Qual é a comida do futuro? — Gama Revista
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Semana

Qual é a comida do futuro?

Mais tecnologia, menos carne; mais orgânicos, menos distância. Um painel de especialistas ouvidos por Gama aponta o caminho que a alimentação deve seguir nas próximas décadas. Há boas notícias

Isabelle Moreira Lima e Mariana Payno 07 de Junho de 2020

Qual é a comida do futuro?

Isabelle Moreira Lima e Mariana Payno 07 de Junho de 2020
© Autumn Sonnichsen

Mais tecnologia, menos carne; mais orgânicos, menos distância. Um painel de especialistas ouvidos por Gama aponta o caminho que a alimentação deve seguir nas próximas décadas. Há boas notícias

A comida do futuro envolve plantações verticais, melhoramento genético de sementes +, proteínas alternativas feitas em laboratório. Mas também olha para o passado e valoriza processos artesanais, o pequeno produtor e a origem dos ingredientes. O diagnóstico a seguir foi feito por um painel de especialistas ouvidos por Gama. São pessoas que atuam em diferentes pontas do setor da alimentação e que responderam às perguntas: o que é a comida do futuro? Para onde vai a alimentação?

Entre o otimismo e o pessimismo, as respostas tocam em diferentes aspectos, da redução do consumo de carne à crise alimentar. Porém, como todo futuro é incerto, muita coisa entra na equação. “Vai depender dos recursos das cidades, do estilo de vida, de questões culturais, das políticas públicas”, afirma a socióloga e professora da Universidade Federal de Santa Catarina Julia Guivant. “São transformações que dependem da mudança de atitude em relação aos outros e a si mesmo e também das transformações que existem a nível da tecnologia da informação, que possibilita tudo isso.”

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Comer consciente e comer local

Estamos prestando mais atenção ao planeta e à cadeia de produção dos alimentos, diz a tendência mais otimista sobre o futuro da comida. Isso significa que vamos comer, comprar e cozinhar de forma consciente e sustentável, tanto no ambiente doméstico quanto nos restaurantes. “Vamos nos abastecer do local, consumir do bairro, trabalhar com pequenos produtores. Muita gente já vinha fazendo isso, mas agora não tem mais saída”, diz a fundadora da agência de produções gastronômicas Síbaris, Joana Munné.

E essa proximidade com pequenos produtores pode até render parcerias, como cooperativas no entorno das cidades ou até mesmo em grandes centros, como prevê a chef e consultora Ana Soares, do Mesa III. “Há prédios monumentais completamente vazios em lugares como Wall Street, com pessoas trabalhando de casa. E se pensássemos em hortas verticais? Seria uma maneira maravilhosa de preencher esses vazios. Fazer um tomatinho brotar na selva de pedra, produzir mel”, diz. “Vamos ter que nos preocupar com o quilômetro zero, parar de comprar o que vem lá de não sei de onde.”

O estopim para uma mudança dessa natureza é a pandemia, mas poderia ser uma guerra, um desastre natural ou a falta de combustíveis que impedisse a circulação de mercadorias. “A única segurança alimentar real é descentralizar a produção e incentivar todas as regiões e localidades a desenvolver suas próprias instalações de produção de alimentos”, afirma o americano Sandor Katz, escritor, ativista e especialista em fermentação.

Comer saudável e com diversidade

Outro efeito possivelmente irreversível do isolamento social é levar a população de volta à cozinha, o que despertou a consciência da importância do aproveitamento total dos ingredientes, com diferentes consequências benéficas. “As pessoas começam a conhecer a própria cozinha, a olhar os rótulos. E, ao preparar as receitas, vão pensar em desperdício, em aproveitamento integral. Produzir menos lixo vai ser inevitável”, diz o criador do projeto Gastromotiva, David Hertz.

Essa recente volta à cozinha também tem efeitos na saúde. Ao cozinhar em casa, escolher os ingredientes, passar a conhecê-los melhor, pode nascer uma preocupação com frescor e variedade. “Estamos mais próximos de uma alimentação saudável, sem comer besteira na rua, com mais alimentos in natura. São tendências que podem gerar novos hábitos, nas crianças por exemplo, e influenciar o futuro”, afirma Guivant.

E isso não só do ponto de vista da culinária caseira, mas da gastronomia, como diz a escritora e jornalista Patrícia Ferraz. Segundo ela, a comida vai ter que ser sã, com atestado de origem que informe de onde vem, quem produziu e em que condições. O artesanal não sairá de moda, e o simples e o natural se fortalecerão. “Desde a Nouvelle Cuisine, nos anos 1970, todos os movimentos gastronômicos importantes (exceto a cozinha molecular e a nova cozinha espanhola) já seguem na direção dos preparos mais leves, da simplificação, da comida sem disfarces, dos molhos e caldos que valorizam as características originais dos alimentos, em vez de mascará-las. E o vegetal vai virar, definitivamente, o protagonista no prato.”

