O mercado de luxo e a sustentabilidade — Gama Revista
Seu lixo aumentou?
Icone para abrir
Stella McCartney / Divulgação

1

Semana

Se tem luxo, tem lixo

Em destaque na pandemia, setor de luxo busca alinhar lucro a novas demandas ambientais e de gestão de resíduos — nem sempre consegue

Leonardo Neiva 30 de Maio de 2021

Se tem luxo, tem lixo

Leonardo Neiva 30 de Maio de 2021
Stella McCartney / Divulgação

Em destaque na pandemia, setor de luxo busca alinhar lucro a novas demandas ambientais e de gestão de resíduos — nem sempre consegue

Em 2020, enquanto o Brasil e o mundo encaravam uma crise econômica sem precedentes, impulsionada pela pandemia, nem todo mundo teve tantos motivos para chorar o leite derramado. Embora, de forma geral, tenha tido uma queda no desempenho, devido ao longo período de portas fechadas, o setor de luxo no Brasil sofreu menos perdas que no resto do mundo em 2020 — 11% contra 13,85%, segundo dados da Euromonitor —, com algumas áreas conseguindo inclusive prosperar nesse meio tempo.

Shoppings de alto padrão, grifes de moda e donos de grandes empreendimentos do setor conseguiram aproveitar a escassez de viagens para o exterior — que obrigou quem praticamente só consumia lá fora a comprar no mercado doméstico — e o impacto reduzido da pandemia no bolso da minúscula faixa da população correspondente aos mais ricos para maximizar seus lucros.

A indústria do luxo, em especial a ligada à moda, tem um impacto importante na produção de lixo e em outras questões ambientais

Ao mesmo tempo, um problema ambiental foi ampliado pela pandemia e o isolamento social. A Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) estima que tenha havido um aumento de 15% a 25% na quantidade de lixo residencial produzida no país em 2020. O uso excessivo de plástico, gerado principalmente pelo aumento do delivery e as medidas protetivas contra a covid-19, assim como o crescimento da produção de lixo de forma geral, fizeram com que empresas de áreas como reciclagem e reaproveitamento de resíduos vissem um aumento na demanda e nos investimentos, em um súbito aquecimento do setor.

Ainda que tenham alcançado destaque por motivos diferentes e aparentemente desconectados entre si, a indústria do luxo, em especial a ligada à moda, tem um impacto importante na produção de lixo e em outras questões ambientais.

Para especialistas no assunto, apesar da escassez de dados que permitam bater o martelo sobre o problema, a moda está entre os setores que mais poluem no mundo. Um problema agravado pela ascensão, nas últimas décadas, da fast fashion e de uma mentalidade de consumo calcada na compra, uso e descarte rápidos de peças de vestuário.

Queimando milhões

Em 2018, a tradicional grife britânica Burberry, especializada em roupas e acessórios de luxo, de quase dois séculos de existência, fez um anúncio inusitado. Em seu relatório anual, a marca indicou ter literalmente queimado o equivalente a 28 milhões de libras em produtos ao longo do ano anterior — algo em torno de R$ 210 milhões, na cotação atual. Pior ainda, contando os cinco anos anteriores, a grife havia incinerado cerca de 90 milhões de libras (R$ 675 milhões). Para atenuar a notícia, a marca disse ainda que toda a energia gerada pela queima foi liberada no ambiente de forma não poluente.

Apesar das aparências, existe uma explicação lógica para “queimar dinheiro”. Os produtos de marcas de luxo que não são vendidos são considerados excedentes e não podem ser mantidos no mercado por uma razão simples: as grifes vivem de exclusividade. Portanto, itens com pouca demanda correm risco de ser roubados ou vendidos com descontos significativos, reduzindo seu valor — ação inadmissível numa indústria que depende do status e dos altos preços para se manter relevante. “A escassez planejada da oferta é uma estratégia do luxo”, esclarece o coordenador de pós-graduação em marketing e professor de gestão do luxo da Faap, Amnon Armoni. “Tem que ser exclusivo, senão morre.”

