O maldito ciúme, o delicioso ciúme — Gama Revista

Casamento Aberto O relato de uma mulher e suas reflexões sobre o casamento (feliz) que aos 15 anos ganhou a possibilidade de novos encontros

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O maldito ciúme, o delicioso ciúme

18 de Abril de 2020

E sigamos juntos. É o que o Caetano canta, depois de propor: “Deixa o ciúme chegar, deixa o ciúme passar”. O maldito ciúme, o delicioso ciúme. É o que eu proponho também. Não dá pra, de uma hora pra outra, decidir que não estamos mais numa relação de exclusividade e, simplesmente, nunca parar pra pensar em coisas como: E se ele se apaixonar de verdade? E se ela for mais gostosa do que eu? E se ela for mais inteligente, mais legal, mais bonita, mais magra, mais divertida, mais bem-sucedida do que eu? E se ela for ele?

Olha, deixa o ciúme chegar – porque ele vai chegar. Nem todos os momentos vão ser de paz e generosidade. Já passei uma noite inteirinha mordendo a fronha do travesseiro em casa enquanto ele, fora da cidade, fazia sei lá o quê. Também já levei reprimendas constrangedoras: “Beijando escondido no corredor a essa altura do campeonato?”. Constrangedoras pra mim, claro. E é um aprendizado constante. A gente bate cabeça, sim. Mas que casal não bate?

Olha, deixa o ciúme chegar — porque ele vai chegar

Quando a Virginia Woolf começou um affair com a Vita Sackville-West, e a escrever Orlando, inspirada por ela, o marido da Vita enviou uma cartinha pra amante da esposa dizendo algo como “que legal que ela está em tão boa companhia, curtam aí, tenho zero ciúme”. Tudo muito bonito, mas ele, um diplomata chamado Harold Nicolson, era gay, então a coisa fica mais fácil, né? Por que mais fácil? Porque a dureza é, mesmo, reconhecer que aquele que você deseja pode (e vai) desejar outra pessoa e que, em um relacionamento aberto, não é a existência do desejo o que é permitido (ninguém controla isso aí), mas a realização dele.

Existe um terreno particularmente perigoso nessa história: aquele em que habitam os amigos do casal. Você conhece aquelas pessoas há tempos, vocês se dão bem, elas são super interessantes (claro, são suas amigas!) e, porque a grande novidade da sua vida afetiva é esse novo arranjo no relacionamento, isso se torna um assunto, e é um assunto… quente. Acho que alguns dos nossos amigos foram mordidos pela curiosidade, quando a gente fez o acordo de abertura. E a gente se meteu em uma ou outra encrenca. Sob o princípio da não publicização do que não é meu, fecho o bico por aqui, mas fica uma dica: não abram o relacionamento dos outros!

Fica uma dica: não abram o relacionamento dos outros

A questão do envolvimento com amigos me leva ao coração da coisa toda: por que querer desejar e ser desejado por alguém que não aquele que você ama (e deseja)? No caso de um amigo, pode ser uma forma razoavelmente segura de experimentar um leve deslocamento de perspectiva que (mais do que mostrar algo sobre outro) nos mostra que temos, nós mesmos, um algo a mais que pode de repente cativar alguém que sempre esteve lá, mas de uma forma mais – qual a palavra? – emocionante. E não só isso: mais profunda, e mais urgente.

O Houaiss define o erotismo como o “estado de excitação sexual”, ou o “estado de paixão amorosa”, um estado que a psicanalista Lou Andreas-Salomé afirma possuir “algo da insalubre alegria que sente a vida do corpo” e que se traduz numa “experiência sempre nova e jovem, por assim dizer, como a própria vida em seu sentido primitivo”. É por essa fundamental relação com a novidade que Andreas-Salomé relaciona o erotismo à infidelidade, não como “sinônimo de fragilidade ou de depreciação”, mas sim como “um sinal da ascensão para conexões vitais ainda mais vastas”.

Conexões vitais ainda mais vastas! Quem não as quer? Bom, acho que muita gente já acharia chato o próprio vocabulário psicanalítico (espero não ter perdido leitores no último parágrafo). Mas o ponto aqui é: topando ou não a relação entre erotismo e infidelidade – entre o estado de paixão e a vivência dele com diferentes pessoas –, quem não há de entender o que significa se ver como um objeto de desejo em novos olhos, sob novas mãos? Quem não admite o reconhecimento, mesmo que breve, mesmo que ilusório, de entrar “enfim numa existência superiormente interessante”, como escreveu Eça?

É delicioso poder, ainda, lançar um olhar de novidade (e recebê-lo de volta) à pessoa que você ama mais profundamente

Deixa o ciúme passar, porque é bom e bonito experimentar isso e deixar que o outro também experimente. E, ainda mais (e melhor), é delicioso poder, ainda, lançar um olhar de novidade (e recebê-lo de volta) à pessoa que você ama mais profundamente, seu melhor amigo, seu par. Em “Casos e Casos”, um livro desses que viraram best-seller de “New York Times”, Esther Perel parte da experiência como terapeuta de casais para analisar o tema da infidelidade e conclui, entre outras coisas: “Às vezes, quando buscamos o olhar de outro, não é para o nosso parceiro que viramos a cara, mas para a pessoa que nos tornamos. Não estamos propriamente procurando um outro amante, mas sim uma outra versão de nós mesmos”.

Eu me identifico com esse trecho quase completamente. Não estou virando a cara para quem eu sou – eu acho que sou muitas coisas, quero ser muitas coisas, e a dimensão erótica é mais vasta, com suas possibilidades e surpresas, do que nos mostram os guias de como chegar ao melhor orgasmo com seu parceiro. Mas entendo muito bem, na própria pele, que o grande apelo que o encontro com o outro sempre vai ter é o que ele proporciona como expansão do que eu sou, do que sinto e como me vejo. Além disso, há uma consequência maravilhosa de se tornar outra: beijar e transar com seu marido como se fosse, de novo, a primeira vez. E de novo. E de novo.

*Para preservar esse casamento feliz, a autora preferiu não se identificar • • • • • • • •  A imagem que ilustra essa matéria é uma cortesia do artista Marcelo Cipis e Galeria Bergamin e Gomide – Imagem Para Vaso Grego Contemporâneo 10 (da série Drops / from the Drops series), 2019. Acrílica sobre tela / Acrylic on canvas. 11 3/4 x 11 3/4 in. (30 x 30 cm). MCP-0123. / Fotografia: Ding Musa

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