A história da autoajuda: do Antigo Egito aos best-sellers — Gama Revista
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Thiago Quadros / Wikicommons

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A autoajuda através dos séculos

Com exemplos pelo mundo desde o Antigo Egito, o gênero segue conquistando leitores e permanece no topo das listas de livros mais vendidos até hoje

Leonardo Neiva 28 de Março de 2021
Thiago Quadros / Wikicommons

A autoajuda através dos séculos

Com exemplos pelo mundo desde o Antigo Egito, o gênero segue conquistando leitores e permanece no topo das listas de livros mais vendidos até hoje

Leonardo Neiva 28 de Março de 2021

Em 2020, o livro mais vendido no Brasil não foi uma aventura de tirar o fôlego ou um mistérios dos mais complexos, nem uma saga de amor envolvendo vampiros e lobisomens nem um romance quente e ligeiramente problemático entre uma mulher comum e um bilionário com gostos controversos. Na verdade, segundo levantamento da Nielsen, o topo do ranking foi ocupado por “Do Mil ao Milhão: Sem Cortar o Cafezinho” (Companhia das Letras, 2018), no qual Thiago Nigro, criador da plataforma “O Primo Rico” dá conselhos de economia para quem quer alcançar a independência financeira.

Entre as primeiras posições, está também o quase clássico moderno “A Sutil Arte de Ligar o F*da-se” (Intrínseca, 2016), de Mark Manson, e “Mais Esperto que o Diabo” (Citadel, 2014), de Napoleon Hill — este último, apesar do sucesso atual, com mais de 80 anos de existência. Para quem está habituado a acompanhar as listas anuais de best-sellers, no entanto, não se trata de uma novidade. Ano após ano, no Brasil e em boa parte do mundo, a autoajuda tem dominado pódios de forma avassaladora.

Embora o termo que dá nome ao gênero tenha sido criado há aproximadamente 160 anos, suas raízes são bem mais profundas em nossa história. Responsável por popularizar a palavra, o próprio escocês Samuel Smiles (1812 – 1904) admitiu: “Não havia nada remotamente novo nesses conselhos, que eram quase tão velhos quanto os Provérbios de Salomão, e possivelmente tão familiares quanto.”

A vida é muito difícil. As pessoas se sentem sozinhas e estão passando por um momento complicado. A autoajuda parece uma forma barata de tentar ser uma pessoa melhor

Parece fato, de qualquer maneira, que a autoajuda dominou não só o campo literário, mas boa parte da nossa vida em sociedade, especialmente impulsionada pelas necessidades econômicas do capitalismo moderno. Essa obsessão pode ser demonstrada de forma prática, tomando como exemplo a infância da escritora americana Jessica Lamb-Shapiro, que conta sua jornada com o pai no livro “Promise Land: My Journey Through America’s Self-Help Culture” (Terra de promessas: minha jornada através da cultura de autoajuda americana).

Quando Shapiro o acompanhou à palestra de um autor de autoajuda, em 2003, seu pai já havia escrito mais de 40 livros do gênero — a grande maioria autopublicados —, apesar de nunca ter alcançado grande sucesso no ramo. “A autoajuda sempre foi parte da minha vida. Meu pai começou a escrever esses livros antes que eu nascesse. E uma coisa que percebi é que ela ultrapassa a barreira para outras áreas da cultura. Por exemplo, quando ia à escola, ele sempre me dizia que aquele era o primeiro dia do resto da minha vida. É autoajuda em sua essência. Então acho que é impossível fugir, todo mundo cresce com isso.”

Seus efeitos, no entanto, nem sempre são positivos, como a autora conta a Gama. “A morte da minha mãe foi muito difícil. A atitude positiva do meu pai e suas frases de efeito facilitaram, mas também trouxeram outros problemas, porque não nos deram espaço para viver intensamente o luto e todo o processo que estávamos enfrentando. Foi esse paradoxo que me fez escrever sobre o tema, porque senti na pele que a autoajuda pode ser boa, mas também perigosa ao mesmo tempo.”

Das pirâmides do Egito até a sua casa

Pode parecer uma tradição extremamente moderna sentar no conforto do sofá, sob o brilho de uma lâmpada fluorescente, com um exemplar em mãos que talvez lhe dê a resposta sobre quem, afinal, mexeu no seu queijo ou traga ensinamentos a respeito da sutil arte de ligar o f*da-se. A história, porém, nos mostra que, milênios atrás, as pessoas já faziam coisa parecida, até mesmo sobre a areia escaldante ou debaixo da sombra de uma pirâmide.

