Como tratar a enxaqueca para não sofrer tanto — Gama Revista
Qual a sua dor?
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Guilherme Falcão/Unsplash

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Saúde

Livrai-nos deste mal

Quem já sofria com enxaqueca tem passado maus bocados em tempos de pandemia. Tratamentos consagrados e novas opções terapêuticas ajudam a vencer o tormento

Cristina Nabuco 25 de Abril de 2021
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Livrai-nos deste mal

Quem já sofria com enxaqueca tem passado maus bocados em tempos de pandemia. Tratamentos consagrados e novas opções terapêuticas ajudam a vencer o tormento

Cristina Nabuco 25 de Abril de 2021

O idioma que permitiu ao dramaturgo William Shakespeare dar vida a personagens tão densos quanto Hamlet e Rei Lear mostrou-se incapaz de retratar a enxaqueca, na avaliação da escritora Virginia Woolf (1882-1941). “Se alguém tiver de descrever essa dor ao médico, logo constatará que as palavras lhe faltam”, comentou a respeito do mal de que padecia, no ensaio autobiográfico “Sobre Estar Doente”, de 1926.

Quase um século depois, houve muitos avanços na compreensão dessa dor de cabeça intensa, latejante, unilateral (as mais severas chegam a acometer os dois lados), que dura de 4 a 72 horas. Em geral é acompanhada de náuseas, vômitos e intolerância à luz, barulho, cheiros e movimentos e às vezes precedida de aura: visão de luzes, pontos ou raios luminosos, formigamento no corpo. A enxaqueca tornou-se a 6ª doença mais incapacitante do mundo e o tipo de dor de cabeça mais debilitante dentre as 150 catalogadas. Atinge 15% dos brasileiros, cerca de 30 milhões de pessoas, com preferência pelo sexo feminino – quatro mulheres para cada homem –, sobretudo na idade produtiva, entre 25 e 45 anos.

A demora para buscar auxílio especializado e o uso indiscriminado de analgésicos tendem a prolongar e agravar o sofrimento

“A enxaqueca é uma doença neurológica de caráter hereditário”, esclarece a neurologista Célia Roesler, membro das Sociedades Brasileira e Internacional de Cefaleia e da Academia Brasileira de Neurologia. Herda-se a tendência para apresentar uma alteração química no sistema nervoso central que leva à produção acentuada da proteína CGRP (sigla em inglês para peptídio relacionado ao gene da calcitonina), responsável por deflagrar o circuito de dor: dá início à inflamação e aumenta o calibre dos vasos sanguíneos. Ao mesmo tempo, ocorre uma falência no sistema analgésico interno. O resultado é o martelar angustiante dentro da cabeça.

Existem tratamentos eficazes para abortar a crise e prevenir episódios futuros. No entanto, a demora para buscar auxílio especializado e o uso indiscriminado de analgésicos tendem a prolongar e agravar o sofrimento. Com isso, em vez de enfrentar o mal vez ou outra, pelo menos 10% evoluem para enxaquecas crônicas, que provocam, no mínimo, 15 dias de dores de cabeça por mês. Aumentam as faltas ao trabalho, a produtividade cai, as relações sociais são impactadas, como admitiram 82% dos brasileiros num estudo que ouviu 11.266 pessoas com enxaqueca de 31 países, sendo 851 do Brasil (My Migraine Voice Survey), feito pela Aliança Europeia para a Enxaqueca e Cefaleia em parceria com a farmacêutica Novartis.

Na pandemia

A situação se agravou porque a dor de cabeça é um dos principais sintomas da infecção pelo Sars-CoV-2. Os resultados preliminares de uma pesquisa do neurologista Pedro Sampaio realizada no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco mostram que 64% dos pacientes apresentaram dor de cabeça. Em 80% dos casos, ela pega a cabeça toda, de acordo com estudos compilados pela Sociedade Espanhola de Neurologia. “As dores são mais intensas e prolongadas, respondem pior aos analgésicos e costumam ser mais prevalentes nas pessoas propensas à enxaqueca”, afirma Célia Roesler. Fora isso, elas são comuns na Síndrome pós-Covid, em que os sintomas persistem após a recuperação.