O mais inusitado, portanto, não é a prática em si, infelizmente ainda comum, mas o fato de a Burberry, que atualmente está presente em quatro estados brasileiros, ter aberto a situação ao público. Para Armoni, queimar dessa forma no mundo de hoje é sintoma de “escassez de miolos”. O anúncio oficial teria sido um disparate em termos corporativos, segundo ele, atraindo críticas e atenção negativa para a marca. “Fazer já é horroroso, mas ainda por cima falar disso é coisa de imbecil.”

Embora não tenham vindo a público anunciá-lo, acredita-se que marcas como a Louis Vuitton e a Richemont, dona da Cartier, se desfaçam de forma semelhante de seus produtos não vendidos, inclusive durante a pandemia. Em 2020, a França, lar de algumas das maiores grifes do mundo, aprovou uma lei proibindo a prática. A própria Burberry, alvo de inúmeras críticas, anunciou poucos meses depois que pararia de queimar seus produtos.

“Várias empresas utilizaram essa tática, mas vão ter que parar. Não pode mais acontecer, as novas gerações vão começar a exigir isso”, afirma Armoni.

Um caminhão por segundo

Segundo estudo da Ellen MacArthur Foundation, o equivalente a um caminhão de lixo têxtil é jogado em aterros ou incinerado por segundo no mundo. De acordo com um relatório feito pela organização Modefica, em parceria com a FGV e a consultoria Regenerate Fashion, o Brasil hoje produz mais de 42 peças de roupa por habitante ao ano. O impacto disso, segundo a fundadora do Modefica, Marina Colerato, ainda é difícil de mensurar, já que dados oficiais são escassos.

“Muita gente conjectura que esteja no topo das indústrias mais poluidoras no mundo. Eu não duvido, pois engloba uma série de outras indústrias e commodities, que tangenciam o setor. Até por isso é difícil avaliar o tamanho do impacto.” Em relação à produção de lixo sólido, o estudo dá uma ideia das dimensões do problema. Só no Brás, polo comercial de roupas em São Paulo, saem cerca de 16 caminhões carregados de lixo têxtil todos os dias. Outras questões ambientais geradas pela cadeia produtiva, segundo Colerato, são o uso excessivo de água e a produção de CO2, entre outras.

Quem vai querer comprar roupas enquanto está lutando pela sobrevivência? Alguns têm investido em sustentabilidade, para que pandemias não se repitam no futuro

Até o momento, a especialista enxerga dois caminhos possíveis no mercado atual, em meio à pandemia — ambos pela justificativa econômica. “Quem vai querer comprar roupas enquanto está lutando pela sobrevivência? Nesse caso, alguns têm investido em sustentabilidade, para que pandemias, que têm causas ambientais, não se repitam no futuro.” E há também as marcas que preferem centrar os investimentos em ampliar a produção e recuperar as vendas, aumentando as emissões de gases e causando impacto ainda maior. “A maioria das marcas está indo por um desses caminhos como estratégia de sobrevivência”, afirma Colerato.

Pelos altos preços e a propalada maior qualidade e cuidado na produção de peças, a indústria de luxo na moda ainda costuma ser vista pelo público como superior ao fast fashion e às marcas populares em questões ambientais e de sustentabilidade.

Para Fernanda Simon, diretora-executiva da Fashion Revolution no Brasil, no entanto, marcas de ambos os tipos têm se movido para um desenvolvimento mais sustentável, mas ainda não na velocidade necessária. “No mercado de luxo também falta transparência em relação a dados e informações. E não vejo, em nenhum dos dois, marcas muito engajadas em usar matérias-primas mais ecológicas.”

