Unicórnios: Um pouco de lucro, um pouco de consciência — Gama Revista

Sociedade

Um pouco de lucro, um pouco de consciência

FG Trade / Getty Images

Com a pandemia, o mercado de startups no Brasil passa por mudanças. Especialistas veem tendências relacionadas ao meio ambiente, à saúde e à educação se consolidando

Jiane Carvalho 17 de Outubro de 2020

É muito provável que a pergunta sobre como será o mundo pós-pandemia, em termos econômicos e sociais, ainda movimente os debates por um bom tempo. Em meio a muitas dúvidas sobre a magnitude dessa herança, há pelo menos uma certeza: o uso forçado dos meios digitais deixará um legado importante em áreas como saúde, educação e no trabalho remoto.

Entender quais demandas surgidas nesse período vão permanecer pode ser o segredo para o sucesso ou fracasso de uma iniciativa. E no mundo das startups, empresas que surgem para resolver problemas específicos, com forte apelo tecnológico e muita inovação, não seria diferente. Embora o cenário pós-pandemia ainda não seja claro, especialistas veem algumas tendências se consolidando.

No setor bancário, as fintechs (que trabalham para inovar e otimizar os serviços do sistema financeiro) seguirão ganhando espaço, agora com um consumidor menos resistente ao digital. O setor de saúde, que experimentou a telemedicina durante a pandemia, e o de educação, que precisou migrar a rede para o ambiente virtual, também vão demandar novas soluções.

Entender quais demandas surgidas neste período vão permanecer pode ser o segredo para o sucesso ou fracasso de uma iniciativa

No varejo eletrônico, o segmento que mais se beneficiou da pandemia, as movimentações de companhias tradicionais para atender este novo consumidor já estão em curso. E incluem parcerias ou aquisições de startups em diferentes ramos de atividade, como logística, finanças e alimentação. A necessidade de um consumo consciente, tão falado durante os piores meses da crise, é outro fator que abre novas possibilidades para startups voltadas ao agronegócio, como as fazendas verticais em grandes centros, ou a produção de carne vegetal, que se beneficia do debate em torno da degradação do meio ambiente associada à extensas pastagens de gado.

Para o cofundador da empresa de inovação aberta Distrito, Gustavo Araújo, a aceleração do uso digital neste ano torna o ambiente muito positivo para o setor. “Tem muitas startups em telemedicina, em delivery de comida e de software para gestão que ganham espaço” comenta Araújo. Segundo ele, entretanto, não foram poucos os desafios enfrentadas por parte das startups na pandemia. “Quem depende de investimentos externos teve dificuldade, mas a recuperação já começou e, no caso das startups, será [com um gráfico] em V”.

O fechamento das escolas parecia algo muito ruim para todos, mas abriu possibilidades para as EDtechs, startups de educação

Um levantamento da Distrito mostra que, neste ano até setembro, as startups receberam US$ 2,2 bilhões – só em setembro foram US$ 843 milhões. Foram aportes em setores que se beneficiaram dos novos hábitos do consumidor, como os US$ 300 milhões para a fintech Neon, os US$ 225 milhões para a plataforma de e-commerce Vtex e outros US$ 21,6 milhões para a Foodtech Fazenda do Futuro.

O coordenador do FGVnest – Núcleo de Estudos em Startups, Inovação, Venture Capital e Private Equity da Fundação Getúlio Vargas – Caio Carvalho, mesmo defendendo uma certa cautela ao pontuar quais as startups no pós-crise vão se consolidar, destaca o setor de educação como promissor. “O fechamento das escolas parecia algo muito ruim para todos, mas abriu possibilidades para as EDtechs, startups de educação, com a adoção do EAD, o surgimento de plataformas para realização de aulas. Tem muito conteúdo de educação corporativa que as novas tecnologias possibilitam.” Para o professor da FGV, ao juntar dois fatores que o Brasil tem de sobra — problemas a serem resolvidos e potencial de mercado — várias áreas tendem a atrair novas startups, citando a saúde e finanças.

Os problemas no Brasil são tantos e tão óbvios que o desenvolvimento das startups no país focou em inovação no modelo de negócio e em produto, e não em tecnologias disruptivas

A avaliação do jornalista Daniel Bergamasco, autor do Livro “Da Ideia ao Bilhão”, que reúne histórias dos primeiros unicórnios brasileiros – empresas que romperam US$ 1 bilhão em valor de mercado – vai na mesma direção. “Os problemas no Brasil são tantos e tão óbvios que o desenvolvimento das startups no país focou em inovação no modelo de negócio e em produto, e não em tecnologias disruptivas como nos Estados Unidos”, comenta Bergamasco. “Tarifas bancárias caras e uma experiência ruim no presencial fez surgir o Nubank, assim como a burocracia para locação de imóveis levou a outra unicórnio, o QuintoAndar”, exemplifica.

Bergamasco destaca o problema da falta de profissionais qualificados que deve se acentuar no pós-covid. “A demanda já era grande e com a maior digitalização da economia, as empresas tradicionais vão competir pela mão de obra. Mais do que capital, é a falta de mão de obra que pode ameaçar o futuro das startups.”

