A terapia por trás do hobby durante a pandemia — Gama Revista
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Fotos: Unsplash / Ilustração: Sariana Fernández

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Semana

Eu que fiz!

Crochê, tricô, cerâmica, macramê: trabalhos manuais viraram terapia (e renda extra) na pandemia. Nunca houve tantas possibilidades de aprender online

Betina Neves 03 de Outubro de 2021
Fotos: Unsplash / Ilustração: Sariana Fernández

Eu que fiz!

Crochê, tricô, cerâmica, macramê: trabalhos manuais viraram terapia (e renda extra) na pandemia. Nunca houve tantas possibilidades de aprender online

Betina Neves 03 de Outubro de 2021

Até março deste ano, a paulistana Carolina Cioffi, 41, nunca tinha mexido em um punhado de argila. Até que, por meio de uma amiga, começou a seguir algumas ceramistas, e veio a vontade de ter um hobby para preencher o tempo em casa. Quando ela resolveu comprar parte do material e ver algumas aulas no Youtube, o marido teve o diagnóstico de covid-19 positivo – em um período em que estavam morrendo 4 mil pessoas por dia – e precisou ser hospitalizado.

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“Comecei a manejar o barro chorando, tentando botar para fora aquela aflição que eu estava vivendo. E foi trazendo um alívio”, conta. Aí, separou um espaço em casa, comprou mais algumas ferramentas e se inscreveu em um curso online. “Primeiro, ficava tudo rachado, bem capenga. Mas fui evoluindo e conseguindo resultados melhores, e agora sinto que encontrei uma atividade que é minha, na qual eu posso caminhar no meu ritmo.” Seis meses se passaram e ela tem uma pequena coleção de peças, com as quais vai presentear amigos e familiares no próximo Natal.

Histórias como essa se proliferaram durante a pandemia. A imposição do isolamento social e a impossibilidade de sair de casa trouxe um novo boom para os trabalhos manuais e artísticos. Crochê, bordado, macramê, tricô, aquarela, colagem, tecelagem e costura povoaram páginas no Instagram, fizeram crescer e surgir canais do Youtube, protagonizaram cursos, oficinas e grupos online. Para além de passatempo (e possível ganha-pão), elas ganharam, mais do que nunca, um caráter terapêutico.

Instagram/@ottopintamatopeia/@vidafeitaamao

Há pelo menos uma década, aliás, já está havendo uma retomada dessas atividades antes consideradas de “vovó”, com novos artesãos, principalmente jovens e urbanos, resgatando técnicas e incrementando-as com olhares contemporâneos. Ultimamente, linhas, agulhas e pincéis vinham aparecendo nas redes sociais de personalidades diversas, do cantor Seu Jorge a atriz Nathalia Dill; de Fernanda Lima ao atleta britânico Tom Daley, que foi fotografado tricotando na arquibancada nos Jogos Olímpicos de Tóquio. O canto Otto, por exemplo, compartilhou seu processo com a pintura em perfil em que ele mostra e vende seus quadros – “a produção cresce e a terapia ganha rigor e vigor. (…) Todo dia cultivo um pouco a mente”, disse ele em uma postagem.

A apresentadora Fernanda Lima se jogou no tricô, técnica que aprendeu na adolescência, mas que não desenvolveu por falta de tempo. Na pandemia, no entanto, passou seis meses “no mato” durante uma temporada muito fria. “Minha sogra ficava fazendo roupinhas para minha bebê e eu comecei a fazer cachecol, pantura e colete para geral. Ganhei uma agulha de bambu e viciei”, ela conta a Gama. O marido Rodrigo Hilbert também entrou na onda e produziu algumas peças. “Saí ensinando para quem estava em casa, até meus meninos ensinei. É gostoso demais e já espero o próximo inverno para tentar fazer um blusão de lã e toucas.”

“Usar as mãos como elemento de construção e elaboração de algo pode ser muito curativo. Você vai imprimindo seu mundo interno ali, e ver a peça pronta pode trazer muita satisfação”, diz Vera M. Ferretti, arteterapeuta, psicóloga clínica e professora do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. “Além disso, a pandemia trouxe uma sensação de impotência. E esses trabalhos trazem aconchego conosco mesmo, algo que a gente pode controlar até certo ponto.”

Atividades manuais são uma metáfora para a vida: ensinam concentração, desafio e a lidar com a frustração de não conseguir algo de primeira

Ela lembra que o processo envolvido em atividades manuais metaforiza a vida: ensina a se concentrar, a se desafiar, a lidar com a frustração de não conseguir algo de primeira. A aceitar a irregularidade e a resistência de cada material, a persistir diante dos erros, a desmanchar e refazer se for necessário.

“A gente aprende muito com o tempo da cerâmica, porque as coisas demoram para ficar prontas. Além disso, a gente nunca sabe exatamente como a peça vai sair, então tem que lidar com essa imprevisibilidade”, conta Cynthia Sarmento, dona do ateliê e escola de cerâmica Vida Feita a Mão, em Curitiba (PR). Com o cancelamento das aulas presenciais, ela organizou workshops e lançou a própria plataforma de cursos online, que alcançou quase 5 mil alunos (um deles a Carol Cioffi, do início desta reportagem) desde o início da pandemia. “Para isso, criamos um diretório com mais de 150 ateliês pelo Brasil onde as pessoas podem levar as peças para serem ‘queimadas’, processo de requer fornos especiais e que fazia muita gente acreditar que não era possível ensinar cerâmica online.”

