A representatividade no humor e a piada com o opressor — Gama Revista
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Foto: Acervo Pessoal/Divulgação/Ricardo Venturini / Ilustração: Sariana Fernández

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Depoimento

Quem é o alvo da piada?

Comediantes contam como se posicionam para desafiar preconceitos e levar mais representatividade ao humor

25 de Julho de 2021
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Foto: Acervo Pessoal/Divulgação/Ricardo Venturini / Ilustração: Sariana Fernández

Quem é o alvo da piada?

Comediantes contam como se posicionam para desafiar preconceitos e levar mais representatividade ao humor

25 de Julho de 2021

Nas discussões sobre como estabelecer os limites do humor, as conclusões ainda são pouco objetivas. Ainda que pareça óbvio que piadas racistas, machistas, LGBTfóbicas, gordofóbicas e capacitistas não sejam mais aceitas por serem ofensivas e reforçarem preconceitos contra grupos historicamente discriminados – e uma parcela da população esteja cada vez mais sensível a deslizes nesse sentido –, há quem ainda as use em seu repertório sob a justificativa da liberdade de expressão.

Só neste ano, o autodenominado “rei do humor negro”, Léo Lins, que atua no programa “The Noite”, do SBT, e faz shows pelo Brasil inteiro, foi condenado a pagar indenizações a uma mulher trans e a um líder indígena. Recentemente também, uma piada ofensiva chegou à Suprema Corte do Canadá por causa de um comediante que foi processado por ridicularizar um adolescente portador de deficiência em uma apresentação.

Mas como é para os humoristas que fazem parte de minorias? Alguns veem como uma oportunidade do “oprimido fazer piada com o opressor para causar reflexão”, como disse o baiano João Pimenta, e de “não deixar as pessoas rirem de você, tirando sarro de quem sempre ocupou os espaços de poder”, como afirmou a paulistana Bruna Braga. Para outros, o que importa é a mensagem de representatividade que a visibilidade como humorista traz, como acontece com Lorrane Silva, a “Pequena Lô”.

A Gama, esses e outros nomes contam sobre sua vivência no trabalho e falam sobre como se posicionam diante de temas polêmicos, que uso fazem do humor para passar mensagens que julgam relevantes e o que, para eles, não deve virar piada de jeito nenhum.

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Foto: Acervo Pessoal / Ilustração: Sariana Fernández

“Nunca fiz humor autodepreciativo, às vezes eu só brinco com a minha altura

Lorrane Silva/Pequena Lô

De Araxá (MG), Lorrane Silva viralizou em 2020 no TikTok e no Instagram (nos quais soma 4 milhões de seguidores) com vídeos de humor em que comenta memes e situações do dia a dia. De lá para cá, apareceu em capas de revistas, foi selecionada na lista Forbes Under 30 e, em agosto, vai ser coapresentadora do novo programa da cantora Luisa Sonza no Multishow

“Nunca gostei de vídeos que criticassem ou ofendessem, eu não falo dos outros para ser engraçada. Tenho muito cuidado com o que eu faço piada, porque tem até criança que me assiste, então é uma responsabilidade muito grande. Eu não faço piadas racistas, capacitistas ou gordofóbicas de jeito nenhum, não precisa disso para fazer as pessoas rirem. Também nunca fiz humor autodepreciativo, às vezes eu só brinco com a minha altura [a humorista nasceu com membros curtos devido a uma síndrome e tem 1,30 m]. No começo eu fazia alguns vídeos contando da minha vivência como pessoa com deficiência, mas depois eu vi que o que eu gostava mesmo era falar de situações do cotidiano, de coisas leves. Entendi que cada vídeo e conquista minha já leva a mensagem da representatividade. Quando algum hater faz algum comentário maldoso sobre a minha condição física, eu costumo expor, como fiz outro dia no Twitter. Eu acho que, antes de falar de alguém, a gente precisa olhar para a gente mesmo. Eu não sou perfeita e o outro também não. Nesse mundo de hoje, com tanta informação e tecnologia, você tem tudo disponível para aprender a ser uma pessoa melhor.”