O desafio daqui em diante, reforça o diretor executivo da Associação Brasileira de Startups, José Muritiba, é entender o que quer e como quer este novo consumidor, mais digital. “Muitas certezas e padrões comuns mudaram neste período, então todos têm o desafio de se reinventar, aprender e se adaptar”, diz Muritiba, mencionando startups voltadas para saúde, marketplace e alimentação, que “souberam se adaptar na pandemia para atender os consumidores”.

O universo das “TECHS” no pós-covid

  • FINTECH

    Mesmo já tendo sido muito exploradas, as startups voltadas para o mercado financeiro continuam como tendência. Levando em conta a máxima de que startups buscam “resolver problemas” o setor bancário é um prato cheio. Juros altos, um atendimento presencial questionável e restrições no crédito são só algumas das deficiências que as fintechs buscam resolver. “O consumidor pós-pandemia está mais aberto a novas experiências, agora digitais, e a criação do PIX — novo sistema de pagamento instantâneo do Banco Central — também estimulará a criação de fintechs”, comenta Gustavo Araújo, da Distrito.

  • FOODTECH / AGTECH

    Voltadas para o ramo de alimentação, estas startups ganharam espaço na crise e, mesmo que o consumidor retome parte dos hábitos pré-pandemia, a tendência de surgimento de novas empresas permanece. A aposta é de que movimentos em defesa de uma produção descentralizada de alimentos e ecologicamente sustentável, que ganhou publicidade na crise, continue em destaque. As fazendas verticais, como a startup Pink Farm (SP), conversam com as demandas desse consumidor mais consciente ao possibilitar a produção de alimentos nos grandes centros. É mais tecnologia e menos transporte com ganhos para o meio ambiente e a sociedade. O mesmo ocorre em relação a outras startups do setor, a Fazenda do Futuro, que produz carne de origem vegetal e já planeja uma expansão internacional da operação.

  • HEALTHTECH

    A pandemia chamou a atenção para a importância da saúde em diversos níveis, incluindo os velhos problemas de gestão e ineficiência. A resistência à telemedicina foi quebrada com o atendimento remoto sendo autorizado durante a pandemia, mas que deve permanecer. A tendência é que as startups da área da saúde, que não se limitam a facilitar o encontro paciente-médico, ganhem tração. Tem healthtech para monitoramento de pacientes a distância (glicemia, por exemplo), para pessoas que tratam dependância química, para gestão do estoque hospitalar, para clínicas inteligentes ou mesmo voltadas para a pesquisa médica.

  • PROPTECH

    O setor imobiliário já conseguiu levar duas startups brasileiras à categoria de unicórnio, o QuintoAndar e a Loft, que atuam com venda e compra de imóveis. E não deve parar por aí. Com a retomada do setor imobiliário, após anos de desempenho fraco, a tendência é que startups ganhem espaço atuando na gestão imobiliária por meio do desenvolvimento de soluções que facilitam os procedimentos de propriedade, diminuem a necessidade de impressão de papéis etc – outra tendência forte surgida na pandemia.

  • RETAILTECH

    Se teve um setor que ganhou com a pandemia foi o varejo eletrônico, com boa parte dos consumidores forçados a terem suas primeiras experiências on-line. Foi grande a movimentação dos varejistas tradicionais se adaptando às novas demandas. Na maioria dos casos, incluía parceira ou compra de startup. Só a Via Varejo (Casas Bahia e PontoFrio) comprou na pandemia a Zaplog, para gerenciar mini centro de distribuição para atender seus clientes e dos parceiros que estão em seu Market Place, e a fintech Banqi — plataforma de conta digital. “O cliente compra uma geladeira, mas muitas vezes no mesmo local quer pagar uma conta ou fazer um financiamento e os varejistas estão atentos a este movimento. São as startups que fornecem soluções para esta mudança”, comenta Gustavo Araújo, da Distrito.

    Outra movimentação que chamou a atenção do mercado foi a compra, pela Magazine Luiza, do delivery de comida AiQFome. Com isso, amplia a prateleira de serviços visando aumentar a recorrência de uso de seu marketplace. “Não me espantaria se no futuro uma varejista oferecer plano de saúde.” Não é à toa que a mais nova startup unicórnio brasileira, a Vtex que ultrapassou a marca de US$ 1 bilhão em valor neste ano, trabalha com uma plataforma de comércio que unifica canais de venda, gerenciamento de pedidos e marketplace.

  • CLEANTECH

    A produção de energia limpa é tendência no mundo todo assim como a geração distribuída – em que cada unidade produz sua própria energia e pode jogar a sobra não consumida na rede. Hoje, a maioria das startups de energia são focadas na indústria 4.0, na gestão do consumo por meio de equipamentos inteligentes informam e gerenciam o consumo, mas isso pode mudar. O executivo da Distrito destaca espaço para tecnologias que possibilitem que residências produzam a própria energia, com painéis solares, e ainda ganhem com as sobras que ingressam no sistema. “Tem algumas amarras regulatórias, mas é tendência no mundo todo.”

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