E não apenas entre os indivíduos que foram internados. Um estudo da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp concluiu que 40% dos pacientes com formas leves da doença tinham dores de cabeça e 40% fadiga dois meses após a data do teste diagnóstico. Os números se aproximam do apurados por cientistas dos Estados Unidos, do México e da Suécia, com base em estudos envolvendo 48 mil pacientes. Os cinco sintomas principais de longa duração dentre os 55 identificados foram fadiga (58%), dor de cabeça (44%), diminuição da atenção (27%), queda de cabelo (25%) e dificuldade para respirar (24%).

Muitas perguntas referentes à ação do coronavírus sobre o sistema nervoso permanecem sem respostas. Mas já existe um consenso: “A cefaleia persistente deve ser avaliada por um especialista porque pode sinalizar quadros graves”, orienta a neurologista Aline Turbino, mestre em neurociências pela Unifesp. Covid à parte, quem sente dor de cabeça três vezes ou mais por mês, há pelo menos três meses, deve consultar um neurologista. Gama conferiu as novidades no tratamento. “Nem todo mundo responde a todos”, alerta Célia Roesler. “A abordagem tem que ser individualizada”.

Anticorpos monoclonais

No ano passado chegaram ao Brasil dois fármacos de aplicação mensal (erenumabe e galcanezumabe) e um trimestral (fremanezumabe). Injetáveis, são administrados por meio de seringa ou caneta parecida às de insulina. “Atuam como preventivos bloqueando a CGPR ou os receptores dessa proteína a fim de evitar a resposta inflamatória que vai gerar a dor”, explica Aline Turbino. De alta tolerabilidade e baixo efeito colateral, formam a primeira classe de medicamentos específica para prevenir enxaqueca. As drogas usadas até então eram emprestadas de outras especialidades, como a psiquiatria e a cardiologia. “Os resultados aparecem no primeiro mês, enquanto os outros tratamentos demoram mais para surtir efeito”, continua a neurologista.

Têm sido indicados para pacientes que não tiveram sucesso com outras medicações ou não toleram seus efeitos colaterais, como lentificação do pensamento, sonolência e ganho de peso. Após quatro meses de uso, as crises diminuíram pela metade, demonstrou pesquisa com 955 voluntários conduzida no King’s College de Londres. Um estudo com 83 pacientes brasileiros que fizeram uso destes anticorpos, coordenado pelo neurologista Abouch Krymchantowski, também observou redução de 50% na incidência das crises. “Meus pacientes que se queixavam de dores diárias tiveram melhora significativa; os que tinham dores episódicas passaram a não ter mais”, conta a neurologista Fabíola Dach, responsável pelo Ambulatório de Dor de Cabeça do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. O maior inconveniente é o custo, em torno de R$ 1mil por mês. Não tem no SUS e as tentativas de colocar no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) para serem cobertos pelos planos de saúde por enquanto fracassaram.

Cannabis

Os medicamentos à base de canabidiol, o princípio ativo da maconha, aliviam dores em geral e têm sido indicados tanto para prevenir episódios de enxaqueca (cápsula ou tintura por via oral) quanto interromper as crises (pomada espalhada atrás da orelha ou na lateral da testa). Podem ser associados aos remédios convencionais ou substitui-los em quem não responde bem aos fármacos de primeira linha ou apresentam contraindicações. “A cannabis tem efeito anti-inflamatório, neuroprotetor e relaxante porque existem receptores endocanabinoides em todos os locais do corpo”, diz a médica Maria Teresa Jacob, especialista em dor crônica e em cannabis medicinal, membro das Sociedades Internacional e Brasileira para o Estudo da Dor e da International Association for Carabinoid Medicines (IACM).

“O tratamento é seguro e eficaz quando o medicamento é produzido de acordo com as regras rígidas da Anvisa.” As reações adversas se resumem a sonolência, relaxamento muscular e boca seca, e são mais comuns no início do uso, enquanto se ajusta a dose e o corpo se adapta, acrescenta a médica. Para adquirir esses remédios, é preciso ter prescrição médica, entrar no site da Anvisa no setor de importação de produtos à base de canabidiol (há 140 autorizados) e pedir aprovação, emitida no intervalo de 7 a 10 dias. Depois, efetuar a compra pelo site do fabricante. Antes da pandemia, o produto era entregue em domicílio em 20 dias. Agora tem havido atrasos. O custo do tratamento varia de R$ 800 a 1500 mensais.