A agroecologia +, que tem a diversificação da produção como uma de suas bases e tem surgido em bairros mais distantes dos grandes centros, pode ser um atalho para essa tendência. “Nós lutamos há vários anos para que esse seja o rumo a seguir e achamos que é possível trabalhar nessa lógica, porém não é de uma hora para outra que o modelo tradicional vai ser substituído pela agroecologia. É um processo longo e é preciso haver também uma ruptura política”, diz o coordenador de produção do MST, Milton Fornazieri.

Comer com afeto e voltar ao passado

Rumaremos ao futuro sem perder de vista o passado, reaprendendo com ele, segundo muitos especialistas. Um dos caminhos é o compartilhamento de receitas e ensinamentos ancestrais com as novas gerações, como afirma a antropóloga e professora da Universidade Federal de Pelotas Nicole Weber. “A pandemia trouxe um envolvimento maior com os processos culinários, as pessoas começam a resgatar coisas da memória, receitas de família, e também a gerar outras memórias, ao envolver os filhos nos processos cotidianos da cozinha: montar a mesa, comer junto”, diz.

Para Ieda de Matos, chef do restaurante Casa de Ieda, a comida do futuro implica necessariamente um retorno ao passado. “Uma comida em que as pessoas voltam às suas origens, voltam a observar a agricultura. Mesmo quem não nasceu na roça, teve seus avós um dia, que comiam a comida sem agrotóxicos e sem processados.”

Desigualdade social e crise alimentar

Mas nem só de boas notícias será feito o futuro, e o acesso à alimentação seguirá um grande desafio. No curto prazo, o comércio mundial pode ser afetado por incertezas provocadas pela pandemia. “Pode ser que a comida não chegue à sua mesa porque não teve um agricultor para colher, um caminhão para entregar, a feira para vender. Esse problema é como uma nuvem pairando sobre as classes mais baixas”, afirma Julia Guivant.

A comida, afinal, não é uma realidade universal. “Quando pensamos em comida do futuro, é importante pensar: para quem? Afinal, o Brasil é muito grande e muito díspar. Temos que pensar em como democratizar o acesso e o que fazer em termos de políticas públicas, que têm a ver com a educação e o acesso à informação”, diz Nicole Weber.

“Não existe comida boa e saudável para todos se não houver um plano integral e sistêmico que leve em conta a educação e o poder de consumo”, complementa David Hertz. “A falta da diversificação é um dos efeitos da disparidade social. Para uma família com orçamento contado vão ser muito mais evidentes a escassez e a necessidade de comer o básico do básico.”

Comida de laboratório e proteínas alternativas

O futuro parece ser também contraditório. Embora o simples e o natural sejam uma tendência real, a comida de astronauta também estará por aí. O cozinheiro, jornalista e vice-presidente do instituto Atá, Roberto Smeraldi, afirma que em dez anos já estará em curso de maneira regular e em alta escala um fenômeno chamado de fermentação de precisão, que consiste na indução de microorganismos (fungos e bactérias, por exemplo) em laboratório para fermentar material barato (folhas, biomassa e até lixo) transformando-o em proteínas alternativas. “Em 2030, o custo de produção de uma proteína de laboratório com fermentação de precisão deve ser um quinto do custo de produção de uma proteína animal [como a pecuária]”, afirma.

Segundo ele, essa fermentação poderá ser realizada por meio de software em cozinhas de produção, que conseguirão criar não apenas o prato final, mas o ingrediente base. “Dessa forma, a produção tradicional vai migrar para produtos de origem de qualidade, com certificação, com gosto caracterizado e indicações geográficas de origem e transparência”, explica. Os impactos serão gigantescos, com reflexos em gigantes da carne, que podem entrar no novo negócio ou sumir; no sistema de logística; e até no meio ambiente, uma vez que haverá menos necessidade de espaço para a criação de gado.

A questão ambiental tem sido determinante para estudos de proteínas alternativas. Para os pesquisadores, trata-se de uma questão de segurança alimentar. “Os produtos de origem animal vão ter que ser, pelo menos em parte, substituídos por versões baseadas em célula cultivadas em laboratório, em plantas ou em proteínas alternativas, como os insetos”, diz Henriette Azeredo, pesquisadora da Embrapa.

Comer esses invertebrados pode parecer estranho para nós, brasileiros, mas já é uma realidade há tempos em outros cantos do mundo. “É uma fonte de proteínas consumida em muitos países e que tem sido apontada como alternativa para a deficiência de alimentos proteicos no futuro”, afirma Renata Tonon, também pesquisadora da Embrapa. Segundo ela, estudos mostram que os insetos são ricos em proteínas e vitaminas, além de mais ecologicamente amigáveis que outras fontes de proteína animal. “Só falta a coragem para experimentar!”, brinca. Tonon também acredita que as proteína vegetais passarão por um boom. A onda do plant-based está apenas começando.


A maioria das fotos que ilustram essa matéria são da Autumm Sonnichsen. Leia mais sobre o trabalho da fotógrafa no nosso Bloco de Notas.