Medo de germes? Você não está sozinho — Gama Revista

Medo de germes? Você não está sozinho

As noções de higiene mudam ao longo da história, e alguns momentos podem ser propensos ao exagero. Especialistas ouvidos por Gama indicam como observar se a coisa saiu do controle

Laura Capelhuchnik 05 de Setembro de 2020

Só quem já passou por uma pandemia sabe o que é suar frio assistindo a um diálogo mais próximo entre duas pessoas em um filme. Quanta carga viral teria escapado naquela interação? Nem mesmo na ficção os beijos e os copos compartilhados escapam à vertigem que sentimos pelo medo exagerado do adoecimento.

Até “A Última Ceia”, afresco de Leonardo Da Vinci, ganhou na internet uma atualização segura para a pandemia, um banquete em videoconferência, sem risco para Jesus Cristo ou qualquer um de seus apóstolos. Pior ainda é pensar que a obra foi feita no século 15 — quando ainda não existiam banheiros privativos como conhecemos hoje, com pias e chuveiros — e, portanto, a pintura foi imaginada por Da Vinci provavelmente sem a expectativa de que algum de seus retratados tivesse lavado as mãos na pia antes de se sentar à mesa.

Nossos hábitos de higiene são recentes, mudaram ao longo do tempo e também de acordo com as culturas. Na maioria dos países do Ocidente, banhos só se tornaram prática diária e popular no século passado.

Os parâmetros de limpeza com os quais estamos acostumados no Brasil — uma infinidade de sabonetes, pastas de dente, desodorantes e cremes de barbear — se consolidaram em meados do século 20, sob influência norte-americana, e de um ideal muito menos higiênico do que estético. A entrada maciça de produtos importados, e de seu marketing pautado nas novas práticas de higiene que confundiam asseio com beleza, ajudou a pautar o jeito como enxergamos higiene pessoal hoje.

Menos de cem anos depois, estamos lavando as mãos com frequência, evitando proximidades, desinfectando superfícies a todo momento. E isso nada tem a ver com parecermos mais bonitos ou cheirosos. Estaríamos caminhando rumo à passagem mais “germofóbica” da história da higiene?

A dor e a delícia da limpeza na pandemia

O Brasil costuma liderar a corrida do asseio quando o quesito é frequência de banho. Figuramos entre os primeiros países no ranking de duchas semanais pelo mundo. Mas o mesmo não se aplica à lavagem das mãos e outros tipos de assepsia, práticas que acabaram se acentuando somente após a pandemia.

E como se acentuaram: depois de um semestre em quarentena, os métodos de higienização vão até onde a imaginação permite, embora nem sempre acrescentem muito do ponto de vista da prevenção, segundo o infectologista Álvaro Furtado, do Hospital das Clínicas, de São Paulo. “A principal ação preventiva continua sendo higienizar bem as mãos, que são o maior veículo de contaminação, não só de covid-19, mas de outras doenças transmitidas por contato direto. Certos rituais de desinfecção constante de embalagens e superfícies são só exagerados e cansativos. Basta lavar as mãos depois do contato com elas.”

Certos rituais de desinfecção constante de embalagens e superfícies são só exagerados e cansativos. Basta lavar as mãos depois do contato com elas

Se mesmo depois de assimilar a informação anterior você ainda se sente melhor mantendo rituais de higiene redobrados, dando banho em pacotes de plástico ou evitando encostar em paredes e maçanetas, não está sozinho.”Faz parte se proteger, ficar mais ansioso, tomar medidas mais exacerbadas e recrutar um pouco mais de atenção à higiene”, explica Marcelo Hoexter, professor do departamento de psiquiatria da Unifesp. “Em boa parte, isso é uma resposta pertinente no contexto atual.”

Durante a pandemia, segundo Hoexter, podemos experienciar sintomas hipocondríacos, ansiosos, depressivos e pensamentos exacerbados relacionados à limpeza. O que não quer dizer que eles serão permanentes, tampouco que se enquadram em um quadro psiquiátrico. “Quantos relatos a gente não ouve de alguém que acordou com uma tosse, começou a desconfiar que era covid-19, então sentiu falta de ar, a ansiedade foi aumentando e precisou ir para o médico se certificar de que não estava doente? Isso pode acontecer e tem sido comum”, explica.