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Foto: Divulgação / Ilustração: Sariana Fernández

“Faço piada sobre a minha vivência para atingir quem me oprime”

João Pimenta

O comediante baiano trabalha há mais de 15 anos com humor e hoje faz parte do canal Porta dos Fundos. Pimenta conta com 400 mil seguidores no Instagram e mais de 820 mil inscritos em seu canal pessoal do Youtube, onde viralizou fazendo receitas com o quadro irreverente “Larica do Ódio”

“O tipo de comédia que eu faço tem a característica de bater no opressor social seja questionando o privilégio, por exemplo, ou falando do fato de o povo achar que a Bahia e o Nordeste são um grande bairro. E fazer piada com quem acha isso, de certa forma, é polêmico — escarnecer do opressor. A piada em que o opressor bate no oprimido tem que acabar. A comédia é um ponto muito pequeno dentro da discussão política e social, mas fazer a minha parte, tentar inverter essa lógica, para mim, já é um grande passo. Qualquer tipo de piada racista, homofóbica, machista e misógina não é válida. Em alguns temas a gente tem que rir escarnecendo, tem que rir cobrando, tem que rir politizando mesmo. Eu faço piada sobre a minha vivência para atingir quem me oprime e isso, consequentemente, traz uma leveza para a reflexão porque as pessoas riem do escarnecimento do opressor.”

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Foto: Divulgação / Ilustração: Sariana Fernández

“O humorista sempre se posiciona de alguma forma, mesmo que ele não note”

Bruna Louise

A atriz e comediante paranaense tem hoje 4,1 milhões de seguidores no Instagram e 2,7 milhões de inscritos no Youtube. Bruna foi a primeira mulher a lançar um especial de comédia completo no Brasil, com o stand-up “Desbocada” (2019), e faz parte da equipe do programa “A Culpa é da Carlota”´(2020), do canal Comedy Central

“Grande parte das minhas piadas são baseadas na minha vivência, no que está acontecendo, no que está me incomodando ou no que incomoda várias pessoas ao meu redor. Quem assiste a meus stand-ups realmente acompanha a minha vida, como se o público fosse meu amigo. E o humorista sempre se posiciona de alguma forma, mesmo que não note. Mesmo que você não seja declaradamente a favor ou contra fulano, o conjunto de ideias que você passa acaba deixando claro seu posicionamento. Quando eu decidi falar sobre o caso da Mariana Ferrer [em 2020, Bruna manifestou apoio à modelo, que acusou o empresário André de Camargo Aranha de estupro], foi uma situação muito delicada pra mim, porque é muito difícil fazer piada sobre uma coisa tão sensível. Só que eu passei uns dois dias sem conseguir dormir por causa dessa história, e aí resolvi escrever sobre isso. Confesso que fiz muito mais por mim do que pelos outros, mas teve um impacto muito grande – as pessoas me xingaram muito defendendo o cara. Mas também recebi apoio de gente achando importante que eu tenha usado minha voz para isso. Então eu fico feliz de ter conseguido me expressar – não é um texto exatamente engraçado, mas é um texto que me desengasgou.”

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Foto: Dia Estúdio / Ilustração: Sariana Fernández

“Minha personagem é sem noção, mas até isso tem que ter limite”

Bruno Matos/Blogueirinha

O carioca incorpora desde 2016 a personagem Blogueirinha, que ironiza as blogueiras da vida real, e soma 1,9 milhão de seguidores no Instagram e 1,1 milhão de inscritos no Youtube. Matos já recebeu o prêmio MTV Miaw 2018, estreou programa no canal de humor do Multishow, cobriu o Rock in Rio 2019 e foi confinado por um dia no Big Brother Brasil 20

“Minha personagem é sem noção, blogueira, rica, fútil. Então eu tenho que fazer humor nessa linha. Mas também tem que ter um limite para o quanto ela é sem noção. Meu público é muito ligado no que é correto, até por ter muitas mulheres e pessoas LGBTQI+ que já sofreram muito com preconceito. Então eu penso duas ou três vezes antes de postar alguma coisa; às vezes passo dos limites em um vídeo para o Youtube e corto na edição. Teve uma época em que a Blogueirinha virou pastora, virou crente, e aí vinha gente me mandar mensagem dizendo que eu ia para o inferno, que eu estava blasfemando. Para essas pessoas acho que eu não consegui passar a mensagem que eu queria, que era falar desse fanatismo religioso que se vê por aí. Mas a maioria das pessoas gostou, entendeu. Quando falo coisas que as pessoas podem não gostar, tem uma crítica por trás. O que eu não faço mais hoje em dia é piada sobre o corpo das pessoas. Ou zoar a pobreza. Vejo muita gente fazendo humor falando de pobreza e da dificuldade das pessoas com a justificativa de que já passou por isso e que, portanto, tudo bem, como se isso foi engraçado.”