Nunca foi tão acessível aprender

A multiplicidade de plataformas e oportunidades para descobrir atividades manuais online nunca foi tão grande. No último ano e meio, costureiros, bordadeiros, crocheteiros e outros artesãos e artistas se embrenharam pelo digital e romperam barreiras geográficas para alcançar pessoas de outros estados e até brasileiros que moram em outros países.

Andréa Orue, da marca de bordado Primavera de 83, por exemplo, fechou seu espaço em São Paulo e lançou dois cursos online, um deles logo no início da pandemia. O resultado de vendas superou muito as expectativas, e neste ano ela ainda foi convidada para gravar um curso para a Domestika, plataforma espanhola que chegou ao Brasil há pouco mais de dois anos – ali há cursos a partir de R$ 39,90 que ensinam de marcenaria a “food styling”, joalheria e tapeçaria.

“Parece uma contradição, mas a ideia é oferecer cursos online para que as pessoas possam passar mais tempo offline depois”, diz ela. Para ela, em uma sociedade viciada em produtividade, se envolver com um trabalho artístico abre espaço para mais poesia no dia a dia. “Não é um curso que você faz para colocar no currículo, é algo para você, para o seu bem-estar.”

Senti que o bordado me tirava dos ciclos de pensamentos negativos que me rondavam. Esse estado meditativo me ajudou muito

Uma das pessoas que aprendeu com ela é Carolina Boschese, 31, de Aracaju (SE). A engenheira florestal vivia um momento delicado: ela estava trocando de psicólogo e diminuindo a medicação contra ansiedade e crises de pânico das quais já sofria quando a pandemia começou. “Senti que o bordado me tirava dos ciclos de pensamentos negativos que me rondavam. Esse estado meditativo me ajudou muito”, diz ela, que hoje cultiva um perfil com suas criações.

“Quando a gente conclui uma peça, seja um caderno, uma manta ou um quadro, é como se ele carregasse um pedaço nosso. Nos reconhecemos como autores, e os outros nos reconhecem também. Fazer algo com as mãos é a possibilidade de se ver e de se descobrir de muitas formas”, diz o paulistano Bruno Andreoni, organizador do Revolução Artesanal.

Desde 2017, o projeto se pretende a produzir conteúdo sobre o fazer artesanal no Brasil e organizar festivais com novos e velhos artesãos – o próximo, em versão híbrida, vai acontecer em outubro, com oficinas de atividades como cestaria, “paper cutting”, xilografia e bordado em fotografia. “Ainda há muito trabalho a ser feito para promover uma maior valorização desses saberes”, diz ele.

Fazer algo com as mãos é a possibilidade de se ver e de se descobrir de muitas formas

Em tempos em que o excesso de telas pode estar causando uma crise na criatividade, o resgate dos trabalhos manuais pode nos reconectar com a nossa capacidade de criação. “Muita gente chega até mim dizendo que não sabe fazer nada manual e que tudo o que faz fica feio. É muito interessante observá-las se desenvolvendo e mudando essa visão”, conta a ceramista Cynthia Sarmento.

Quanto mais gente vai aderindo ao movimento – e postando fotos e vídeos nas redes sociais –, a coisa vai expandindo, e os “professores” vão se tornando influenciadores. É o caso de Marcelo Nunes, de Jundiaí (SP), que soma 364 mil seguidores no Instagram e cujo canal no Youtube saltou de 250 mil inscritos no início da pandemia para os atuais 720 mil. “Nesse período, fiz uma série de vídeos para aprender crochê do zero, desde o primeiro ponto. Me dá uma satisfação enorme receber mensagens diariamente das pessoas contando como o crochê mudou a vida delas e que meus vídeos se tornaram um refúgio.”

Arquivo Pessoal/Instagram/@borda.carol.borda/@casulodalorena

Aceita encomenda?

É unânime entre os profissionais consultados o aumento da procura de pessoas em busca de uma nova atividade profissional ou complemento de renda, ou porque perderam o emprego durante a pandemia, ou porque estão repensando as atuais ocupações.

A goiana Fernanda Souza, por exemplo, que vive com o marido na Califórnia, nos EUA, e tem uma empresa de limpeza por lá, foi descobrindo as atividades aos poucos durante a pandemia: primeiro, o macramê, depois, o bordado, e, por último, a cerâmica. Agora, já criou um perfil para a marca própria e está montando um e-commerce. “Fiquei encantada pelos trabalhos manuais, me descobri neles. E aí comecei a encará-los como uma nova possibilidade de profissão.”

Como ela, falaram a Gama Jussara Rocha, de Sorocaba (SP), que começou a vender suas peças de macramê, a catarinense Raquel Baade, que faz sob encomenda bichinhos de crochê (os chamados “amigurumi”), e a estudante capixaba Lorena Valiate, que trabalha com bordados em folhas – todas empreitadas pandêmicas.

A ceramista Cynthia Sarmento lembra, porém, que apesar de ser sedutora a ideia de viver dessas artes, criar um negócio a partir disso tem todo um lado burocrático de gestão, divulgação e logística. “A parte de produção é gostosa e criativa sim, mas tem muito mais trabalho envolvido para de fato conseguir tirar o sustento.”