Fábio Porchat: 'No Brasil de hoje, a gente ri pra não morrer' — Gama Revista
Tá rindo de quê?
Icone para abrir
Gama Revista / Thiago Quadros

1

Conversas

Fábio Porchat: 'No Brasil de hoje, a gente ri pra não morrer'

Para ator, roteirista e apresentador, na situação em que o país vive hoje, com pandemia e negacionismo, o humor tem missão política e humanitária

Isabelle Moreira Lima 25 de Julho de 2021
Gama Revista / Thiago Quadros

Fábio Porchat: ‘No Brasil de hoje, a gente ri pra não morrer’

Para ator, roteirista e apresentador, na situação em que o país vive hoje, com pandemia e negacionismo, o humor tem missão política e humanitária

Isabelle Moreira Lima 25 de Julho de 2021

Fazer piada no Brasil está chato demais, mas virou quase uma missão, um dever. Afinal, em tempos de pandemia, fome, negacionismo, violência política e real, o humor é o que sobra para dar um pouco de sentido à vida. A reflexão é de Fábio Porchat, ator, roteirista, diretor, produtor e apresentador, em entrevista a Gama. Para ele, politicamente, a missão é ridicularizar as ideias que sejam nefastas para a sociedade. “Quanto mais ridicularizarmos ideias como a vacina instala chip nas pessoas, a Terra é plana, e há uma ameaça comunista tentando transformar o Brasil num país de pedófilos, mais inibimos esse tipo de pensamento”, afirma.

Notadamente workaholic, ele está no ar com a segunda temporada do “Que História É Essa, Porchat?”, que reúne histórias engraçadas vividas por celebridades e convidados, e com “Papo de Segunda”, em que comanda uma conversa entre Emicida, João Vicente de Castro e Francisco Bosco, ambos no GNT. Lançou em 2020 a segunda temporada da série “Homens?”, do Canal Comedy Central e disponível na Amazon Prime, em que zoa o topo da cadeia sexual e de gênero, o homem cis hétero (no caso, o protagonista ainda é branco). Além disso, segue no Porta dos Fundos, grupo de comédia que cofundou em 2012 e que desde então lança vídeos semanalmente. Porchat descobriu sua vocação para o riso no “Programa do Jô” em 2002, quando visitou com um grupo da faculdade de administração e pediu para ler um texto que ele tinha escrito baseado na série “Os Normais” (2001-2003). O resto, a partir dali, é história.

Porchat acredita que o humor passa por uma fase de transição. Ao mesmo tempo que entendeu que é preciso se renovar e parar de usar do racismo, da LGBTfobia e do sexismo, não pode ser baseado apenas em lição de moral, o que ele chama de lacromédia. Está mais chato contar piada porque não há espaço para o erro com tantos fiscais prontos para apontar o dedo sobre o que é certo e o que é errado. Apesar disso, deve seguir firme em seu propósito de tornar a vida mais interessante, seja só pela risada profunda e irracional da piada de pum, seja com algum tipo de reflexão que gruda na cabeça por dias e que pode, sim, ter efeito na sociedade.

“Piadas racistas, homofóbicas, sexistas não devem ter espaço — qualquer coisa que incite o ódio ou a violência. Tem coisa que não é erro, é crime. É por isso que a sala de roteiro tem que ser diversa”, diz ele, na entrevista que você lê abaixo.

O humor é tão potente e forte que ridicularizar toca o ser humano num lugar onde ele se irrita

  • G |Como equilibrar-se entre a necessidade de transgressão (que está na natureza do humor) e o risco de cancelamento? Ficou mais difícil fazer comédia hoje?

    Fábio Porchat |

    Não é mais difícil — difícil é na ditadura –, mas está mais chato. Não pode errar. E os ditados dizem que errar é humano e que é errando que se aprende, mas o ser humano não está mais autorizado a cometer qualquer erro. Só que do mesmo lugar que sai a piada boa sai a piada ruim também e só descobrimos que ela é ruim quando a contamos. É muito ruim para quem está começando. Vejo textos de quando estava começando e tem coisas horríveis. Tem coisa que me levaria preso se falasse hoje. Vivemos uma corrida para apontar dedos, as pessoas querem lacrar, ser os fiscais da piada e do olhar alheio. Daqui a 50 anos, quando olharmos para trás, vamos entender que esse é um período de transição, de evolução da sociedade, do pensamento e do modo de fazer piada. Agora, claro, há certas piadas, velhas, de um humor dos anos 1970, que não cabem mais. Piadas racistas, homofóbicas, sexistas, que não devem ter espaço — qualquer coisa que incite o ódio ou a violência. Tem coisa que não é erro, é crime. Um nazista não errou, ele cometeu um crime. O preto está cansado de ser chamado de criolo, o gay está cansado de ser chamado de bicha, a mulher não aguenta mais ser a burra. É por isso que a sala de roteiro tem que ser diversa. Quando li o roteiro do “Sudestino” [esquete do Porta dos Fundos], escrito por um nordestino, achei exagerado. Mas depois fiquei pensando e, hum, é assim mesmo.