A preocupação com sujeira e contaminação, que em alguma medida todos vivenciamos hoje, costuma ser experienciada por pessoas diagnosticadas com TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo). Ao medo excessivo se associam rituais de limpeza e lavagem constantes. Com a necessidade de higiene em foco, a pandemia gerou um aumento na incidência e na intensidade de problemas de saúde mental e borrou as fronteiras entre a reação de medo esperada, e portanto saudável, e o exagero nocivo.

O que traça esse limite, e que merece maior atenção nesse período, é o quanto práticas de limpeza, ou mesmo sensações de preocupação ligadas à higiene, impactam o cotidiano.

“O paciente com TOC sofre muito com o medo da contaminação e isso causa uma interferência na sua rotina, até pelo tempo que se toma realizando comportamentos de limpeza e lavagem, muito acima do que a maioria das pessoas têm feito agora”, explica Daniel Costa, psiquiatra do programa de Transtorno Obsessivo-Compulsivo da USP.

O paciente com TOC sofre muito com o medo da contaminação e isso causa uma interferência na sua rotina, até pelo tempo que se toma realizando comportamentos de limpeza e lavagem

Outro critério de avaliação é a reação à prática higiênica, que para a maioria das pessoas, deve trazer uma sensação de proteção satisfatória. “Quando está exagerando, a pessoa diagnosticada com TOC se sente aprisionada por aquilo, e sofre muito com o fato de ter de fazer tantas vezes”, explica. “Há pacientes que por vezes recorrem a materiais de limpeza altamente abrasivos, que acabam por gerar mais danos do que proteção, causando feridas e problemas de pele.”

Algumas medidas recomendadas pelos dois especialistas podem ser tomadas para amenizar o desconforto causados pelo medo exagerado da contaminação. “A primeira é validar a vivência da pessoa. Essa nossa resposta de ansiedade é uma resposta saudável, o corpo reage diante dessas circunstâncias”, diz Hoexter.

Vale a pena também averiguar a exposição demasiada às informações e procurar fontes seguras, para não se impressionar desnecessariamente. O cuidado com uma rotina bem estabelecida, que dê senso de organização e preserve horários para lazer, sono, atividades físicas ou de relaxamento também é um bom jeito de não se deixar tomar pela ansiedade. Se o medo estiver gerando sofrimento excessivo e dificultando o dia a dia, vale procurar uma avaliação médica detalhada.

Viveremos um futuro com medo de vírus e germes?

As respostas sobre quais as marcas higiênicas a pandemia nos deixará talvez só venha depois da vacina. “É muito provável que ela traga uma sensação de proteção mais coletiva e uma percepção de alívio capaz de mudar o pensamento. Hoje em dia ainda está todo mundo achando que isso é para sempre”, diz Daniel Costa.

Assim como, em poucos meses e não sem motivo, nos tornamos mais vigilantes sobre a higiene e a saúde, à medida que a pandemia estiver sob controle a opinião dos três especialistas é que as medidas básicas prevalecerão, mas as preocupações devem se dissipar. “O ser humano tem como característica comum responder às demandas. A maior parte deve voltar a funcionar de maneira correspondente à circunstância, sem exageros mas também sem omissão”, diz Marcelo Hoexter.

Para o infectologista Álvaro Furtado, a maneira correta de utilizar água e sabão — e o álcool gel na ausência de uma pia próxima — devem ser o grande legado higiênico preservado no pós-pandemia, quando não forem mais necessárias medidas emergenciais como máscaras ou isolamento. E a preocupação sanitária adquirida, uma preparação para o futuro: “Estamos suscetíveis a um novo vírus pandêmico, e é importante saber da importância das máscaras, dos métodos de barreira, que podem voltar a ser utilizados, da mesma forma como utilizamos agora. Mas sem desespero”.

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