O primeiro da fila

Amnon Armoni, da Faap, lembra que, com as sucessivas crises, as classes mais altas no Brasil também vêm encolhendo, ainda que de forma menos acentuada que a classe média. Portanto, há um impacto na renda que se reflete no consumo. O que pode fazer a diferença, segundo ele, é o fato de as pessoas estarem impossibilitadas de viajar e o real estar desvalorizado. Portanto, quem estava acostumado a fazer suas compras de luxo lá fora acaba se resignando a consumir por aqui mesmo. “Pode ser que isso dê um pequeno chacoalhão nesse mercado, mas não sei dizer. Representa uma parcela muito pequena da nossa população.”

Ainda de acordo com o professor, o luxo historicamente tem tendência a puxar a fila da moda e das inovações no setor. Por isso, já vinha investindo de forma maciça na digitalização do consumo, uma tendência que ganhou ainda mais força na pandemia. E, até por essa característica, deveria ser pioneiro também no investimento em uma produção mais sustentável, incluindo na conta a reutilização de materiais.

Veremos marcas pensando cada vez mais em reduzir o desperdício, facilitar a reciclagem, reparar, reutilizar e reaproveitar

Ao que parece, em relação ao consumidor, alguma mudança já vem acontecendo. Em seu primeiro relatório anual de consumo consciente, a plataforma de luxo Farfetch identificou uma alteração no padrão de compras online ao longo 2020. A venda de itens considerados ambientalmente conscientes — reutilizados ou produzidos com materiais sustentáveis — cresceu 3,4 vezes mais rápido do que a média do mercado no ano, de acordo com o documento, e a navegação nas páginas desses produtos quadruplicou.

Considerando essa demanda, o futuro da moda deve priorizar o ciclo de vida do produto, diz a consultora Nicolle Moraes, da empresa global de previsão de tendências WGSN. “Veremos marcas pensando cada vez mais em reduzir o desperdício, facilitar a reciclagem, reparar, reutilizar e reaproveitar.” Outro caminho, afirma Nicolle, será fazer encolher a produção para que seja mais adaptada à demanda.

Produzir tecidos hipertecnológicos, com matéria-prima reciclada e reciclável em larga escala é outra necessidade — a Ralph Lauren, por exemplo, lançou uma linha de camisas polo com fios feitos de garrafas plásticas recicladas —, além da expansão do mercado de revenda.

Conhecida pela participação ativa em questões ambientais, a estilista britânica Stella McCartney fez a campanha de inverno 2017 da grife em um aterro sanitário no leste da Escócia, com a intenção de chamar a atenção para os problemas de descarte e reciclagem de resíduos. Stella aplica a filosofia na própria marca, usando materiais reaproveitados em coleções e se negando a usar peles de animais em suas peças

O desafio da reciclagem

Uma das maiores dificuldades para o reaproveitamento de roupas e acessórios é a dificuldade de reciclar tecidos, na comparação com outros materiais como plástico, vidro e alumínio, devido à variedade de tipos de fibra e combinações de cores. Isso sem contar elementos adicionais como zíperes, botões e etiquetas, que complicam ainda mais o processo.

Desde o início da pandemia, a Retalhar viu um aumento na procura por seus serviços de reciclagem de tecidos. A empresa de São Paulo, especializada em reciclar tecidos de uniformes de trabalho em larga escala, hoje atende cerca de 40 companhias e dá novo uso a cinco toneladas de resíduos, ou cerca de cinco mil peças de roupas, por mês. No processo de reciclagem, o tecido é desfibrado, podendo ser usado em outras aplicações, como a indústria automobilística e cooperativas de costureiras. Hoje, a empresa também faz a reutilização de mochilas de delivery do iFood e já começou a atender o varejo de roupas.

“Hoje felizmente tem muita gente grande se movimentando nessa direção. Quando um pequeno surge com uma tecnologia nova, agrega muitos varejistas”, diz o CEO Jonas Lessa. “A pandemia só acelerou esse processo, tanto pela percepção de que estamos prejudicando o meio ambiente quanto por uma necessidade econômica, uma escassez de matéria-prima num contexto de crise. Com a economia circular, mesmo quando um produto perde relevância para o consumidor, ele continua no banco de materiais da empresa.”