  • G |Na sua série “Homens?” (2019) você escolheu fazer piada com o homem branco hétero. Que graça ele tem?

    FP |

    Se você olhar com atenção para mim vai achar dez coisas ridículas rapidinho. Quando fiz a série, as pessoas da produção falaram: “ai, Fábio, pelo amor de Deus, não pode ficar falando essas coisas”. Eu falei: “mas a gente está rindo exatamente disso”. “Não, mas as pessoas não vão entender, melhor não.” As pessoas ficaram com medo e preocupadas, mas é uma série que ri do homem hétero. Esses homens são perdedores, eles não se dão bem, estão tomando porrada o tempo todo, mas mesmo assim as pessoas ficaram com muito medo. Ninguém quer se arriscar. Arriscar é muito chato, pode dar processo.

Gama Revista / Thiago Quadros

  • G |Para ser engraçado hoje tem que incomodar?

    Fábio Porchat |

    Não, fazer piada de pum também é bom, também é engraçado. Tem esse humor que faz a gente refletir, mas tem o humor bobeira também, imediato. Ele também vale.

  • G |A impressão que se tem hoje é que o humor, que foi parte fundamental da história da televisão no Brasil, hoje está mais presente e vivo nas redes sociais, nos Stories, no Youtube. O que aconteceu com o humor da TV aberta?

    FP |

    Existe um receio com o que pode e o que não pode ser dito. Há uma crise mundial do humor. Se eu pedir para você agora me citar dez séries incríveis, talvez você não me diga nenhuma de humor, talvez você diga “Fleabag” [série inglesa da BBC escrita e estrelada por Phoebe Waller-Bridge]. O resto é tudo drama, onde se pode falar o que se quer. Na comédia as pessoas ficam mais sensíveis. O humor é tão potente e forte que ridicularizar toca o ser humano num lugar onde ele se irrita. As pessoas estão melindradas. Muita gente quer ser fiscal da piada para lacrar, para ganhar seguidor. Em qualquer diálogo que a gente tenha, dá para problematizar tudo. Uma pessoa fala: “ai, que doidera”. “Por que doideira? Esquizofrenia é uma doença muito importante, as pessoas sofrem muito por conta disso. Não pode mais falar ‘que doidera’, ‘que loucura’, não pode falar isso.” O que eu acho é que a gente tem que começar a levar menos a sério a exceção, mais a regra. Faço uma piada e, de mil pessoas, 900 falam alguma coisa, vale prestar atenção. Agora, se de mil comentários, dez estão falando mal, a piada foi bem, deu certo, ponto final.

A risada é o que nos sobra, é a única coisa que temos, a que podemos nos agarrar

  • G |Como a multiplicação de plataformas impactou na forma de se fazer humor? Ele ficou mais rápido? Mais nonsense? Há mais espaço para experimentação?

    FP |

    É ótimo ter mais espaço para fazer piada e para criar séries, o que não dá é para as emissoras e plataformas terem a cabeça fechada. Já vi caso de plataforma falar: “ah, não, esse tipo de humor é muito específico”. E a gente fala: “gente, mas é streaming, aqui é o lugar para ousar”. Eu vejo de vez em quando plataformas com cabeça de TV aberta, e isso dá uma certa tristeza. Entendo que os criadores de conteúdo viraram consumidores de conteúdos mais diversos e isso modifica o criador da piada também. A TV aberta tem um certo medo, apesar de ter a sua razão porque ela chega em muitos lugares e rincões do país que não têm acesso a nada, só àquele canal de TV aberta. E entendo que o humor da TV aberta, em alguns horários, tem que ser um pouco mais popular. Agora, levou-se o popular como se fosse ruim, e não é isso. “A Grande Família”, por exemplo, era um humor muito popular e era muito engraçado. Ao mesmo tempo que tem um humor popular que é horrível. O “Zorra Total” lá atrás, quando eu escrevi e por isso falo com propriedade, era bobo, preconceituoso e chato. Como criadores, temos que tentar evoluir. Como sintoma, nasceu a lacromédia, que é você querer lacrar antes mesmo de fazer rir, quando na verdade a ordem tem que ser outra. O objetivo é fazer rir e se conseguir dar uma opinião legal, maravilha. A lacromédia assusta e volta e meia eu mesmo caio nisso — é uma armadilha que se instalou. Começou a ficar muito forte e inclusive na televisão; alguns programas na Globo, por exemplo, não tinham graça, só a lacração.

Gama Revista / Thiago Quadros

  • G |Na pandemia, com a morte do Paulo Gustavo, “rir é um ato de resistência” virou um grito de guerra. Mas como é possível resistir a isso que estamos vivendo e ainda rir?