No Egito Antigo, havia um gênero conhecido como “Sebayt”, cuja expressão tem significado semelhante a “ensinamentos”. Escritas em papiro, as obras davam aos egípcios conselhos e lições sobre ética, para uma vida melhor e mais plena. Em muitas delas, aqueles considerados grandes na sociedade, como vizires ou os próprios faraós, transmitiam conhecimentos a seus sucessores.

“Se você for poderoso, atue de modo a ser respeitado em função do seu conhecimento, sua experiência e a serenidade da sua linguagem”, escreveu num dos Sebayt mais conhecidos o vizir Ptá-Hotep, cerca de 2.500 a.C, acrescentando ainda: “Não dê ordens além do que for necessário.” Pelo trecho, fica claro que nem as diferenças culturais nem os milhares de anos de distância trouxeram grandes mudanças a essas tradicionais pílulas da sabedoria humana.

A autoajuda, entre a Antiguidade e o Renascimento

Em seu livro, Jessica Lamb-Shapiro aponta que mesmo antigos pensadores, como Sêneca (4 a.C – 65 d.C.), Marco Aurélio (121d.C. – 180 d.C.) e Epiteto (50 d.C. – 135 d.C.), mesclavam em seus ditos anedotas e máximas para se viver bem. “Obras desses três ainda podem ser encontradas na seção de autoajuda da sua livraria local”, escreve.

“Durante minha pesquisa, percebi que exemplos anteriores de autoajuda eram basicamente a mesma coisa”, afirma a escritora em entrevista. “Até a Bíblia tem pensamentos muito similares, pois tenta nos ensinar pontos em que queremos melhorar como seres humanos. Então é difícil definir quando a autoajuda realmente começou, pois há sempre muitos precedentes.”

Durante a Idade Média e o Renascimento, surgiu um gênero literário bem específico, conhecido como “espelho de príncipes”. Fosse para instruir jovens governantes sobre os meandros e as armadilhas do poder ou fortalecer a imagem de um monarca como grande exemplo a ser seguido (e, em alguns casos, até a ser evitado), o objetivo era não só dar conselhos de política e diplomacia, mas também instruir sobre as melhores formas de levar a vida e lidar com seus semelhantes. E é bem possível que você já tenha ouvido falar ou mesmo lido a mais famosa obra do gênero: “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel (1469 – 1527), hoje considerado um verdadeiro manual sobre a arte de governar.

Nos séculos 17 e 18, livros de boa conduta, sobre etiqueta e como se portar de forma digna na alta sociedade, também alcançavam grande popularidade em países como França, Itália e Inglaterra e, segundo Jessica, podem ser considerados importantes precursores da literatura de autoajuda como a conhecemos atualmente.

A bíblia do liberalismo

Em sua obra “The Self-Help Compulsion: Searching for Advice in Modern Literature” (A compulsão por autoajuda: buscando conselhos na literatura moderna), a professora de literatura de Harvard Beth Blum faz um mergulho na história mais recente do gênero, atendo-se ao período que engloba do século 19 até hoje em dia. A Gama, ela conta que esse recorte foi feito especificamente por razões comerciais. “Meu estudo começa nesse período porque é quando a autoajuda começou a emergir como uma indústria editorial formidável, que não poderia ser ignorada nem mesmo por autores de literatura ‘séria’.”

O formato da autoajuda é ideal para carregar consigo a crença de que todos são capazes de alcançar seus objetivos e vencer na vida

Apesar das muitas obras que precederam sua criação, estudiosos consideram que a autoajuda como gênero nasceu por volta de 1859. Nesse ano, o biógrafo e editor escocês Samuel Smiles publicou “Self-Help: with Illustations of Character and Conduct” (Autoajuda: com ilustrações de caráter e conduta), a “bíblia do liberalismo vitoriano” e o primeiro livro a ostentar logo no título a expressão que viria a se tornar sinônimo de todo um gênero.

Além de ter exercido uma tremenda influência sobre escritores nas décadas seguintes, a obra foi um grande sucesso de vendas, inspirando milhares de políticos e intelectuais em todo o mundo. “A autoajuda mudou bastante desde o tempo de Smiles, mas algumas tendências se mantiveram constantes. No livro, eu estava interessada em traçar algumas e as respostas a elas que aparecem na escrita de grandes personalidades literárias, que vão desde Charles Dickens a Virginia Woolf”.

