Picadinhas, picadonas - a infantilização — Gama Revista
Christopher Barr
Imagem da série em que o fotógrafo irlandês Christopher Barr registra o envelhecimento do pai

O dia em que minha mãe envelheceu Uma série de quatro textos da jornalista Angélica Santa Cruz sobre o processo de envelhecimento de sua mãe e a constatação de que nem todos seremos idosos à maneira de Jane Fonda. Vivemos mais. Mas vivemos melhor?

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Picadinhas, picadonas – a infantilização

Angélica Santa Cruz 15 de Dezembro de 2020

A minha mãe adorava ser dona-de-casa, mas foi para o mercado de trabalho quando ficou viúva e revelou habilidades extraordinárias de sobrevivência na selva. Apostou tudo na nossa educação. Certa vez, vendeu a geladeira da casa – vermelha como o casaco da Jane Fonda – para pagar algumas das mensalidades atrasadas do bom colégio em que me matriculou. Enquanto penhorava a aliança de casamento para pagar o resto, me ensinou a não deixar que ninguém da direção me retirasse da sala de aula para falar do atraso, algo relativamente comum na época. Com uma vida cheia dessas histórias de heroísmo anônimo e circunstancial que às vezes transformam as mulheres comuns em grandes mulheres, ela é, enfim, admirável. Mas a dependência a leva para uma fronteira borrada. Em meio aos cuidados de que precisa agora, quase sempre acaba tratada como se tivesse se descolado da mulher encantadora que é.

No livro “O Brilho do Bronze”, o historiador Boris Fausto revisita em um diário o luto pela morte de sua mulher, com quem viveu por 49 anos. A certa altura, ele escreve:

“11 de SETEMBRO
SOPINHA
Leio na Folha uma entrevista de Paulo José, que luta contra o mal de Parkinson há anos – luta que dispensa adjetivos ou advérbios. Falando de como lida com a doença no contato com outras pessoas, ele lembra algo que também sinto. Diz que é irritante ser tratado como criança pelas enfermeiras do hospital: – Chegou a sopinha! Vovô vai tomar a sopinha agora! Ao que ele responde, irritado – Porra, caralho! Que sopinha o quê! Já passei por situações como essa e fico pensando de que cabeças iluminadas saiu a ideia de infantilizar os idosos, como se a morte à espreita nos fizesse recuar, ilusoriamente, à condição de criança.”

Todo o sistema de cuidados em volta dos idosos é viciado nesse tratamento infantilóide. Cuidadoras tendem a confundir demonstração de carinho com regressão

Todo o sistema de cuidados em volta dos idosos é viciado nesse tratamento infantilóide. Nas internações, enfermeiros de fato avisam que está na hora de tomar um banhozinho, tomar o remedinho e, a mais tétrica de todas as versões, tomar uma picadinha. Cuidadoras tendem a confundir demonstração de carinho com regressão. Estudos mostram que esse tratamento diminui, humilha e pode levar à depressão. A razão é óbvia: se alguém te arrasta de volta para o começo da sua vida, esvazia tudo o que você construiu ao longo dela. No caso da minha mãe, foi muita coisa. Ainda assim, de uma forma geral, tenho a impressão de que ela consegue se defender sozinha desse tipo de tratamento, na maioria das vezes com boas respostas atravessadas.

O ponto delicado está nos casos em que ela não consegue – aí a gente precisa intervir. E intervenções são sempre desmoralizantes. A administração da vida financeira é um clássico desses momentos em que os idosos perdem a autonomia. No imenso universo Big Data, com gerações de lead qualificado, cruzamento de mailings e geolocalizações, eles são um pote de ouro, um alvo do tamanho do sol, para enganações. O telefone da minha mãe toca o dia inteiro, com vendedores com vozes de mel oferecendo, com insistência quase criminosa, suplementos vitamínicos, planos funerários, pacotes de TV a cabo, seguros, consignados.

Operadoras de telefonia enfiam nas contas mensais da casa serviços não contratados em letras minúsculas, provavelmente porque sabem que ela teria dificuldade de identificá-los. Desse balaio, emerge também a incrível capilaridade dos golpistas. Um deles, com acesso à base de dados de uma empresa de seguros que faliu há décadas, ligou dizendo que ela tinha direito a uma bolada por ter vencido uma ação que nunca abriu contra a instituição – e para ajudá-la a ter acesso ao dinheirão, precisaria dos documentos e de um adiantamento para pagar os custos do processo. Ela acreditou, mas teve o lampejo de telefonar antes para a minha irmã e consultá-la. A muito custo, foi convencida de que era um golpe.

As pegadinhas para ganhar uma bolada do nada – quase irresistíveis não só para idosos – chegam de todos os lados, inclusive dos grandes bancos

As pegadinhas para ganhar uma bolada do nada – quase irresistíveis não só para idosos – chegam de todos os lados, inclusive dos grandes bancos. Quando a minha mãe ainda morava sozinha, a cinquenta metros da minha casa, dei uma passada para vê-la em um horário pouco comum. Encontrei na portaria um gerente de banco prestes a subir, com uma papelada em mãos para oficializar um empréstimo que ele a convenceu a fazer, por telefone. Era muito dinheiro, fatiado em prestações que ela não poderia pagar nem com expectativa de vida de 200 anos. Expliquei que a minha mãe não precisava, que a gente cuidava dela, que já mostrava sinais de dificuldades de raciocínio e de julgamento, me despedi do sujeito. O gerente insistiu, disse que eu não tinha nada a ver com aquilo, respondeu que havia combinado direto com uma adulta, só faltava uma assinatura.

O tom da conversa foi subindo – e acabou com ele do outro lado da rua berrando ameaças, agitando furiosamente uma pasta, e eu, da janela do apartamento dela, gritando: “tomara que tenha alguém agora fazendo com a sua mãe o que você quis fazer com a minha!”. O sujeito enfim foi embora, liguei para o banco e me disseram que ele, funcionário terceirizado, queria apenas captar clientes. A minha mãe ficou me olhando amuada, meio envergonhada – parecia de fato uma menina. Briguei com ela também (“por que não contou pra gente? viu como escapou por pouco?”) – e depois passei a semana destruída.

Tempos depois, minha irmã descobriu que ela tinha sete contas-poupança com saldos insignificantes em outro banco, abertas quando ia buscar a aposentadoria e não conseguia se desvencilhar de atendentes insistentes que precisavam cumprir metas e ofereciam novos produtos. Fechar as contas exigiu que a levássemos à agência em um momento em que já estava frágil, com dificuldades de mobilidade. Constatar que a mesma mulher que preparou as duas filhas para os perigos da vida agora poderia levar ganchos sem nenhuma esquiva foi uma perturbação. Muito antes do “Dilema das Redes”, a gente começou a proteger os dados dela de uma maneira meio neurótica.

A minha mãe virou alvo fácil de diminutivos, alvo fácil de pequenas e grandes enganações. No dia a dia dos cuidados, o equilíbrio entre protegê-la a esvaziar suas vontades está sempre por um fio. Nem sempre a gente consegue.

Angélica Santa Cruz dirigiu oito títulos da editora Abril, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo, repórter especial do Estado de S.Paulo, editora da Veja e chefe de sucursal do site NO.com.

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