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Foto: Divulgação / Ilustração: Sariana Fernández

“Tirar sarro de quem sempre ocupou os espaços de poder me deixa aliviada”

Bruna Braga

A comediante e roteirista paulistana começou no canal Comedy Central em 2018 e atualmente é roteirista do núcleo de humor na TV Globo. Bruna também faz parte da agência Dromedário junto aos humoristas Mauricio Meirelles e Victor Sarro e apresenta o programa “Bate Boca Brasil” (2020), no Youtube, ao lado do jornalista Leo Dias

“Todas as coisas que me afetam diretamente ou que me fazem pensar viram piada. Mas eu odeio falar de assuntos pesados demais, tipo morte. São coisas que eu não sei lidar bem, consequentemente não vai ser engraçado, só vai ser chocante. Eu preciso estar confortável com os assuntos para levá-los ao palco, precisam estar bem resolvidos dentro de mim. Levo para a terapia e depois coloco na balança para ver se vale a pena ou não falar. Discurso criminoso e de ódio são coisas que jamais fizeram parte do meu repertório, mas, no mais, tudo sempre é pensado no que se encaixa na minha boca. Num mundo feito para a gente chorar, fazer rir já é ‘tacar nos peito’ do sistema. Cada um usa as ferramentas que tem. Eu só tenho essa e vou usá-la. É preciso rir junto com as pessoas, e não deixar as pessoas rirem de você. É como se você apontasse para o problema e dissesse: eu sei que você existe, me machuca, me perturba, mas eu não sou a sua piada, você é que é! Inverter a lógica para tirar sarro de quem sempre ocupou os espaços de poder me deixa aliviada.”

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Foto: Divulgação / Ilustração: Sariana Fernández

“Se, além de fazer rir, eu conseguir transmitir uma mensagem, aí são dois golaços”

Robson Nunes

Além dos trabalhos na TV e no cinema, o artista é veterano no humor. Foi dono do clube Beverly Hills, em São Paulo, o primeiro de comédia no Brasil, estreou programas no canal Comedy Central e shows como “3Tosterona”, nos quais se apresentou por 16 anos. Também foi parte do elenco da última temporada de “Zorra”, na TV Globo.

“Meu solo de humor chamado ‘Afrobege’ completa dez anos agora. Ali eu já abordava o colorismo e a questão racial. Eu tinha até dificuldade de divulgar na época, porque, quando eu falava sobre o que era, as pessoas meio que o evitavam. Hoje, com esse tema mais em voga, é outro cenário — o que eu vejo, lógico, de maneira positiva porque há espaço de discussão. Hoje, há muito mais humoristas pretos do que quando eu comecei. Eu acho que o humor serve como ferramenta para conscientizar sim: se, além de fazer rir, eu conseguir transmitir uma mensagem, aí são dois golaços. O limite do humor para mim vai do meu olhar, eu gosto de falar de coisas que eu vivo. Porque aí eu não tô zombando da dor do outro, eu tô falando de mim, do que eu sinto, da minha visão, da minha sensibilidade. É impossível se prender ao passado no stand-up, que é um humor muito vivo. Você faz um texto hoje e daqui a um ano ele já está obsoleto, porque a sociedade muda. É essencial revisitar o seu material e se revisitar, rever seus conceitos, mudar suas atitudes, e evoluir. E não me refiro só ao racismo, mas a outros preconceitos. Eu, por exemplo, sou de uma geração super-homofóbica. Mas, quando você se coloca no lugar do outro, a coisa muda de cara, e você vê que piadas assim não têm graça.”