O complexo século 20

Blum ressalta que, embora o gênero em si tenha se mantido relevante através dos séculos, os focos e temáticas foram mudando de acordo com o contexto histórico, as necessidades da sociedade e os desafios de cada período. No final do século 19, por exemplo, manuais de autoajuda tinham um objetivo bem claro: inspirar os trabalhadores e aqueles de origem pobre a aprender mais por meio da leitura e da educação, para que não tivessem que depender do auxílio do governo.

Os anos 60 e 70, houve a ascensão da autoajuda ‘new age’, celebrando a autoexpressão e criatividade; nos 80 e 90, se enfatizou a competição e a sobrevivência no mundo das altas finanças

Já entre as décadas de 1920 e 1950, lembra a pesquisadora, devido à demanda por uma economia corporativa mais competitiva e em resposta à Grande Depressão, nos EUA, o foco mudou para questões ligadas à reputação, a entender o outro e aprender a ser mais agradável no ambiente de trabalho. “Os anos 60 e 70 presenciaram a ascensão da autoajuda ‘new age’, celebrando a autoexpressão e criatividade, enquanto nos 80 e 90 grande parte dos autores enfatizou a competição e a sobrevivência no mundo das altas finanças. Então essas diversas manifestações são expressão dos fluxos e perdas socioeconômicas de cada período.”

De acordo com a autora, isso acontece porque o gênero está intrinsecamente ligado às promessas do capitalismo, a principal delas sendo a da ascensão social. O formato da autoajuda, complementa Blum, é ideal para carregar consigo a crença de que todos são capazes de alcançar seus objetivos e vencer na vida, bastando para isso usar de engenhosidade, perseverança, persuasão, competição e uma pontinha estratégica de marketing pessoal.

O que pega hoje

Como diz a escritora Jessica Lamb-Shapiro, os livros de autoajuda hoje têm uma tendência bem clara: invariavelmente, o autor começa sua narrativa no fundo de um poço escuro e profundo. A exemplo do que narra Eckhart Tolle no início de seu best-seller “ O Poder do Agora” (Sextante, 1997): “Até meus 30 anos de idade, eu vivia num estado de ansiedade quase contínua intercalado com períodos de depressão suicida.”

“Quase todos começam com o autor na posição mais baixa em que poderia estar. E então ele descobre essa nova filosofia que o ajuda a virar rico e famoso. É preciso sempre iniciar lá em baixo e terminar lá em cima”, aponta Shapiro. A jornada do luxo ao lixo é o que atrai a maioria dos leitores, pois todos desejam o mesmo para suas vidas. Ler sobre alguém que conseguiu a façanha, num livro escrito de forma bastante pessoal, faz pensar que nós também podemos.

Por outro lado, uma tendência que Blum tem notado, a despeito da tradicional “rixa” entre os dois campos, é uma aproximação da autoajuda com a literatura de ficção tradicional, que vem sendo promovida por autores de uma vanguarda artística recente.

A autoajuda e a literatura têm sido historicamente companheiros de prateleira dúbios, mas hoje as duas indústrias parecem até encorajar essa mútua aproximação

“A autoajuda e a literatura têm sido historicamente companheiros de prateleira dúbios, mas hoje as duas indústrias parecem até encorajar essa mútua aproximação”, explica a professora. Essa vanguarda literária teria emulado a linguagem da autoajuda em trabalhos como “How Should a Person Be” (Como uma pessoa deveria ser), de Sheila Heti, e “Como Ficar Podre de Rico na Ásia Emergente” (Companhia das Letras, 2014), de Mohsin Hamid, entre vários outros.

Quanto à questão milenar de por que o gênero foi e segue sendo tão popular, as respostas são muitas, mas nenhuma definitiva. Pessoalmente, para Shapiro, hoje é impossível impedir que a pandemia afete sua opinião sobre o assunto.

“A vida é muito difícil. As pessoas se sentem sozinhas e estão passando por um momento complicado. A autoajuda parece uma forma barata de tentar ser uma pessoa melhor, em comparação com a terapia. Claro que não é assim que acontece. Você compra um livro, se sente melhor por um tempo e logo vai ter de comprar outros, porque a sensação se esvai muito rápido”, diz Shapiro. “Mas acho que esse necessidade vem de um lugar genuíno, de medo e dor profundos. Eu mesma comprei nesse último ano mais livros de autoajuda do que em toda a minha vida, simplesmente porque estou procurando algo que me faça sentir melhor. No momento, essa é a melhor teoria que tenho.”