir da década de 1990, as estratégias de inserção “do privado no âmbito do público, mais especificamente no setor educacional”.

No Brasil, os exemplos mais recentes desse esvaziamento da educação pública, sob o argumento de uma pretensa melhor eficiência, veio do governador do Paraná, Ratinho Jr (PSD), que bancou a privatização da gestão de mais de 200 escolas estaduais. Em São Paulo, no governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) o mesmo aconteceu com 143 escolas.

Nesse movimento de deslegitimação do setor público, os gargalos estruturais enfrentados pelas instituições de ensino privadas são altamente desconsiderados: nas universidades privadas, por exemplo, há altas taxas de evasão, ausência de pesquisa e baixíssimo investimento em inovação. Mas são as universidades públicas entendidas popularmente como “antros” e lugares a ser desmontados.

Cidadania Shopee

No que se refere às questões de hierarquização social, a percepção de público/privado como coisa de pobre/rico está fundada na própria história do Brasil, me diz a pesquisadora Maria Eduarda da Mota Rocha (UFPE), autora de livros como A nova retórica do capital: a publicidade brasileira em tempos neoliberais (no link, a tese que originou a publicação). “É como se fosse um privatismo herdado da colônia e que não foi atacado até pelo menos a chegada do século 20, justamente quando há uma pressão pelos direitos sociais no Brasil. O senhor rural era o delegado da metrópole na colônia, ele era o Estado, assim o trabalho político de controle da população era delegado a uma figura privada. A questão é que o Brasil começa como um negócio, não como nação.”

Essa característica faz crescer entre nós o que é chamado de liberalismo de origem popular — neste texto escrito por Roberto Dutra para o findado jornal El País Brasil, há uma boa análise sobre como o eleitorado das periferias urbanas votou (eleições presidenciais) no Partido dos Trabalhadores em 2000 até 2012, mas não fez o mesmo em 2014 (Dilma) e 2016 (Haddad).

Ter o tal cartão black e poder comprar sem taxação as blusinhas da Shopee aparecem como substitutos para uma cidadania não alcançada

“A constituição da nação é um negócio muito tortuoso, muito incompleto e até certo ponto fracassado. Digo até certo ponto porque tivemos políticas de redistribuição de renda, avanços de direitos sociais e ainda nas questões de raça e gênero. Elas pressionaram a sociedade para maior participação na riqueza e na política, para a noção de cidadania, o que nos configura melhor como nação”, continua Maria Eduarda, citando o Estatuto do Trabalhador Rural (assinado por João Goulart em 1963) e a regulamentação do trabalho doméstico (2015) como avanços.

Mas há, tanto nos anos 1960 quanto mais recentemente, uma resposta dura a esses progressos sociais — e um dos exemplos é a própria já citada eleição de Bolsonaro em 2018. Nesse outro vale tudo, ter o tal cartão black e poder comprar sem taxação as blusinhas da Shopee aparecem como substitutos para uma cidadania não alcançada.

No Brasil há uma urgência em se distanciar da condição de pobre. Se no passado havia mesmo parcela da população que era ‘coisa’ pertencente a outra, como pensar hoje o que seria uma dignidade social mínima? Tem-se aí o ideário do ‘meu cartão de crédito’, ‘meu carro’, ‘minha casa’… tudo é ‘meu’. O privado sinaliza para uma condição social alcançada. E o público é o que? O público não é nada. O público no Brasil é aquilo que não pertence a ninguém”.

Assim, se algo não é meu nem teu, quem mesmo vai valorizar? Se Jorginho, o filho da personagem Lucimar, só vai melhorar a escrita no ensino privado, como nos informa a novela, basta enfatizar que queremos “melhor educação” nas campanhas eleitorais e depois esperar para repetir a mesma frase a cada dois anos. Aí, só resta torcer para sobrar um dinheirinho que pague uma escolinha privada — e não tem problema se o menino não souber responder, lá na frente, como aconteceu comigo, o que diacho é Romantismo na prova de literatura. A ignorância, ao menos, terá vindo de uma escola privada.

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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