O que significa o vício em sexo e pornografia? — Gama Revista
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Descubra o que significa o vício em sexo e pornografia

O aumento de acessos durante a pandemia levanta a discussão: quando a busca de prazer sexual pela internet vira compulsão?

Leonardo Neiva 25 de Outubro de 2020

Descubra o que significa o vício em sexo e pornografia

Leonardo Neiva 25 de Outubro de 2020

O aumento de acessos durante a pandemia levanta a discussão: quando a busca de prazer sexual pela internet vira compulsão?

Em 2016 o ator Terry Crews, conhecido por séries como “Todo Mundo Odeia o Chris” e “Brooklyn Nine-Nine”, causou burburinho na internet ao revelar, numa série de vídeos postados no Facebook, ter uma compulsão por pornografia. “A pornografia atrapalhou minha vída de várias maneiras. Se o dia virou noite e você continua assistindo, é provável que tenha um problema”, disse sobre o mal que o acompanhou desde os 12 anos de idade e quase o levou a ser abandonado pela esposa.

Desde então, outros famosos como o comediante Chris Rock e o ator Orlando Bloom já se pronunciaram sobre como a pornografia em excesso pode atrapalhar a vida sexual, social e profissional. Embora não seja considerado um vício como as drogas ou o jogo, a compulsão por sexo e pornografia hoje é reconhecida como distúrbio psicológico pela Organização Mundial da Saúde.

Agora, com as pessoas passando a ficar mais tempo em casa devido à pandemia, sites pornográficos têm registrado um aumento no número de acessos, gerando um temor de que o número de compulsivos também cresça.

O Pornhub, um dos maiores sites pornô da internet, que recebe 2,85 trilhões de visitas todo mês, viu os acessos saltarem em março, com um pico de 11,6% na comparação com um dia normal. Esse aumento coincide com o início da quarentena em vários países — no dia 26, cerca de 1,7 bilhão de pessoas já estavam em isolamento.

Com as pessoas passando a ficar mais tempo em casa devido à pandemia, sites pornográficos têm registrado um aumento no número de acessos

Pode ter feito diferença também para esse resultado a estratégia da empresa de liberar conteúdo premium de graça por 30 dias. A intenção, de acordo com o comunicado oficial, era “reforçar a importância de ficar em casa”.

No dia 10 de julho, o Pornhub chegou a ter um tráfego 20,5% acima do normal. O Brasil, na época epicentro da pandemia no mundo, foi também um dos recordistas no salto em número de acessos ao site pornô. Em 13 de julho, 39,2% mais brasileiros do que o normal navegaram pelas páginas proibidas para menores, segundo informações do Pornhub Insight, o serviço de dados oficial da plataforma.

Medir o quanto as pessoas estão realmente vendo mais conteúdo pornográfico, porém, não é tarefa fácil, até porque, ao contrário do Pornhub, a maioria dos sites não libera o acesso a esses dados. Mas há sim outros indícios de aumento. Logo no início de março, quando a pandemia explodia no Brasil, dobrou o número diário de assinaturas pagas no site Brasileirinhas, maior produtora de vídeos eróticos nacional.

E, ao que parece, nem as horas de trabalho em home office têm sido respeitadas. Ao menos é o que diz a empresa de cibersegurança Netskope, que relatou um aumento de 600% nos acessos a sites pornô entre março e junho a partir de laptops corporativos dentro do território norte-americano.

Esses dados ainda deixam uma dúvida importante: eles de fato apontam para um aumento no número de compulsivos por pornografia em nível mundial? Segundo o psiquiatra Cirilo Tissot, a questão é complexa, já que a faca da pandemia pode cortar para os dois lados.

Enquanto os compulsivos que passam por tratamento podem até ter se beneficiado do marasmo trazido pela quarentena, aqueles que ainda não buscaram ajuda em sua maioria devem sentir que o momento atual é um convite para viver suas compulsões com ainda mais intensidade.

“A pandemia trouxe uma noção de que hoje é igual a amanhã, que é igual a daqui a uma semana ou um mês”, explica o psiquiatra, que é diretor da clínica de tratamento para compulsões e vícios Greenwood, em Itapecerica da Serra. “Não significa que a pessoa em tratamento não fique angustiada ou triste, mas a ansiedade desaparece, porque ela foi ensinada a compreender o valor da rotina e agora consegue prever o que vai acontecer nos próximos dias.”

O compulsivo sem acompanhamento, por outro lado, ainda não entende que focar no dia a dia é uma forma de lutar contra o problema. Portanto, encontra dificuldade em lidar com as incertezas do futuro e com o tédio, que o tornam mais infeliz e ansioso, levando-o a procurar um bálsamo, uma forma de compensar o que está sentindo, seja no sexo seja em sites pornô.

