Guia da fibromialgia: o que é, de onde vem e como lidar — Gama Revista
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Saúde

Pequeno guia da fibromialgia

A piora de quadros da síndrome foi um dos efeitos da pandemia. Saiba mais sobre o que é, o que causa e o que fazer quando se tem a doença que é um mistério mesmo 30 anos depois de sua classificação

Isabelle Moreira Lima 25 de Abril de 2021

Pequeno guia da fibromialgia

Isabelle Moreira Lima 25 de Abril de 2021
Isabela Durão

A piora de quadros da síndrome foi um dos efeitos da pandemia. Saiba mais sobre o que é, o que causa e o que fazer quando se tem a doença que é um mistério mesmo 30 anos depois de sua classificação

A pandemia dói. E não só no sentido figurado. Para quem tem fibromialgia, uma das síndromes crônicas mais desagradáveis e difíceis de diagnosticar, o estresse desse período foi crucial para o agravamento dos sintomas. Especialistas ouvidos pela Gama contam que o movimento nos consultórios aumentou. “Sentimos uma piora em quem já vinha controlando a doença. A maior eficácia do tratamento vêm dos exercícios físicos e isso é também um problema, considerando que o isolamento social se mantém por mais de 12 meses”, diz José Eduardo Martinez, membro da comissão de dor, fibromialgia e outros reumatismos de partes moles da Sociedade Brasileira de Reumatologia.

A fibromialgia é o que se pode chamar de “síndrome holística”, cujos sintomas físicos são potencializados pelos psicológicos, num clássico exemplo de doença psicossomática. Essencialmente, ela é identificada por uma dor generalizada em todo o corpo e prolongada por mais de três meses, associada a outros problemas como falta de sono, fadiga extrema, e a questões como depressão e ansiedade. “Geralmente a qualidade de vida é ruim; o número de consultas médicas, por exemplo, é duas vezes maior que em pessoas que não têm a síndrome”, afirma Lin Tchie Yeng, médica fisiatra e coordenadora do Grupo de Dor do Serviço de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Para ter um diagnóstico conclusivo, demora; é comum que o paciente rode em muitos especialistas antes de saber o que tem de fato.”

Abaixo, trechos das entrevistas que formam um pequeno guia explicativo de temas significativos sobre a síndrome fibromiálgica.

“A fibromialgia desregula a noção da dor”

José Eduardo Martinez, reumatologista e doutor na área pela USP, professor titular da PUC-SP e membro da Sociedade Brasileira de Reumatologia

Uma síndrome misteriosa…

“A fibromialgia é misteriosa porque é muito subjetiva. Os sintomas, a dor, a fadiga, os distúrbios de sono, são difíceis de ter a intensidade medida ou explicada, dependem da experiência de cada um. Para mim uma dor, de zero a dez, representa cinco; para você, oito. A fibromialgia desregula esse volume e a noção da dor. É preciso juntar todos os sintomas relatados para concluir o diagnóstico, sendo a dor generalizada — não em juntas, mas no corpo inteiro — a marca registrada. O Colégio Americano de Reumatologia conceituou dor generalizada como aquela acima e abaixo da coluna, do lado direito e do esquerdo.”

…e invisível

“Os marcadores biológicos não ajudam no diagnóstico: eu peço exame de sangue e ali não aparece nada, pelos exames laboratoriais é difícil dizer qualquer coisa. Eles ajudam em pesquisas, mas para diagnosticar um paciente é preciso pesquisar sua história, ouvir atentamente seu relato. Quando o paciente chega e fala que tem dor no corpo inteiro há bastante tempo, por mais de três meses, que se sente muito cansado, que não dorme direito ou já acorda cansado, e tem muito esquecimento, esses sintomas apontam para a síndrome, que é uma constelação de sintomas. Mas ainda hoje nossos colegas médicos não estão totalmente a par do que foi estudado sobre fibromialgia.”

O estresse é central

“O estresse é um fenômeno biológico: você tem problemas e um sistema é ativado. Antes, ele trabalhava menos; agora, você acorda, te olham feio, o pneu está furado, você tem problemas no trabalho, e esse sistema fica muito ocupado. Ele usa as mesmas substâncias de inibição de dor — serotonina e cortisol — e muitas vezes não dá conta porque fica sobrecarregado. Quando a pessoa está sob muita pressão, a saúde é afetada. Quando se tem uma personalidade mais predisposta à preocupação, há mais propensão à fibromialgia.”

Há descrédito sobre o sofrimento

“Há um descrédito muito grande sobre o tamanho do sofrimento do fibromiálgico. O mais comum é atribuírem a doença apenas às questões psicológicas. Óbvio que elas têm um peso, mas não é só isso, é um problema muito mais amplo. E, como não há muita informação laboratorial, você olha para o paciente e não enxerga a dor dele em exames, muitos não reconhecem como doença. A família e os amigos acham que você é apenas um reclamão. E essa falta de reconhecimento agrava ainda mais o mistério da doença.”