    FP |

    A risada é o que nos sobra, é a única coisa que temos, a que podemos nos agarrar. Rir ainda é de graça e, no fim das contas, amanhã vai ser um novo dia — é um pouco isso que o brasileiro tem como mantra. É tão dura a vida no Brasil, a pandemia talvez tenha aberto os olhos de parte da sociedade para isso, espero. Rir é resistência porque, se não tem o riso, não tem mais sentido viver, se a vida não tem graça, então, para que estar aqui? A pandemia é a cereja do bolo do demônio. Já vivemos num país tão desigual, enquanto estamos falando aqui quantas pessoas foram estuparadas? Mortas? Quantos negros foram assassinados? E trans? A pandemia vem para esticar essa corda, mas a vida já era horrível antes. Não é possível viver em um país em que 15 milhões de pessoas não têm o que comer. Mas as pessoas riem, de alguma forma, entre elas, com algum fato, com a sua família, com o que assistem em uma televisão, com o Paulo Gustavo fazendo as palhaçadas dele, as pessoas riem. E isso vale muito, essa é a forma de resistência, rir para não chorar, já diz o dito. E, no Brasil de hoje, a gente ri para não morrer.

  • G |O que o humor vai levar da pandemia?

    FP |

    Ela antecipou a evolução tecnológica, com as piadas rápidas de TikTok, com os stickers, que acabaram por substituir a piada mesmo. Nunca mais ouvi alguém contar uma piada de papagaio, do “alemão, o português e o argentino entram no bar”, de trocadilho. A gente recebe os stickers e é tão bobo que a gente ri, que era a função daquelas piadas lá atrás. Esse tipo de piada tecnológica se fortaleceu na pandemia e a parte técnica também. Ter ficando em casa sendo obrigado a gravar com seu próprio celular, nas suas redes sociais, isso agilizou o processo.

Quando vejo o Bolsonaro falar eu dou risada. É tão inacreditável, tosco e maluco que dá vontade de rir. Mas é o rir para não chorar

  • G |Fazer as pessoas rirem pressupõe compartilhar uma certa visão de mundo. No entanto, vivemos num momento de negacionismo, de gente que parece viver num universo paralelo. É possível fazer essas pessoas rirem? Como resgatar o tio do zap?

    FP |

    Tem uma frase muito usada ultimamente, que é “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Essa frase acho que nunca fez tanto sentido como hoje porque é preciso trazer essas pessoas de volta para a realidade, para a verdade. Antes de querer ir atrás dessa gente para fazer elas rirem, precisamos correr atrás dessa gente para eles entenderem que a terra não é plana, que vacina não instala um chip em ninguém, que não tem ameaça comunista tentando transformar o Brasil num país de pedófilos. E isso é a espiral da verdade, conseguirmos ceifar essa gente que está na liderança desse caminho [do negacionismo] e trazer as pessoas para o mundo real. Não temos que nos adaptar ao tio negacionista que acha que o corona é uma invenção. Temos que fazer piada, ridicularizar, porque se tem uma coisa que o ser humano não gosta é de ser ridicularizado. Aí elas vão se dar conta: é o rei se dando conta de que está nu. Quanto mais ridicularizarmos, mais inibimos esse tipo de pensamento.

Gama Revista / Thiago Quadros

  • G |Você se revelou um ótimo entrevistador e apresentador de TV, tem mil projetos paralelos. O que você gosta mais de fazer hoje? De conversar ou de fazer rir?

    FP |

    Fazer rir conversando. Dá para juntar os dois. Quando eu fui no “Programa do Jô”, aquele dia icônico, o que eu descobri não foi que eu queria ser ator, mas que queria fazer os outros darem risada. Tenho isso em mim Me sinto bem nesse lugar, e não só egoicamente. Se estou ali em cima do palco, quero que gostem de mim, riam de mim e me aplaudam. Mas isso também faz bem às pessoas, e muita gente fala: “eu esqueci meus problemas”, “eu curei uma depressão”, “eu estava no hospital, a única coisa que eu fazia era dar risada dos seus vídeos”. Muito comediante ouve isso, Paulo Gustavo falou muito disso. Eu gosto de fazer rir, onde quer que eu esteja, contando histórias, ouvindo histórias, entrevistando as pessoas. Acho que dá para, de um jeito leve, falar de assuntos difíceis e pesados — racismo, violência.

  • G |Hoje você está rindo do quê?

    FP |

    Tem os risos tristes que a gente dá, né? Toda vez que eu vejo o Bolsonaro falar eu dou risada, porque é tão inacreditável, é tão tosco, tão maluco que dá vontade de rir, mesmo. Mas é o rir para não chorar. Quando eu vejo o Vasco jogar me dá vontade de rir, quando vejo a situação do time que eu amo, eu penso: “que loucura, que coisa maluca”. Mas a risada profunda mesmo de bobajada boa, eu tenho rido muito com o que o Paulo Vieira coloca no Twitter, do Pablo e Luisão, isso é muito engraçado. Eu rio muito com o João Pimenta fazendo narração de pega-pega; do stand-up do Rodrigo Marques; do Maurício Meirelles fazendo o “Achismos” no Youtube, um negócio muito divertido, muito bem feito, o Maurício é muito engraçado.