COLUNA

Círculo de Poemas

A beleza salvará o mundo?

O coordenador do Círculo de Poemas, Tarso de Melo, analisa um poema de Claudia Roquette-Pinto, do livro “A Extração dos Dias: Poesia 1984-2005”

14 de Maio de 2025

“O contrário da exaustão não é o descanso. É a beleza” — há poucos dias li aqui na Gama uma reportagem importante sobre o esgotamento mental de trabalhadores e trabalhadoras (ó novo normal!) e essa frase, dita pelo psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, ficou ressoando na minha cabeça. Tem mil implicações aí, mas a agulha dessa ideia vai fundo: o que a beleza é capaz de mover dentro de nós? Onde encontrar a beleza? O que é a beleza?

Num livro (muito bonito, por sinal) chamado “A Beleza Salvará o Mundo” (Bertrand Brasil, 2011), Tzvetan Todorov mergulha nessas questões e, lá pelas tantas, dialogando com Baudelaire, o ensaísta diz: “Só um absoluto subsiste no mundo: a beleza. Atingi-la e reforçá-la constitui, por sua vez, o único meio de redimir um cotidiano desolador; fazendo isto, o poeta melhora o mundo ao mesmo tempo que dá sentido à sua própria vida”.

Não vem ao caso aqui detalhar os caminhos e descaminhos da reflexão de Todorov, mas essa ideia da beleza erguendo-se contra a exaustão e a desolação me pegou forte porque ando imerso no universo da poesia de Claudia Roquette-Pinto, que acaba de reunir no volume “A Extração dos Dias” seus cinco primeiros livros e poemas escritos na juventude.

É incrível como o olhar da poeta encontra e revira e maneja a beleza no tecido dos dias

Sem dúvida, há muitas formas de atravessar livros tão densos, mas é incrível como o olhar da poeta encontra e revira e maneja a beleza no tecido dos dias. Em seus poemas, o modelo dessa beleza (e da força da beleza contra o horror do mundo) é quase sempre uma flor — e é como se um jardim se formasse no conjunto dos poemas. Em cada página, algo brota, algo vive, surpreende. Alguma afrontosa beleza se revela

*

No jardim

o verão recomeça sua linhagem de folhas
vespas se eternizam em vertigens roxas
no seu zig voo zag ancestral.
guizo de flores a abelha matutina
espirala a corola
e o crisântemo fulmina
num amarelo que dói dói dói.
há uma nota fovista na alface crespa
a larva estala em borboleta
mas a tarde se desprega alheia a isso.
uma luz um motivo um inseto
tremula na tua pupila
com asas de prata e papiro.
o silêncio estrila e me espeta.

eu escuto o que tem que ser dito.

*

Originalmente publicado em “Os Dias Gagos” (1991), livro de estreia da poeta, o poema acima contém — mais que em germe: em germinação — os traços que me parecem decisivos de sua poética. A atenção para os pequenos movimentos, para a vibração interna do que vive; o jogo das cores, como se pincelasse com as palavras; a percepção das marcas que, desde o íntimo, saltam à superfície; a acuidade para sacar os sentidos do silêncio. Enfim, flagrar a beleza encontrando formas de sobreviver.

Claudia Roquette-Pinto nos revela alguma beleza a salvo no mundo, nem que seja por um instante, tudo parece estar mais vivo

No poema acima, é o verão que se abre diante dos olhos (“tremula na tua pupila”) — e assim se instala dentro de quem observa o jardim. Tudo é tomado por folhas, vespas (“em vertigens roxas”), flores, abelha, corola, crisântemo, alface, uma “larva [que] estala em borboleta”. Desenhado o verão nos primeiros nove versos, vem a quebra: “mas a tarde se desprega alheia a isso”. E é como se o poema recomeçasse, se retorcesse em torno desse “mas”, pelo estranhamento entre aquele verão exuberante em cada traço (mas que “dói dói dói”) e a tarde de quem fala no poema, ou melhor, aquele que é atingido por um “silêncio [que] estrila e espeta” e “escut[a] o que tem que ser dito”.

No posfácio de “A Extração dos Dias”, Gustavo Silveira Ribeiro diz que “a flor ambígua e turbulenta — mas ainda assim flor — da poesia de Claudia Roquette-Pinto aproxima, sem resolver, o baixo e o alto, a degradação e a beleza, o chão e o céu”. E é muito importante reparar nessas tensões, para não simplificar indevidamente a “beleza” de que estamos falando aqui, porque o olhar da poeta, por mais que seja agudo e “restrito”, nunca é indiferente aos contrastes que essa beleza ressalta enquanto passa. É, na verdade, do atrito, da turbulência, da ambiguidade, que tudo se faz mais belo, como se esse olhar para o ínfimo, para os detalhes, compusesse um retrato em negativo do que o cerca.

Não sei se a beleza salvará o mundo, mas o fato é que, quando um poema como o de Claudia Roquette-Pinto nos revela alguma beleza a salvo no mundo, nem que seja por um instante, tudo parece estar mais vivo. Florindo. Pétala por pétala.

Produto

  • A Extração dos Dias: Poesia 1984-2005
  • Claudia Roquette-Pinto
  • Círculo de Poemas
  • 368 páginas

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Círculo de Poemas é a coleção de poesia e clube de assinatura da editora Fósforo, que lança duas publicações por mês de poetas das mais diferentes gerações, línguas e tendências. Todo mês, um poema da coleção é comentado pelo coordenador do Círculo, Tarso de Melo.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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