A crise — Gama Revista

Jovens e também evangélicos Uma série de quatro textos da jornalista Débora Aleluia. Ela, que é evangélica, ouviu depoimentos de outros jovens para criar os relatos a seguir. Nessa costura de diferentes histórias e experiências, ela mostra um pouco do que é seguir a religião hoje no Brasil

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A crise

Débora Aleluia 11 de Setembro de 2020

Quando eu comecei a frequentar as reuniões do movimento estudantil quase ninguém me conhecia e eu tomava aquele espaço de forma tímida também. Ouvia-os falar sobre os crentes, como se todo mundo fosse o estereótipo de eleitor de Bolsonaro — que nem é evangélico, por sinal — e, não vou mentir, eu concordava. Afinal, cresci na igreja, cresci com gente como eles falavam. A gente que é crente também sente raiva de quem deturpa a nossa fé, algo que é tão precioso para nós.

Em algumas passagens bíblicas, Jesus se ira contra aqueles que distorcem a sua mensagem. Da mesma maneira, continuamos nos revoltando. Quando o Evangelho vira um comércio, não são os verdadeiros cristãos os compradores e nem o público alvo. Os boatos, as ações inconstitucionais e a manipulação que levaram certas denominações evangélicas ao poder mais se assemelham a um jogo político de manutenção de interesses, do que o exercício da fé e da liberdade de culto. Ligaram o conservadorismo à igreja evangélica porque foi essa a parte dela que foi sustentada e apoiada pela sociedade brasileira tradicionalista.

Ligaram o conservadorismo à igreja evangélica porque foi essa a parte da igreja sustentada e apoiada pela sociedade brasileira tradicionalista

Sendo assim, ser oposição, para mim, sempre foi uma prova. Para quem cresceu em igreja como eu, há sempre a narrativa do momento em que sua fé será questionada e não negar a Deus te reafirma como cristão no mundo. As reuniões do movimento estudantil eram o meu teste. Quando minha fé começou a ser ligada à bancada evangélica, ao vexame político, à alienação, eu comecei a sentir a pressão externa para negá-la. Eu quero ser evangélico, mas eu não quero ser o que vemos na TV. Quem estaria negando tudo, afinal? Eu ou as lideranças evangélicas políticas e midiáticas?

Em meu tempo de questionamento, me calei. Com a força do impacto do que coloca a minha fé em cheque — a universidade e a esquerda –, eu quase freei. Mas, por mais que eu tentasse, a fé que eu construí não era algo para deixar para trás. Não dava para fechar a porta da sala de aula no que eu acreditava porque a minha crença também estava ali dentro comigo. Enquanto muitos me apresentavam teorias que achavam que teriam contraposições no Evangelho, eu via a semelhança e a beleza daquele encontro em minha vida. Assim, a minha fé ganhou força no meu cotidiano.

Por onde eu andava havia uma narrativa ao meu respeito, na igreja eu era comunista, na faculdade a minha fé me fazia ser visto como “burro”

Por onde eu andava havia uma narrativa ao meu respeito. Na igreja, eu era comunista; na faculdade, a minha fé me fazia ser visto como “burro”. Se as teorias que eu conheço não abrem espaço para a minha diversidade, no chão da vida eu busquei dar sentido à minha existência. Na minha caminhada, eu percebi que não dá para atrair as pessoas somente pela intelectualidade. A minha vivência era mais do que isso, inclusive. Às vezes, eu só conseguia comunicar à minha mãe a importância de algo que me deslumbrava nos estudos, se eu trouxesse a questão como um pedido de oração em casa. E foi justamente quando eu aprendi a me comunicar que a minha fé foi reafirmada e ganhou mais força, motivada pela crise.

Como o Brasil da atualidade, a falta de representatividade legítima e a incompreensão da esquerda me fez pensar — mesmo que por um milésimo de segundo — que valeria a pena voltar à concha cristã conservadora e à prova de diversidade. Mas na minha turbulência, como um bom crente costuma dizer, eu entreguei o controle do avião a Deus e foi por meio da fé que eu conheci a vida, a política, novos caminhos e bons novos líderes, como Leonardo Boff, Frei Beto, José Marcos da Silva e Ariovaldo Ramos. Nesse rumo, diariamente renovo a minha esperança na nossa diversidade e em uma resposta mais igualitária à crise na qual todos nos encontramos.

As pessoas ouvidas para compor este relato não quiseram ter seus nomes revelados.

Débora Aleluia tem 22 anos, é jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco e “evangélica de berço”. Atualmente ela faz parte da Igreja Mangue, no centro do Recife, e se articula com movimentos sociais ligados à igreja evangélica, como a Escola de Fé e Política Martin Luther King Jr.

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