Toxina Botulínica

O aliado contra rugas também ajuda a controlar a enxaqueca. A aplicação, feita em 31 pontos na testa, na parte posterior da cabeça e do pescoço e nos ombros, em intervalos de três meses, tem como alvos “desligar” o nervo trigêmeo, responsável pela sensibilidade da face, para evitar a liberação da CGRP e relaxar a musculatura a fim de reduzir a frequência das crises, informa Célia Roesler. Como age apenas no local, os efeitos colaterais são mínimos, como dor e inchaço. Cada sessão custa a partir de R$ 800. A Academia Brasileira de Neurologia está solicitando a cobertura obrigatória deste tratamento pelos planos de saúde.

Neuroestimulação

Uma tiara metálica, que parece saída de um filme de ficção científica – lembra a da Mulher Maravilha, interpretada pela atriz Gal Gadot. Colocada na testa e acima das orelhas, produz leves choques para estimular o trigêmeo a fim de reduzir os episódios de dor. Alguns pacientes sentem-se bem, enquanto outros relatam desconforto, diz Fabíola Dach. Primeiro dispositivo de neuroestimulação para uso doméstico – por 20 minutos diários – tem sido indicado para gestantes, crianças acima de 8 anos e pessoas que não toleram as medicações. Custa em torno de R$ 1200.

Diários High Tech

Os especialistas recomendam fazer um diário da dor para traçar um retrato mais fiel de como a doença se comporta e planejar melhor o tratamento. Em vez de cadernos, estão em alta aplicativos que registram data, intensidade, local, sintomas associados, possíveis gatilhos – restrição de sono, jejum prolongado, café, vinho, chocolate, frutas cítricas, laticínios – e uso de medicação, e ainda calculam os dias livres de dor. Muitos são gratuitos. Pesquise Enxaqueca Buddy, Conexão Enxaqueca, Diário da Enxaqueca, Diário da Cefaleia, Diário da Dor de Cabeça, Migraine Monitor.

Arsenal diversificado

“Os tratamentos convencionais não estão descartados. Têm o seu valor”, garante Célia Roesler. Para abreviar ou interromper a crise, empregam-se analgésicos comuns (dipirona, paracetamol), anti-inflamatórios não hormonais (aspirina, diclofenaco, ibuprofeno, naproxeno), ergotamínicos (ergotamina, que pode vir associada a analgésico e cafeína, e di-hidroergotamina, em spray nasal ou injetável) e triptanos (sumatriptano, rizatriptano, zolmitriptano, naratriptano, em comprimido, tablete sublingual, spray nasal e injeção). Já para prevenir os episódios de dor, a escolha recai sobre neuromoduladores (topiramato e divalproato), antidepressivos (amitriptilina, venlafaxina, nortriptilina, clomipramina) e betabloqueadores (propranolol e atenolol).

“O medicamento é escolhido conforme o perfil do paciente, já que o preventivo de enxaqueca também trata outras doenças”, avisa Fabíola Dach. “Se tiver pressão alta, um betabloqueador; se for obeso uma droga que não aumente o apetite”. Deve ser feito por no mínimo seis meses. Como coadjuvantes, podem ser indicados suplementos de magnésio, vitamina B2 e coenzima Q 10, e práticas que ajudam a aliviar o estresse, notório desencadeante da dor, como terapia, meditação, yoga, acupuntura.

O que vem por aí

Fora do Brasil existe uma nova classe de medicamentos, os Gepants, anticorpos monoclonais utilizados para abortar a crise. São mais potentes e têm menos efeitos colaterais do que o tratamento convencional, informa Aline Turbino. O rimegepant foi aprovado pelo FDA, órgão americano que fiscaliza medicamentos e alimentos. Não há previsão de quando estarão disponíveis por aqui. Mesmo assim, as opções são muitas. Render-se à dor é coisa do passado.