'O engajamento da sociedade com o lixo é decepcionante' — Gama Revista
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Conversas

'O engajamento da sociedade com o lixo é decepcionante'

Para o presidente da International Solid Waste Association e diretor-presidente da Abrelpe, Carlos Silva Filho, a administração de resíduos sólidos só será eficiente no país quando governo e população se responsabilizarem

Isabelle Moreira Lima 30 de Maio de 2021

‘O engajamento da sociedade com o lixo é decepcionante’

Isabelle Moreira Lima 30 de Maio de 2021
Foto: Divulgação / Ilustração: Isabela Durão

Para o presidente da International Solid Waste Association e diretor-presidente da Abrelpe, Carlos Silva Filho, a administração de resíduos sólidos só será eficiente no país quando governo e população se responsabilizarem

A geração de resíduos sólidos no Brasil está crescendo tanto que em 2050 será possível dar duas voltas na terra. Serão 120 milhões toneladas por ano de lixo. Mais assustadora ainda a previsão fica quando lembramos que o destino do lixo está longe de ser o ideal, que a reciclagem doméstica ainda é um desafio e que lixões são utilizados mesmo quando há a alternativa de aterros sanitários preparados.

Temos uma lei de resíduos arrojada porém falha, temos um novo marco regulatório do saneamento que dá um pouco mais de esperança ao universalizar a administração do lixo. Mas nada será resolvido sem que a população como um todo se responsabilize, inclusive financeiramente.

O diagnóstico é de Carlos Silva Filho, presidente da International Solid Waste Association (ISWA) e diretor-presidente da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais), que, em entrevista a Gama, deu um panorama sobre como o Brasil administra o lixo hoje. “Hoje, o Brasil recicla 2,2%. Os países da mesma faixa de renda do Brasil, com o mesmo nível de desenvolvimento, já reciclam 16%. Isso mostra o quanto nós estamos atrasados”, afirma.

Falta o primeiro passo da consciência, de não aceitar descartar tudo junto e que não se faça a separação para coleta seletiva.

  • G |Por que a Política Nacional de Resíduos Sólidos não andou como o esperado? Em 11 anos, desde a criação, qual é a avaliação que você faz dela?

    Carlos Silva Filho |

    É uma lei ambiciosa que ordena a prioridade das ações, a responsabilidade compartilhada, o plano de gestão de resíduos sólidos, a logística reversa. Mas que falhou em alguns pontos: em definir claramente as responsabilidades nos diferentes fluxos de resíduos, o papel de cada um; e nos planos de gestão de resíduo como a base principal para sustentar essa evolução. Até hoje nós não temos a estratégia do país para colocar a lei na prática. Então, quando a lei fala que a ordem de prioridade de ações é reduzir, reutilizar, reciclar, fazer o aproveitamento energético – em quanto tempo? De que forma? Por qual caminho? Isso a lei não faz, o plano deveria fazer. E o último ponto, o fundamental: a lei não indicou quem vai pagar essa conta.

  • G |Então dá para dizer que a lei é falha?

    CSF |

    Muitos entendem que esta lei diretamente não deveria trazer esse ponto, porque a lei tem uma vigência indeterminada. Mas como política pública, o governo federal deveria justamente ter colocado isso em prática. Então, eu diria que é uma falha do governo federal, do Executivo federal. Desde agosto de 2010, quando essa lei foi sancionada, não trouxe uma política pública de fato para sustentar a implantação da lei.

  • G |Nos últimos dez anos, a geração total de resíduos sólidos urbanos no Brasil cresceu 19%. E pelas projeções de vocês, deve crescer em 50% até 2050, o que é um pouco assustador. Por que tem crescido tanto? É estilo de vida isso? É indústria?

    CSF |

    É padrão de produção e consumo, e também por não termos nenhuma ação implantada voltada para a não geração de resíduos sólidos. O resíduo é uma externalidade do poder aquisitivo dessa sociedade. O Brasil vem numa tendência de desenvolvimento econômico e mais poder de compra, o que vai impactar na geração de resíduos sólidos. A não ser que tenhamos uma política pública que permita viabilizar ações para minimizar o impacto, que beneficie os produtos retornáveis e recicláveis, que dê apoio para uma transição do processo produtivo, de forma que os produtos colocados no mercado gerem menos resíduos. Hoje, isso não existe.

  • G |Como é em países considerados modelo, na Escandinávia?

    CSF |

    Ainda está em uma faixa entre 2 kg e 2,5 kg. É mais do que o Brasil, mas a gestão é melhor. Nos Estados Unidos, eles geram 4 kg por pessoa; o nosso é um 1,3 kg por dia. O Brasil, se a gente somar o total, as 80 milhões de toneladas que geramos por ano, é o país com a quarta maior geração do mundo. Porque nós temos 200 milhões de habitantes, outros países geram bem menos. Quando a gente olha a geração per capita, o Brasil cai para mais ou menos 20° lugar, porque o nosso habitante gera um pouco mais de um quilo. Só que é um índice que vem crescendo. Para você ter uma ideia, nesse dado do panorama, em 2010, cada brasileiro gerava 348 quilos por ano. Em 2020, são 380 quilos por ano.