A diferença entre essas duas compulsões está no objeto do desejo, diz Tissot. O compulsivo por sexo procura levar outra pessoa para a cama, uma busca que pode afetá-lo onde quer que esteja. Já quem sofre de obsessão por pornografia, mesmo ao se encontrar fisicamente com outra pessoa, procura reavivar a experiência do pornô e da masturbação. “A outra pessoa vira quase um objeto, uma boneca inflável”, destaca o psiquiatra.

E é vício?

Em 2018, a Organização Mundial da Saúde incluiu o comportamento sexual compulsivo em sua Classificação Internacional de Doenças. Descrito no documento como um “padrão persistente de fracassos em controlar impulsos sexuais”, resultando em um “comportamento sexual repetitivo”, o distúrbio não chegou a ser colocada no mesmo patamar de vícios como álcool, drogas ou jogos de azar.

O psicólogo americano David Ley, autor do livro “The Myth of Sex Addiction” (o mito do vício em sexo, em tradução livre), é um dos principais céticos quanto ao uso do termo para se referir ao comportamento sexual repetitivo. Ele argumenta que até hoje não há evidências científicas suficientes para comprovar que existam viciados em sexo ou sequer que a compulsão sexual seja algo além de uma justificativa oportuna para a prática de atos condenáveis — utilizada inclusive para tentar limpar a barra de pivôs de grandes escândalos sexuais como Kevin Spacey e Harvey Weinstein.

Eu e muitos outros estudiosos acreditamos que chamar comportamentos sexuais de compulsivos é uma imprecisão e diminui o impacto de compulsões reais

“Eu e muitos outros estudiosos acreditamos que chamar comportamentos sexuais de compulsivos é uma imprecisão e diminui o impacto de compulsões reais. Existem pessoas que dizem assistir a pornografia compulsivamente, mas que só o fazem uma vez por mês. Pessoas realmente compulsivas sofrem com isso o dia todo, todos os dias. Então, o uso da palavra compulsão aqui é uma desculpa para um desejo ao qual uma pessoa tem dificuldade de resistir.”

Ele explica que num vício real, como o alcoolismo, ocorre um processo neurológico em que o cérebro vira uma chave, deixando de querer a substância e passando a necessitar dela para funcionar. Assim, quando em abstinência, o indivíduo pode até ter convulsões e morrer, uma diferença fundamental na comparação com o desejo sexual. “Nunca ninguém na história do mundo bateu as botas por deixar de gozar ou por não conseguir fazer sexo”.

O mecanismo psicológico de quem busca compulsivamente a satisfação sexual, porém, pode ser muito semelhante ao de outros vícios reconhecidos, diz a psicóloga e pesquisadora Elaine Di Sarno. “A intensidade e a frequência em muitos casos também vão aumentando com o tempo. Há situações em que a pessoa sente que precisa aliviar seu desejo para resistir à ansiedade, e ela pode inclusive desenvolver rituais para buscar formas de satisfazer essa necessidade.”

O pornô é pop

Antes relegada às revistas impressas, a algumas salinhas de cinema e às seções reservadas nas locadoras, a pornografia, por assim dizer, ganhou o mundo com o avanço da internet. Não só a produção teve um grande aumento em todo o globo, mas também sua variedade, passando a atender diferentes nichos e preferências eróticas.

“As patologias dependem de contextos históricos, mudando após algumas décadas”, afirma o psicoterapeuta Oswaldo Rodrigues, diretor do Instituto Paulista de Sexualidade. “Com a internet, uma nova forma de buscar a satisfação sexual surgiu, se firmou e produziu exageros, com os prejuízos pessoais e sociais que caracterizam esses transtornos”.

Com a internet, uma nova forma de buscar a satisfação sexual surgiu, se firmou e produziu exageros

David Ley lembra, no entanto, que o acesso à pornografia não é necessariamente ruim. O problema é o uso que algumas pessoas dão a ele. O psicólogo, que também já publicou um manual sobre como assistir a um pornô de forma responsável (“Ethical Porn for Dicks: A Man’s Guide to Responsible Viewing Pleasure”, não lançado no Brasil), encoraja as pessoas a pensar sobre como enxergam sua sexualidade e seus desejos e tentar lidar com esses conflitos morais.

“Você tem vergonha dos seus desejos, teme que sejam expostos ao público?”, questiona Ley, que é crítico a terapias que buscam suprimir a sexualidade. “Geralmente, isso vem de uma hipocrisia social e religiosa, e de um estigma em relação ao sexo. Quanto mais as pessoas aceitarem a si mesmas, à sua sexualidade e desenvolverem autocompaixão, mais autocontrole vão ter, passarão a sentir menos vergonha e estarão menos propensas a se sentir ‘viciadas’.”

Será que tenho uma compulsão?