“A fibromialgia acomete principalmente as pessoas que carregam o mundo nas costas”

Lin Tchie Yeng, médica fisiatra e coordenadora do Grupo de Dor do Serviço de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo

Ela tira o sono

“As pessoas dormem mal devido à dor difusa causada pela síndrome. Há fatores emocionais também, ela pode acometer pessoas que sentem como se carregassem o mundo nas costas; ao executar as funções cotidianas, sentem que esgotam suas reservas de energia. Passam a dormir mal e o sono é fundamental para descansar o cérebro, especialmente o sono profundo. E, como numa bola de neve, a pessoa fica ainda mais cansada e com mais fadiga. Com o passar do tempo, começam os problemas de memória e podem aparecer ainda quadros de ansiedade, depressão e até pânico. Há estudos que dizem que a perda de produtividade para quem tem fibromialgia pode ser de até 25%.”

Cuidado com o uso abusivo de remédios

“Embora os opióides não funcionem muito bem para os fibromiálgicos, é preciso ter cuidado com os diazepínicos [usados para dormir], que são terríveis porque fazem um sono artificial pouco reparador. Usados cronicamente há grandes chances de causarem depressão, além de criarem um ambiente mais propício para demências como o Alzheimer com o passar dos anos. Os antiinflamatórios são outro drama. Se dói, eu quero tomar um relaxante muscular. Ele melhora a dor e eu quero mais. Acontece que ele não atua na base do problema e pode aumentar riscos cardiovasculares, por exemplo. Antidepressivos, neste caso, são mais eficazes porque ajudam a regular a sensação da dor. É por isso que o tratamento deve ser feito com acompanhamento de psiquiatra também.”

Genética e estresse como ponto de partida

“A condição genética é um fator importantíssimo. Tem mais chance de ter fibromialgia quem tem parentes com a síndrome, elas aumentam em até quatro vezes. A mesma coisa é verificada em quem tem histórico familiar de depressão. O meio ambiente também pode nos fazer desenvolver a fibromialgia ao longo da vida. Experiências pessoais, estilo de vida e má capacidade de lidar com estressores são fatores que pesam. Há uma pesquisa clássica que alterou o sono de um grupo de voluntários e no quarto dia eles acordavam cansados e doloridos.”

Mulheres são as maiores vítimas

“As mulheres tendem a ter mais doenças psicossomáticas, mais ansiedade, mais depressão. Além disso, nossos músculos são menores e estamos mais sujeitas a variações hormonais, como tpms, enxaquecas. E tem a questão cultural, da dupla jornada, de trabalhar fora e dentro de casa, e de ter mais preocupações. Na pandemia, isso piorou muito, virou tripla jornada, com a educação dos filhos e com o aumento do trabalho doméstico mais braçal.”

Para uma vida melhor, observe e mude

“Considerando que é uma síndrome holística, o tratamento também tem que ser holístico. É preciso adotar uma rotina de exercícios físicos moderados, mudar estilo de vida, mudar enfrentamento passivo, investir no autocuidado de maneira geral. Não pode ficar muito tempo no celular e no computador na postura errada — esse ‘neck tech” já é uma realidade. Dependendo da postura, a cabeça pode pesar até quatro ou cinco vezes mais, o que destrói a coluna. Outras coisas podem parecer bobagem mas são importantíssimas, como ter um colchão adequado, bons travesseiros. É preciso estar de olho às pequenas coisas do dia a dia. O que não estiver bom precisa ser modificado para que o ciclo da dor se quebre. A psicoterapia, o remédio, a massagem, a hipnose e o exercício não vão ser totalmente eficazes se o colchão é ruim.”


Hipnose como ferramenta

Você talvez já tenha visto o uruguaio Fabio Puentes na televisão. Durante muito tempo ele foi habitué de programas de TV demonstrando os poderes da hipnose. Mas hoje, se você quer vê-lo, é mais fácil marcar uma consulta no Grupo de Dor do Hospital das Clínicas, de São Paulo. Há 28 anos, Puentes foi convidado pelo neurologista Manoel Jacobsen Teixeira, um dos coordenadores do centro de dor, para integrar a equipe de tratamento. “Ele me viu na TV e pensou: se eu conseguia fazer com que alguém mordesse uma cebola como se fosse uma maçã, sem chorar com seu estímulo ácido, eu poderia ajudar a reduzir a dor”, conta Puentes.
A técnica é utilizada no tratamento em outros países, com estudos de eficácia publicados desde os anos 1990. “O médico trabalha com a doença, o hipnólogo com o sintoma. Ele quer saber a causa da dor, eu quero saber como é a dor para tentar reduzi-la”, conta.
Na sessão de hipnose, Puentes pede que os pacientes representem a dor que sentem como se fosse uma imagem. “A dor é um dobermann cuja mordida dói nove, numa escala de zero a dez. Durante a hipnose digo que o dobermann é pequeno. Depois, que é cor-de-rosa; depois que é um poodle, e, por fim, que é de pelúcia. É impressionante o resultado.”
No HC, Puentes atende cada paciente geralmente por três sessões. Ele também ensina técnicas de auto-hipnose para que os pacientes possam administrar a dor eles mesmos. “Há sucesso em 98% dos casos.”