  • G |O que se pode fazer para reduzir essa projeção? É um esforço individual ou tem a ver com poder público?

    CSF |

    É um processo de várias ações integradas. Primeiro, precisamos que a indústria coloque no mercado produtos que gerem menos resíduos. Um exemplo clássico é o do iogurte, do xampú e do amaciante, o supermercado deve ter um dispenser, em que você leva a sua embalagem, enche, e paga pelo produto. Aqui, nosso refil vem numa nova embalagem. Precisamos dessa ação da indústria. Segundo, precisamos que o consumidor esteja sensibilizado para essas ações mais adequadas, porque o nosso modo de consumo aqui no Brasil ainda é pelo menor preço. E terceiro, nós não temos nenhuma política pública que incentive ou que beneficie as melhores práticas, como redução da carga tributária, linhas de financiamento com taxas menores de juros, ou incentivos para instalação de indústria que gere emprego da economia verde, sustentável.

  • G |Estados do Norte e do Nordeste têm o menor índice de cobertura de coleta de lixo no país. Esses números podem ser usados também como medidores de desigualdade? Por que a situação lá é pior?

    CSF |

    Reflete a questão da desigualdade sócio-econômica dessas regiões, seja porque as comunidades estão instaladas em áreas de mais difícil acesso, seja porque os municípios não têm o recurso minimamente necessário para os serviços básicos, a coleta. E esse é um fato que se repete no mundo — 2 bilhões de pessoas não têm coleta de lixo na porta de suas casas e 3 bilhões não têm destinação adequada. O que nos leva a uma pesquisa feita em parceria com o Colégio Real de Engenheiros do Reino Unido concluiu que concluiu que o lixo queimado a céu aberto é a segunda maior fonte de poluição do planeta.

  • G |Sendo bem realista, há saída para o lixões? O que precisaria mudar para o lixo ir para o lugar certo? E, mais, existe lugar certo?

    CSF |

    Existe, sim. O primeiro passo é conseguir que os resíduos sejam destinados para aterros sanitários, obras de engenharia construídas para proteger o meio ambiente e o melhor custo benefício para a destinação de resíduos, embora não seja a melhor prática, porque confina os resíduos sólidos em vez de recuperá-los. Isso é totalmente viável no Brasil. Em muitos casos, os lixões não são encerrados porque não tem para onde mandar o resíduo gerado todos os dias pela população. Agora, tem lugares que já tem aterro sanitário implantado, licenciado, construído, e o município continua mandando para lixão porque não custa nada. Mas custa três vezes mais com saúde do que pagar a entrada dos resíduos no aterro sanitário. Temos o caminho de fazer centrais de triagem, que têm um custo acessível para recuperar os recicláveis; de fazer unidades de tratamento da matéria orgânica, que é 45% do nosso lixo, com processos com custo benefício acessível. A solução existe, a lei existe, falta vontade política e o recurso para custear esse processo.

  • G |E o responsável também, né?

    CSF |

    É, a questão é justamente quem assume, quem vai pagar essa conta. Que na verdade, não muda em país nenhum: é o cidadão, é o usuário, é cada um de nós que vai pagar essa conta. Hoje, todos nós estamos pagando uma conta que é maléfica para o meio ambiente e para a saúde das pessoas. Injusta, porque todo mundo paga a mesma coisa, não importa se você age de uma maneira boa ou não. E terceiro: paga sem saber para onde vai esse dinheiro. Então, a questão é: tornar o processo mais justo, transparente e eficiente.

  • G |A polêmica taxa de lixo da gestão Marta (2001-2005) era então uma boa ideia?

    CSF |

    É a única forma adequar a gestão de resíduos sólidos. O que falhou ali: transparência, comunicação para com o cidadão e uma gestão para mostrar justamente quais seriam os benefícios dessa cobrança. Não é um novo imposto, mas defendo cobrar por um serviço público da forma como cada um usufrui desse serviço público e para isso tem N modelos. E com isso, automaticamente, desonerar o cofre público dessa despesa, o que significa dinheiro livre para outros setores necessários ou o município vai dar desconto, por exemplo, no IPTU, no ISS. Esse benefício vai ser direto para a população.

  • G |Como você vê o engajamento da sociedade? Como ele pode ser melhorado?