Se você está lendo este texto e começou a se perguntar sobre seu próprio comportamento sexual, pode ficar relativamente tranquilo: é bem provável que não tenha com o que se preocupar. Fazer sexo com frequência ou assistir a muita pornografia não te torna necessariamente um viciado ou compulsivo.

Para receber um diagnóstico clínico de compulsão, é preciso que haja uma conjunção de dois fatores principais: dificuldade de resistir a impulsos sexuais repetitivos e frequentes durante um período igual ou maior que seis meses e um desgaste na vida pessoal e profissional devido a esse comportamento.

Fazer sexo com frequência ou assistir a muita pornografia não te torna necessariamente um viciado ou compulsivo

É um quadro como esse que acende as luzes de alarme no Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo, da Faculdade de Medicina da USP. O fundador e coordenador da instituição, Marco Scanavino, destaca, no entanto, que, ainda que preencha esses requisitos, não dá para dizer com certeza que uma pessoa é viciada em sexo.

“Apesar de muitos pacientes precisarem buscar cada vez mais o ato sexual ou a pornografia para se sentir saciados e também demonstrarem sintomas físicos e mentais quando deixam de fazer isso, o vício ainda não é confirmado pela ciência”, conta Scanavino, que atualmente desenvolve um estudo para descobrir o que mudou no comportamento sexual dos brasileiros durantes os meses de pandemia.

Guerra do sexo

Ao contrário do que muitos pensam, não é só o homem que desenvolve comportamento compulsivo em relação ao sexo e à pornografia. Um estudo feito pelas universidades americanas de Connecticut, Yale e Califórnia apontou que, apesar de mulheres assistirem a menos pornografia que homens — enquanto 16% delas consomem ao menos uma vez por mês, a porcentagem é de 47% para o gênero oposto — , a chance de desenvolver uma compulsão é igual para ambos os sexos entre aqueles que acessam esse conteúdo.

A psicóloga Elaine Di Sarno também aponta que os dois gêneros podem desenvolver uma compulsão pelo ato sexual, com a diferença que o homem geralmente busca o sexo com pouco envolvimento afetivo, enquanto boa parte das mulheres pode preferir transar continuamente com o mesmo parceiro.

No ambulatório da USP, porém, a predominância masculina ainda é grande. De acordo com Scanavino, hoje, a cada dez pacientes que buscam a instituição, em média nove são homens.

A quem posso recorrer

Alexander Portnoy, um dos “heróis” mais famosos saídos da imaginação do escritor norte-americano Philip Roth, era também um poço de compulsões e culpa. “Nas tardes de sábado, no cinema, eu me levantava, dizendo aos amigos que ia comprar balas — e acabava numa poltrona remota, no balcão, vertendo minha semente dentro de um embrulho vazio de barra de chocolate”, conta o protagonista de “O Complexo Portnoy” sobre a própria adolescência. Segue-se então um relato que envolve fugas de salas de aula, de um piquenique em família e até de um curso preparatório para seu bar mitzvah — tudo para poder se masturbar em paz.

Apesar de estar em fase de descoberta sexual, o comportamento do personagem, segundo especialistas, já pode caracterizar abuso e compulsão e serve para ilustrar uma das principais dificuldades enfrentadas por quem convive com o problema: conseguir se segurar ao lado de outras pessoas e em lugares públicos.

O indivíduo começa a perder compromissos por ficar tempo demais no site pornô. Ele perde a noção de limite e não consegue parar

“O indivíduo começa a perder compromissos por ficar tempo demais no site pornô. De repente, passa a se masturbar enquanto dirige o carro ou em qualquer lugar a que vai. Ele perde a noção de limite e não consegue parar”, diz o psiquiatra Cirilo Tissot.

Entre os tratamentos disponíveis, de acordo com Scanavino, estão a terapia cognitiva comportamental, que busca aumentar o controle sobre os pensamentos disfuncionais, e a terapia psicodinâmica, que trata conflitos internos que podem estar gerando desequilíbrio no comportamento sexual, como traumas e abusos. Se houver riscos à saúde, também podem ser receitados medicamentos para regular o comportamento sexual.

Uma das principais dificuldades para tratar quem sofre desse mal, dizem os especialistas, é que aqueles que apresentam comportamento compulsivo têm vergonha de expô-lo. Em vez disso, buscam ao máximo esconder os problemas pelos quais estão passando.

A procura por ajuda só acontece mesmo em uma situação desesperadora, diz o psicoterapeuta Oswaldo Rodrigues. A pessoa pode demorar em média até sete anos para buscar auxílio médico, período muito maior do que ocorre em vícios como o álcool ou as drogas. “Um indivíduo a ponto de perder algo importante em sua vida, como o emprego ou o casamento… esse é o que vai buscar a psicoterapia”, diz Rodrigues.