    CSF |

    A consciência das pessoas é decepcionante, é simplesmente uma lástima. No panorama de 2017, nós publicamos uma pesquisa do Ibope com pouco mais de 2 mil pessoas. A primeira pergunta era “você considera a reciclagem um tema importante?”, e 98% das pessoas responderam que sim. A segunda pergunta era “você separa o seu lixo em casa para viabilizar a reciclagem?”, e 75% responderam que não. Para mudar, só tem um jeito: começar com ações de educação ambiental efetivas na educação infantil, para criar o hábito nas novas. O papel do cidadão é fazer a separação dentro de casa e remunerar os serviços de limpeza urbana na proporção que ele acessa. E é isso que nós precisamos ensinar e educar as novas gerações.

  • G |A coleta seletiva não é universal, mesmo no centro de São Paulo. Como fazer?

    CSF |

    O centro de SP tem o caminhão da coleta seletiva que passa ali duas vezes por semana pelo menos na porta desse prédio. Então cabe a administração deste condomínio instituir para o morador ou para a moradora essa iniciativa. Em muitos casos ficamos esperando um terceiro que faça por nós. “Eu não faço porque o caminhão não passa na porta da minha casa.” Mas pode ser que tenha um supermercado perto de você que tenha um ponto de entrega de resíduos, por que não levar lá? Entregar para um catador que passa na sua casa. Falta exatamente esse primeiro passo da consciência, de não aceitar que vou descartar tudo junto e que não vou fazer a separação para coleta seletiva.

  • G |Nesse ano, vocês fizeram o Raio-X do lixo. E ele mostra que a gente tem 45% de material orgânico, 35% de reciclável e 14% de rejeitos. O que isso significa?

    CSF |

    Esse Raio-X é importante porque as soluções tem que ser planejadas de acordo com o tipo de lixo que se tem. O 45% de matéria orgânica é basicamente resto de comida, ou seja, o quanto o brasileiro desperdiça. Então a gente pode dizer que o brasileiro está desperdiçando menos alimentos. Por outro lado, está consumindo mais embalagens, que foi o aumento nos recicláveis que antes era em torno de 32% e foi para 35%.

  • G |Nesse universo, os recicláveis secos são de fato reciclados?

    CSF |

    Nem tudo tem solução técnica e econômica. Não é que nós vamos virar a chave e da noite pro dia o Brasil vai estar reciclando 35%. Nós temos um teto em torno de 20%. Hoje, o Brasil recicla 2,2%. Os países da mesma faixa de renda do Brasil, com o mesmo nível de desenvolvimento do Brasil, já reciclam 16%. Isso mostra o quanto nós estamos atrasados. Não há o engajamento da sociedade, não tem infraestrutura disponível para viabilizar o retorno desses materiais e a matéria prima secundária e não tem nenhum incentivo tributário e econômico para que seja tratada de maneira privilegiada em relação à virgem. Em muitos casos, a tributação para o reciclável é maior, é um absurdo.

  • G |Como a pandemia mudou a situação do lixo no Brasil?

    CSF |

    Houve um aumento da geração de lixo nas casas. As pessoas antes passavam boa parte dos seus dias fora, e geravam resíduo no trabalho, no restaurante, em um shopping. Esses estabelecimentos têm que contratar uma coleta privada. Quando uma boa parte da população passou a ficar em casa, esse resíduo foi colocado na limpeza urbana. Também vimos um aumento proporcional maior nos recicláveis, caixa de papelão, embalagem de alimentos pré-prontos, muito pela alta do comércio online. Vimos uma sobrecarga nesse sistema que já é combalido, que já é subfinanciado, que já não é modernizado, trazendo uma sobrecarga nesse sistema.

  • G |Em que pé está o novo marco do saneamento?

    CSF |

    A lei foi aprovada em julho de 2020 e trouxe uma nova dinâmica. Na questão dos resíduos, o serviço deve ser universalizado num prazo de dez anos. A lei dá dois indicativos importantes: se o município for contratar esse serviço, tem de ser por concessão de longo prazo com investimento para a modernização do setor; e traz como obrigação que as prefeituras cobrem pelos serviços. Então a tarifa da limpeza urbana, a taxa do lixo, agora passa a ser obrigatória e os prefeitos têm prazo até 15 de julho para fazer isso acontecer.

  • G |E como está a atuação das prefeituras em absorver isso?

    CSF |

    Aí são coisas de Brasil. Em maio, começamos a ver algum movimento. Tem que acontecer porque as multas agora são pesadas, é lei de responsabilidade fiscal, é lei de improbidade administrativa, é responsabilização por crime ambiental, agora vem tudo no pacote. Com essa nova disposição legal, que vai afetar tanto a pessoa jurídica da prefeitura quanto a pessoa física do prefeito, vai mudar. É igual nós falamos com o cidadão, muda quando mexe no bolso. Político, em geral, muda quando mexe na questão de direitos políticos, quando mexe em uma multa, numa improbidade administrativa, então esse é o momento